Foto: Antonio Augusto/ STF
No último dia de sua carreira no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luís Roberto Barroso votou nesta sexta-feira (17) pela descriminalização do aborto voluntário até a 12ª semana de gestação. O voto, proferido em sessão virtual extraordinária, representa um marco simbólico e jurídico — e encerra sua trajetória de 12 anos no tribunal com uma das manifestações mais contundentes sobre direitos das mulheres e saúde pública já registradas na Corte.
O julgamento, que trata da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442) apresentada pelo PSOL em 2017, questiona os artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940, que criminalizam o aborto no Brasil. O partido sustenta que essas normas violam direitos fundamentais à dignidade, liberdade, saúde e igualdade das mulheres.
Saúde pública, não caso de polícia
Em seu voto, Barroso foi enfático ao afirmar que a interrupção da gestação não deve ser tratada como um crime, mas como uma questão de saúde pública.
“Ninguém é a favor do aborto em si. O papel do Estado e da sociedade é o de evitar que ele aconteça, dando educação sexual, distribuindo contraceptivos e amparando a mulher que deseje ter o filho e esteja em circunstâncias adversas. (…) A discussão real não está em ser contra ou a favor do aborto. É definir se a mulher que passa por esse infortúnio deve ser presa”, escreveu o ministro.
Barroso destacou que a criminalização atinge de forma desproporcional as mulheres e meninas mais pobres, que recorrem a procedimentos clandestinos e inseguros, muitas vezes com risco de morte.
“As pessoas com melhores condições financeiras podem atravessar a fronteira com o Uruguai, Colômbia, ir para a Europa ou valer-se de outros meios aos quais as classes média e alta têm acesso”, afirmou.
O ministro também comparou o Brasil a outras democracias consolidadas, lembrando que praticamente nenhum país desenvolvido mantém a criminalização da interrupção da gestação nas primeiras semanas. “Isso inclui 39 países europeus, além de nações como Alemanha, Canadá, França, Itália e Reino Unido”, citou.
Na parte mais emblemática do voto, Barroso defendeu a liberdade reprodutiva como um direito fundamental e lançou uma provocação que repercutiu amplamente:
“As mulheres são seres livres e iguais, dotadas de autonomia, com autodeterminação para fazerem suas escolhas existenciais. Em suma: têm o direito fundamental à sua liberdade sexual e reprodutiva. Direitos fundamentais não podem depender da vontade das maiorias políticas. Ninguém duvide: se os homens engravidassem, aborto já não seria tratado como crime há muito tempo.”
Um voto de despedida
O gesto de Barroso ocorreu em caráter extraordinário: o ministro solicitou pessoalmente ao presidente do STF, Edson Fachin, que abrisse uma sessão virtual para que ele pudesse apresentar o voto antes da aposentadoria, efetivada neste sábado (18). Após sua manifestação, o ministro Gilmar Mendes pediu destaque, o que suspende o julgamento e o transfere para o plenário presencial, ainda sem data definida.
Com o voto de Barroso, o placar ficou em 2 a 0 pela descriminalização, já que a então ministra Rosa Weber, relatora da ação, havia votado no mesmo sentido em 2023, pouco antes de também se aposentar.
Ação em andamento desde 2017
A ADPF 442, movida pelo PSOL, pede que o STF reconheça a inconstitucionalidade dos dispositivos penais que criminalizam o aborto e autorize a interrupção da gravidez até a 12ª semana. Atualmente, a lei brasileira só permite o procedimento em três situações: risco de vida para a gestante, gravidez resultante de estupro ou feto anencéfalo.
O partido argumenta que o Código Penal de 1940 é incompatível com a Constituição de 1988 e com tratados internacionais de direitos humanos. Dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021 reforçam o impacto do tema: uma em cada sete mulheres com 40 anos já realizou ao menos um aborto, e 43% delas precisaram ser hospitalizadas após o procedimento.