“Em 1964, o poder foi tomado à força. Em 2018, 57,7 milhões de brasileiros sufragaram a versão piorada de um regime odioso. Outros 11 milhões anularam ou votaram em branco. No fim das contas, talvez fosse inevitável chegarmos a isso. Bolsonaro não é diferente do país que o elegeu. Não todo o Brasil, nem mesmo a maioria do Brasil (uma esperança), mas um pedaço significativo do Brasil é como Bolsonaro. Violento, racista, misógino, homofóbico, inculto, indiferente. Perverso.”
As aspas acima são para o trecho final do primoroso artigo do cineasta João Moreira Sales publicado recentemente pela revista Piauí. Sob o título “A morte e a morte”, o texto é, na minha opinião, a mais profunda análise psicossocial do fenômeno do bolsonarismo.
O aumento da aprovação, nas pesquisas divulgadas nos últimos dias, da conduta genocida de Bolsonaro diante da pandemia do novo coronavírus, que já ceifou a vida de 85 mil brasileiros, traz à tona outra constatação estarrecedora: o Brasil caminha para assegurar o nada honroso lugar na história destinado aos países em que parcela expressiva do povo se deixa matar bovinamente e, pior, aplaude seu carrasco.
Isso posto, mesmo sempre fazendo a ressalva do escasso grau de confiabilidade de pesquisas feitas por telefone, é forçoso reconhecer que se todas elas convergem para apontar uma pequena melhora nos índices de aprovação do governo, e também para a aprovação pessoal de Bolsonaro, provavelmente os ventos estão menos desfavoráveis ao miliciano que ostenta a faixa presidencial.
O instituto Paraná Pesquisas, em cuja trajetória de levantamentos eleitorais consta o inacreditável 60% x 40% a favor de Aécio contra Dilma, a poucos dias do segundo turno de 2014, foi além da avaliação do governo e apontou o favoritismo de Bolsonaro na disputa presidencial, indicando sua vitória em todos os cenários, se a eleição acontecesse hoje. Tanto faz se o adversário fosse Lula, Haddad, Moro, Ciro, Dória, Huck ou Witzel.
Embora seja difícil manter a racionalidade com a letargia das pessoas ante uma economia destroçada, com mais desempregados que empregados pela primeira vez na história do país; diante do apoio de parte relevante da população a um governo composto por toda sorte de desclassificados e descerebrados, que é capaz de proporcionar um espetáculo deprimente como o da reunião ministerial de 22 de abril; e perante à naturalização da vexatória e humilhante condição de pária internacional em que se transformou o Brasil na cena internacional, só nos cabe tentar entender os resultados das pesquisas e a percepção dos brasileiros sobre a realidade.
Aventuro-me, portanto, a apontar as três principais causas do alívio de Bolsonaro nas pesquisas:
1) Pandemia – O isolamento social impede que a oposição de esquerda convoque e organize mobilizações de rua pelo impeachment de Bolsonaro, denunciando seu desgoverno, crimes de responsabilidade e os seguidos ataques ao regime democrático. Estou convencido de que há clima na sociedade para grandes manifestações. Primeiro atraindo a vanguarda política e social do país. Depois, gradativamente, a classe trabalhadora e o povão. O oxigênio político da esquerda sempre foi a rua. Restrita a lives, ela fica manietada e impotente.
2) Silêncio e clausura do capitão – Alguém deve ter aconselhado Bolsonaro a calar a boca e parar de falar merda em profusão. Assim, os atritos com as instituições democráticas e com a imprensa foram reduzidos drasticamente nas últimas semanas. Sua falta de agenda pública, com o recolhimento a que se submeteu desde que contraiu a covid-19, também tem contribuído para tornar a atmosfera menos carregada.
3) Apropriação indébita do auxílio emergencial – Insuflado pelo clã Bolsonaro, o gado a seu serviço tem atuado fortemente nas redes sociais para capitalizar o pagamento do auxílio emergencial. Como a mentira e a empulhação são os pilares da atuação do bolsonarismo, pouco importa que Bolsonaro e Guedes tenham sido, no início, contra o pagamento do socorro à população e depois acenado com apenas R$ 200. Se não fosse a atuação da oposição no Congresso Nacional, não existiria o auxílio de R$ 600. Só que a desinformação tem levado muita gente, não só da base da pirâmide, como também da classe média empobrecida que vem recebendo o dinheiro, a creditar a concessão do benefício ao governo federal.
Contudo, Bolsonaro ainda é, de longe, o presidente pior avaliado para este período de governo desde a redemocratização. Além disso, o auxílio emergencial no qual ele está pendurado indevidamente tem prazo para acabar. E logo sua verborragia fascista será retomada. Não tem jeito, é questão de DNA.
Sem falar que a saída para o pós-pandemia defendida por Guedes, ao contrário do que acontece no mundo todo, é dobrar a aposta nas reformas ultraneoliberais que penalizam ainda mais o povo. E quando, finalmente, surgir a vacina contra a covid-19 (tudo leva crer que no início de 2021) as passeatas e os comícios estarão de volta.
Há muita lenha para queimar até 2022