Um crime acontecido a partir do descaso e que alterou profundamente realidades socioambientais no país, a tarde de 5 de novembro de 2015 é uma nódoa difícil de remover. O rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, largou na história brasileira 50 milhões de metros cúbicos de impunidade e descaso. A partir de Bento Rodrigues, até a chegada no rio Doce e depois ao oceano Atlântico, a lama tóxica foi desencadeando uma série de (in)consequências prestes a caírem na impunidade.
A realidade dos atingidos no leste de Minas Gerais não é tão destoante dos outros: os problemas vão desde a imediata suspensão do uso da água, perda de renda para os que dependiam da pesca ou da agricultura feitos à beira do rio, problemas psicológicos e espirituais para comunidades tradicionais e até a especulação sobre a real recuperação do Doce para que ele volte a ter uma água menos afetada pelos rejeitos da mineração (níveis elevados de minério de ferro, sílica e metais pesados estão nos relatórios sobre a contaminação).
O MST, devido ao histórico de lutas e conflitos agrários nas “terras do rio sem dono”, é muito atuante na região de Governador Valadares e cidades próximas, como Periquito. E em 2016, após quase um ano de crise com as consequências do rompimento da barragem, o grupo ofereceu suporte a moradores que buscavam uma saída para sobreviver sem emprego, sem água e sem perspectiva, oferecendo o caminho da luta pela terra para produzir e garantir sustento da família. Após as negociações, ficou definido a ocupação de uma área improdutiva da empresa Cenibra (Celulose Nipo Brasileira), para que cerca de 350 famílias pudessem recomeçar suas histórias. Em setembro de 2016, ergue-se o Acampamento Esperança.
Resistência feminina
Érica M. foi uma das primeiras a pisarem nas terras e hoje é a principal liderança do acampamento. Ela lembra bem das dificuldades vividas por uma pessoa que foi perdendo a esperança ao ver os custos dos produtos (principalmente água potável) subirem em Governador Valadares, ao mesmo tempo em que o desemprego era uma realidade. Acolhida pelo MST, ela mudou sua rotina, deixou a cidade e foi para o campo e para a luta. Érica ri quando lembra que já se viu insatisfeita com trancaços feitos pelo MST em BRs quando não entendia os motivos do movimento, mas que hoje sente nas veias a militância pulsando por igualdades de oportunidades para as pessoas.
E por isso ela não se acovardou e, mesmo com momentos de tensão vividos à época do pedido de reintegração de posse - em um período delicado, pois o trabalhador rural Gouveia, assentado no Liberdade, havia sido assassinado há poucos dias por milícias de Periquito - Érica manteve pulso e foi à luta.
A história de resistência de Érica, com sua voz suave e olhar firme e que opta por resguardar sua imagem por questões de segurança, ilustra muito bem a força da mulher, muitas vezes principal arrimo da família. E foi no domingo das mães, em maio de 2017, que os ocupantes do Acampamento Esperança tiveram a ordem de despejo cumprida pelo Estado (que prometeu e não cumpriu a disponibilização de terras improdutivas em uma região conhecida como Eldorado como moeda de troca por uma saída pacífica) e as terras devolvidas para Cenibra. Naquele domingo, dona Maria, outra destemida e septuagenária mãe, estava lá, pronta para a luta e se prestando como exemplo para os que pensavam em desistir. “Temos que lutar. Eu vou lutar até conseguir minha terra”.
Acolhidas pelo Assentamento Liberdade, as famílias se estabeleceram provisoriamente em uma área conhecida como “barro branco”, antiga morada de Gouveia e que possivelmente será destinada aos filhos de assentados do Liberdade. Foram cerca de quatro meses de organização, lutas e algumas conquistas, já que 18 famílias serão assentadas em Jampruca, também em Minas Mesmo com caráter provisório, muitos moradores despenderam suor e carinho para construir um ranchinho com a sua identidade. Dona Maria mais uma vez está orgulhosa de ter sido ela mesma a construir o quarto onde produz seu artesanato.
Mais um horizonte de luta
Contudo, a luta não para e os conceitos norteadores do MST de ocupar, resistir e produzir, motivados por uma demanda de antigos acampados do Novo Horizonte (Açucena), assistidos outrora pela Fetaemg (Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Minas Gerais), que pediram auxílio após o despejo sofrido em 2017, levou o grupo a reocupar o Novo Horizonte. Agora “sob nova direção”, brincavam alguns após os momentos de tensão que envolvem as ações do MST, principalmente pela possibilidade de conflito com fazendeiros e a Polícia Militar.
Para Érica poderia ser mais uma ação, como aquela vivida no dia das mães, mas nascida no primeiro dia do mês de outubro, ela teve suas festividades com a família parcialmente concluídas por causa da necessidade da luta.
O churrasco de aniversário mal havia começado quando veio o comando de partir, com um beijo no marido e um caloroso abraço de seus filhos, seguia mais uma vez para a luta.
As ações da madrugada do dia 02, como sempre, exigiam concentração e entrega dos militantes. Era necessário abrir porteiras para que os trabalhadores rurais sem-terra tivessem acesso à área que ocupariam para produzir.
Lembrando que o MST é o principal produtor de arroz orgânico do Brasil e a política de ação do grupo é voltada para ocupação de latifúndios improdutivos, acumulados por longos anos de grilagem e desigualdades do país, fazendo um preparo da terra para receber produtos livres de agrotóxicos e venderem em feiras livres das cidades. Dona Maria foi uma das primeiras a desembarcar dos carros que traziam os militantes.
Por volta das 4h da manhã, ela já começava a organizar sua barraca, para abrigo temporário e posterior construção de sua morada. “Eu não vou desistir, já te disse”, avisa.
Outras famílias também trabalhavam e o acampamento Novo Horizonte ressurgia. Érica ganhou um presente diferente, que aprendeu a valorizar após o ingresso na luta por direitos: o sorriso das pessoas que viam ali, a possibilidade de recomeço.