O debate em torno da desmilitarização das polícias militares reacendeu-se no início do mês (3) com a divulgação de dados alarmantes sobre a violência no país pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo o relatório, entre 2011 e 2015, foram registrados no Brasil um número maior de mortes violentas (279.592 mortos) do que na guerra da Síria (256.124 mortos). Desse total, 54% eram jovens de 15 a 24 anos e 73% pretos ou pardos.
A violência também está presente nas próprias corporações policiais: a taxa de letalidade da polícia no país (1,6 mortes causadas em intervenções para cada 100 mil habitantes) é superior a de Honduras (1,2), proporcionalmente o país mais violento do mundo.
Nesse cenário, a desmilitarização das polícias aparece com frequência como proposta de reforma para tornar sua ação menos violenta e mais preocupada com a garantia dos direitos humanos. Porém, segundo Andre Vianna, coronel de reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) e assessor do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), o caráter militar não é obstáculo para que tais direitos sejam assegurados.
“Para atuar na manutenção da ordem, a polícia tem que ter hierarquia e disciplina. O grande problema no Brasil é esse nome que deveria ser mudado há muito tempo”, diz o assessor, que trabalhou três décadas na PMESP. “[O policial] presta contas ao escalão, que presta contas ao Estado, que presta contas à população”.
Já para Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), não se trata apenas de um nome. “A questão da militarização tem um aspecto muito relacionado à gestão de decisões”.
Segundo o especialista, a hierarquia militar, ao demandar obediência imediata às ordens superiores, impede uma resolução de conflitos descentralizada, com maior flexibilidade e atenta às demandas da população. “A questão vai para o coronel da polícia, que tem uma outra visão do todo completamente afastada do dia a dia. A coisa fica muito atravancada”.
A alteração da estrutura da segurança pública depende da aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que altere o artigo 144 da Constituição Federal, o qual cria as polícias militares e civis e define as suas competências. Para serem aprovadas, as PECs necessitam de três quintos dos votos dos parlamentares de cada uma das casas legislativas em dois turnos.
Dentre as propostas de reforma que tramitam no Congresso, estão a PEC 430/2009, de autoria do deputado Celso Russomano (PRB-SP), a PEC 102/2011, do senador Blairo Maggi (PP-MT), e a PEC 51/2013, do senador Lindbergh Farias (PT-RJ). Em todas, há preocupação em unificar a carreira policial e a estrutura duplicada das corporações, de modo a diminuir gastos, sobreposição de tarefas e evitar conflitos entre policiais civis e militares.
Outro ponto importante – abordado nas PECs 102 e 51 – é a instituição do ciclo único de polícia, que deixaria sob a mesma corporação a atividade de investigação e de policiamento ostensivo. Hoje, as tarefas são repartidas entre a Polícia Civil e Militar, respectivamente.
“As duas corporações não confiam uma na outra”, continua Manso. Em sua opinião, seria necessária uma alteração na estrutura das corporações, criando “uma polícia que, além do trabalho ostensivo, sabe da cena criminal e ajuda no processo de investigação”. A carreira também deveria ser alterada, com a possibilidade do policial que começa na rua ascender e tornar-se delegado.
Para Manso, a PM hoje estaria muito mais preparada para o ciclo completo do que a civil porque já criou uma estrutura que facilita as novas tarefas que seriam incorporadas. Por outro lado, há um temor que o ciclo completo termine dando muito poder à instituição, o que torna necessária a sua desmilitarização prévia.
Apenas a PEC 51/2013, de Lindbergh Farias (PT-RJ), cita a defesa dos direitos humanos, principal reivindicação de ONGs e movimentos sociais que pedem a reforma das polícias. Para ambos os especialistas, a instituição incorporou a discussão sobre direitos nos últimos anos em sua grade de formação. “A questão é: por que parte da estrutura da PM continua acreditando na violência como parte importante do controle do crime?”, questiona Manso.
De acordo com os dados divulgados pelo Datafolha, sob encomenda do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, essa violência é percebida pela população: 59% têm medo de ser vítima da PM, e 70% acham que o uso da força é exagerado. Mesmo assim, 57% da população acredita na expressão “bandido bom é bandido morto”.
“Isso não é o pensamento da instituição Polícia Militar”, diz o coronel Vianna, quando questionado sobre a expressão. “Para a instituição, direitos humanos e atividade policial não são contraditórios”.
A pesquisa ainda aponta que 50% da população considera a PM eficiente na garantia da segurança pública. Há também reconhecimento das dificuldades que os policiais enfrentam: 63% acreditam que eles não possuem boas condições de trabalho e 64% que são caçados pelo crime.
Normas Internacionais
O uso da força em situações de tensões e distúrbios internos é regulamentado pelas Nações Unidas no “Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei” (1979) e nos “Princípios Básicos Sobre o Uso da Força a Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei” (1990). As normas não são vinculantes, ou seja, não são obrigatórias.
Além de prever o respeito à dignidade humana e o emprego do uso da força somente em situações de necessidade e de forma proporcional, os documentos também recomendam a existência de mecanismos de punição dos agentes que ajam fora dos regulamentos.
“A instituição tem que estar comprometida, tem que ter seus regulamentos em consonância com as normas internacionais. Se o indivíduo agir fora do que foi determinado, os mecanismos de controle têm que atuar para afastá-lo da instituição”, diz o assessor do CICV.
*Hugo Salustiano é graduando em Relações Internacionais na USP e estagiário na ONG Transparência Brasil. Atualmente participa do 15º curso de Jornalismo em conflitos armados e outras situações de violência, promovido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelho e Oboré. Texto publicado originalmente no Justificando