No momento em que a oposição ao governo Bolsonaro consegue finalmente fazer as ruas falarem, impulsionadas pela vanguarda estudantil, as chamadas condições objetivas de governabilidade do capitão deterioram-se de forma praticamente irreversível.
Em ritmo acelerado, constrói-se um consenso no establishment (barões da mídia, mercado e representantes de porções expressivas das instituições) de que é preciso remover o capitão, pois ele é sinônimo de ingovernabilidade, instabilidade, incapacidade e crise institucional permanente, além de cobrir a nação de vergonha toda vez que abre a boca.
A surpreendente e bem-vinda ação do Ministério Público do Rio, que resolveu ir fundo nas investigações sobre a organização criminosa comandada pelo filho 01, é nitroglicerina pura capaz de explodir no curto prazo a cidadela de corrupção da família e, por tabela, esmiuçar as relações dos Bolsonaro com as milícias cariocas. Este é outro fator a abalar fortemente os pilares do nazibolsonarismo.
O Congresso Nacional já percebeu que se depender de um mínimo de articulação política do Planalto nada andará. Por isso, resolveu tocar as coisas (leia-se a agenda antinacional e antipopular com a qual tem sintonia com Guedes-Bolsonaro) por conta própria. Já se fala até em uma proposta de reforma da Previdência com o carimbo exclusivo dos deputados e senadores.
Desesperado, Bolsonaro divulga nas redes um texto alheio como se fosse dele, no qual praticamente joga a tolha ao afirmar que o país é ingovernável, entre outras sandices. Essa postagem levanta suspeita de golpe? Sim. Fornece pistas de que Bolsonaro pensa em renunciar? Também sim. Pode ser apenas mais um devaneio partindo de um louco incompetente? Mais uma vez sim.
O problema é decifrar Bolsonaro, como alertou o cientista político Alberto Carlos Almeida em sua conta no Twitter: “É sim um carta de renúncia, mas vinda de Bolsonaro pode ser qualquer coisa. Ele é muito burro: não conhece a língua portuguesa, não sabe utilizar símbolos, não entende dos detalhes da política. Assim, para ele, essa carta pode ser qualquer coisa.”
Seja lá o que for, o texto teve o condão de insuflar as milícias digitais bolsonaristas (enfraquecidas pelo desembarque de grupos e pessoas de direita, não de extrema-direita, mas ainda relevantes), as quais de imediato entraram em campo para pregar o fim do nosso fiapo de regime democrático. Fechamento do Congresso, do STF e da Globo estão entre as conclamações desses militantes das trevas, convocando para uma “invasão” de Brasília, no próximo dia 26.
A gravidade da conjuntura, portanto, dispensa mais comentários. Os democratas e socialistas minimamente argutos sabem que o rearranjo por cima tramado pela burguesia, com Mourão na presidência, significa a coesão e reaglutinação das forças do atraso em torno de seu objetivo maior de retirar direitos sociais do povo e entregar as riquezas do país. Contudo, urge que o campo progressista se prepare para esse debate.
Isso porque tudo leva crer que não tardará o início da operação para afastar Bolsonaro. Com a ressalva de que a prioridade óbvia é apostar no crescimento da reação popular ao governo fascista, mantendo cada vez mais altas as labaredas da resistência das ruas e organizando a maior greve geral da história do país, cabe uma indagação de resposta complexa: qual será a posição da esquerda quando estiver instalado o processo de impeachment de Bolsonaro?
Apoiar o impeachment livrando o país do maior retrocesso em 500 e poucos anos, mas fortalecer o projeto de espoliação do povo e do país, sob a batuta do general Mourão?
Ser contra o afastamento de Bolsonaro por compromissos com a soberania popular, afinal o energúmeno venceu as eleições, mas pagar um preço político terrível por essa decisão?
Ignorar essa discussão e investir no avanço das mobilizações, impondo derrotas importantes ao governo e fazendo-o sangrar a ponto de chegar moribundo em 2022?
Levar para as ruas a tese da anulação da eleição de 2018, vencida através de todo tipo de sujeira e financiamento ilegal, e a realização de um novo pleito?
Pessoalmente, simpatizo com essa última alternativa, mas será que a correlação de forças na sociedade permite que ela prospere?
Ao debate, companheiros.