Aprovado na última quinta-feira (9) em comissão mista no Congresso, o relatório sobre a Medida Provisória (MP) 871 acabou retirando um item que já provocava bastante polêmica: a descaracterização dos acidentes ocorridos no trajeto casa-trabalho como acidentes de trabalho. Para tentar um acordo, o relator, deputado Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), acatou 120 emendas, de um total de 578, e retirou o dispositivo que isentava o empregador de responsabilidade em acidentes ocorridos durante o percurso.
A iniciativa do governo provocou protestos de sindicalistas e especialistas em saúde do trabalho. "É mais uma tentativa de tirar responsabilidade do empregador e direito do trabalhador", resume Carlos Damarindo, diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região. "É um pleito antigo das empresas", observa.
Atualmente, quem sofre acidente indo de casa para o trabalho, ou no sentido contrário, e necessita de afastamento recebe um benefício, o chamado auxílio-doença acidentário. O funcionário continua tendo direito ao FGTS e garante estabilidade de 12 meses após o retorno ao serviço.
"Descaracterizar os acidentes que ocorrem no percurso da residência até o local de trabalho e vice-versa como sendo acidentes de trabalho, com o argumento de não ser tempo à disposição do empregador, além de ser um contrassenso, uma vez que que essas horas de locomoção já representam um dispêndio da força de trabalho da classe trabalhadora para quem a paga um salário, representa vulnerabilizá-la ainda mais, colocando-a num limbo da proteção social no Brasil, já tão fragilizada", critica Daniele Correia, socióloga do Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho (Diesat).
"Cabe a pergunta: se não é responsabilidade do empregador, será responsabilidade de quem? Do Estado brasileiro? Um Estado que tardiamente criou um sistema de seguridade social que completou apenas três décadas e, de forma inconclusa, vai se responsabilizar de que forma?", questiona Daniele.
Para ela, não faz sentido a argumentação governista de que era preciso "adaptar" a legislação previdenciária às mudanças na lei trabalhista. "A contrarreforma trabalhista por si só não faz nenhum sentido para os interesses da classe trabalhadora. Ela vai na contramão dos direitos sociais duramente conquistados, que já tinham seu limites, por nunca resolver os conflitos entre capital versus trabalho. Agora, descaracterizar também na legislação previdenciária indica claramente a opção política, o projeto de sociedade que estamos sendo impelidos a vivenciar."
Essa é também a perspectiva do diretor do Sindicato dos Bancários. "No nosso entendimento, o trabalhador já está à disposição da empresa (no trajeto)." Ele lembra que é uma situação recorrente, ainda mais em uma cidade como São Paulo, com limitações crônicas de mobilidade.
A mudança na CLT refere-se à jornada de trabalho. Um item aprovado na Lei 13.467, de "reforma" trabalhista, estabelece que o tempo gasto pelo empregado "desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador" não será computado na jornada.
O presidente da Força Sindical, Miguel Torres, divulgou nota em que critica a proposta, agora retirada do texto. "Entendemos que o trabalhador, ao sofrer um acidente a caminho ou voltando do trabalho, e impossibilitado de trabalhar, precisará mais do que nunca do auxílio do Estado, e não pode ficar desamparado como pretende o governo aos propor tais mudanças", afirma.
Sub-notificação
Os dados disponíveis são de certa forma "alarmantes", diz Damarindo. De 2012 a 2018, segundo ele, citando dados do Observatório do Ministério Público do Trabalho, foram notificados quase 400 mil acidentes dessa natureza. Desde casos relativamente simples, como cortes, até fraturas e esmagamento. A ocorrência mais comum é de fratura, com 31% dos casos.
De acordo com a técnica do Diesat, os acidentes de trajeto representam em média 20% dos acidentes de trabalho registrados na Previdência Social. Mas ela observa que, além desse número considerável, existe grande sub-notificação nas estatísticas, ou seja, casos não notificados. "E, obviamente, não quantifica aqueles que estão em trabalhos informais", lembra Daniele.
Ela acrescenta que muitos casos são caracterizados apenas como acidentes de trânsito, sem entrar na estatística da Previdência ou da Saúde. "Isso nos mostra uma questão importante: o país não tem sequer dados fidedignos à respeito da situação concreta em que está submetida a classe trabalhadora, apesar dos dados que temos já apontar um genocídio populacional. Em vez de caminhar em direção de maior proteção social, caminha na desconstrução da mínima que existe", aponta.
A MP do pretenso "pente-fino" na Previdência segue agora para o plenário da Câmara. Aprovada, vai para o Senado.