Em setembro de 2016, a Justiça do Trabalho de Santa Catarina manteve a condenação do Grupo JBS por utilizar o trabalho terceirizado de adolescentes em aviários. Eles eram contratados de forma irregular para “apanhar” frangos com as mãos e colocar dentro de caixas a serem transportadas em caminhões até frigoríficos, sendo expostos a agente biológicos nocivos e outros riscos, além de atuarem no período da noite. Em novembro de 2014, o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS) flagrou crianças e adolescentes de 11 a 14 anos trabalhando em uma fábrica de botões de pressão em Caxias do Sul. No local, eram submetidos à proximidade de produtos tóxicos e corrosivos, além de não contarem com equipamentos de segurança. Em agosto de 2015, oito jovens de 13 a 15 anos foram encontrados realizando atividades perigosas, manipulando substâncias tóxicas e operando máquinas, sem proteção, em uma empresa terceirizada do setor calçadista em Rolante (RS).
Esses são alguns casos de trabalho infantil acessíveis em uma busca rápida na internet. Contudo, na transmissão ao vivo que fez pelas redes sociais no dia 4 de julho, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) defendeu o argumento de que trabalhar quando criança não é algo prejudicial. “Olha só, trabalhando com 9, 10 anos de idade na fazenda, não fui prejudicado em nada. Quando algum moleque de 9 ou 10 anos vai trabalhar em algum lugar, está cheio de gente aí (falando) ‘trabalho escravo, não sei o que, trabalho infantil’. Agora, quando está fumando um paralelepípedo de crack, ninguém fala nada. Então trabalho não atrapalha a vida de ninguém”, disse o presidente, que ao menos afirmou que não apresentaria um projeto de liberação do trabalho infantil porque seria “massacrado”.
A fala prontamente gerou reação negativa pelo seu claro absurdo. Contudo, também motivou apoiadores do governo a saírem em defesa da liberação do trabalho infantil relatando supostas experiências próprias de trabalho na infância. Um dos casos mais notórios foi o da deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), que postou em sua conta no Twitter que, aos 12 anos, vendia brigadeiros na escola. “E o mais interessante era que eu não precisava, mas eu sentia uma enorme satisfação de pagar as minhas aulas de tênis com esse dinheiro. Eu me sentia criativa e produtiva”, disse.
Especialistas em estudar e combater o trabalho infantil ouvidas pelo Sul21 destacam que a frase da deputada é um exemplo da confusão que se faz sobre o trabalho infantil, que é comparar atividades que não afetam o desenvolvimento de crianças e adolescentes com outras que impõem jornadas de trabalho fixas, por vezes exaustivas, em condições insalubres e que acabam por dificultar ou até impedir a permanência na escola. Elas explicam que as primeiras não são alvos de proibição, denúncias, investigações e de campanhas de combate ao trabalho infantil.
“Quando a gente fala de uma criança trabalhando ilegalmente, não está falando de uma criança que auxilia os pais, que trabalha na empresa dos pais, que tem uma venda de brigadeiro para pagar suas aulas de tênis, não é isso. Quando a gente fala de trabalho infantil, estamos falando de exploração da mão de obra de uma criança ou de um adolescente. Temos que deixar bem claro isso, que é de uma criança que vai ser colocada no mercado de trabalho de uma forma ilegal e, por conta disso, vai perder a sua oportunidade de desenvolvimento adequado, não só desenvolvimento intelectual, porque vai abandonar a escola, não vai ter mais condições de estar na escola, mas também desenvolvimento físico, emocional e social”, diz a juíza do trabalho e presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (Amatra IV), Carolina Gralha.
A juíza Carolina Gralha afirma que o trabalho infantil atualmente é comum em atividades como fábrica de castanha no Nordeste, o que faz com que as crianças percam as digitais dos dedos das mãos, quebração de tijolos para substituir pedras no Norte e remoção da casca da mandioca para fazer farinha, em que acabam tendo os dedos amputados. “Essa é a realidade das nossas crianças que estão trabalhando, não é aquela criança que está auxiliando o pai na empresa tirando xerox, atendendo o telefone. A gente não está falando disso, porque essas vão ter preservados os seus direitos de brincar e ao desenvolvimento educacional. A gente está falando das outras”, afirma. “Dei exemplo do Norte e Nordeste, mas no nosso Estado também tem muita criança trabalhando na rua, em sinaleira”, diz.
A procuradora Ana Lúcia Stumpf González diz que o MPT tem hoje 51 inquéritos ativos para apurar denúncias de trabalho ilegal envolvendo menores de 16 anos no Rio Grande do Sul. Ela pondera, contudo, que hoje em dia é algo raro encontrar crianças trabalhando para empresas, também pela difusão da informação de que é proibido, e que o mais comum é encontrá-las em situação de bico, trabalho familiar, na agricultura e na mendicância. Ela argumenta, contudo, que é muito difícil processar os pais que submetem filhos a situações de trabalho infantil e que o que faltaria, na verdade, seriam mais políticas públicas que garantissem a permanência na escola, como atividades de contra turno.
“Como a gente vai processar o pai, fazer uma ação civil pública, porque os filhos estão trabalhando junto na terra da família? É inviável isso. É muito comum também ver criança acompanhando os pais na catação. Às vezes, as próprias mães alegam que não tem onde deixar, que tem que levar junto. Então, é um problema de política publica. Não adianta nada ajuizar uma ação contra uma catadora porque o filho está junto no carrinho. O problema não está nela, está no sistema que não tem vaga em creche”, diz.
A procuradora diz que, nos casos em que de fato há uma situação de emprego de menores de idade, o MPT primeiro propõe um termo de ajuste de conduta ao empregador e, caso ele não assine, pode ajuizar uma ação civil pública. Ana Lúcia afirma que uma forma efetiva de combater o trabalho infantil na agricultura é, por exemplo, que as próprias empresas adotem medidas de compliance para evitar que suas cadeias de produção envolvam a compra de matéria-prima produzida por crianças e adolescentes. Ela destaca que a adoção de um compromisso para erradicação do trabalho infantil por grandes fumageiras internacionais contribuiu para a redução dos casos de trabalho infantil na cadeia do fumo na região de Santa Cruz do Sul (RS), que era uma das que mais registrava esse problema no Estado e que hoje é, inclusive, sede de iniciativas do MPT-RS para a promoção da aprendizagem no meio rural e retirada de adolescentes do trabalho irregular, o Crescer Legal.
Laura Souza Fonseca, professora da Faculdade de Educação da UFRGS na área da educação de jovens adultos, realiza há mais de 20 anos pesquisas a respeito do trabalho infantil e sobre os motivos que levam à ausência escolar. “O que me preocupava era o porquê de a gurizada não ir à aula. Quando trabalhei na zona rural de Pelotas, as crianças sumiam na época da colheita. Eram os filhos dos chacreiros. Na zona urbana, era o trabalho doméstico”, diz, acrescentando que o que a preocupa é o trabalho no contexto da periferia, não atividades como atriz mirim, cantor ou modelo.
Em sua primeira pesquisa, feita durante o mestrado, Laura focou no caso de crianças e adolescentes que trabalhavam na Ceasa de Porto Alegre. “Começava ao amanhecer, na chegada dos caminhões. Os adolescentes ajudavam a descarregar. As crianças iam mais tarde, ajudar os pais a fazer a catação dos restos”, conta. Mais tarde, a partir da dissertação, um grupo de médicos realizou um estudo com esses menores e percebeu a relação do trabalho precoce com o surgimento de doenças do trabalho, como problemas na coluna. Como consequência dessas duas pesquisas, foi proibida a entrada de crianças na Ceasa.
Contudo, Laura considera que o enfrentamento ao trabalho infantil precisa dar conta do contexto que levou as crianças e adolescentes a estarem nessa realidade, a necessidade que as levou ali, e que a escola deve estar preparada para se adequar a ele. “O que acontecia depois da proibição? As crianças não entravam na Ceasa, mas estavam no entorno correndo sem ninguém tomando conta”, diz.
Trabalhar cedo diminui a renda
A fala do presidente Bolsonaro trouxe o argumento, posteriormente repetido por apoiadores, de que trabalhar cedo não traria prejuízos, o que é falso não só por causa dos casos de mortes e acidentes de trabalho, mas também porque as evidências indicam que quanto mais cedo se começa a trabalhar, pior será a remuneração no futuro. Em pesquisa feita a partir de dados da PNAD relativos aos anos de 2001, 2009 e 2011, a professora da Universidade de São Paulo (USP) Ana Lucia Kassouf apontou que as mulheres com apenas o ensino médio completo que começaram a trabalhar antes dos 16 anos tinham, em média, remuneração 12,1% inferior àquelas que começaram após essa idade. Entre os homens, a remuneração era 7,5% inferior. Essa diferença só se acentuava entre pessoas que concluíram o ensino superior: renda 19,3% mais baixa para mulheres e 20,9% mais baixa para homens. O quadro era ainda mais discrepante na comparação entre aqueles que começaram a trabalhar antes dos 9 anos e concluíram o ensino superior e aqueles com o mesmo nível educacional que só começaram a partir dos 23 anos: -40% entre as mulheres e -43,7% entre os homens.
“Também é um mito dizer que trabalhar cedo tira as crianças do crime. A grande maioria das pessoas que está hoje no sistema prisional foi vítima de trabalho infantil, só que a sociedade não enxerga como trabalho infantil o menino que é aliciado pelo tráfico de drogas, o que é uma das piores formas de trabalho infantil”, diz a procuradora Ana Lúcia.
Além disso, ela destaca que há uma relação entre o trabalho em condição análoga à escravidão, o trabalho escravo moderno, realizado em condições degradantes, com jornadas extenuantes, em que o trabalhador é privado de sua documentação e contrai dívidas impagáveis com o empregador, e experiências de trabalho infantil. Segundo ela, 90% das pessoas resgatadas nessas condições têm experiência prévia de trabalho infantil.
“São ciclos que se repetem, trabalho infantil, pobreza, baixa escolarização, subemprego, aliciamento para a atividade análoga de escravo e assim por diante. Em geral, o trabalho em condições análogas à escravidão é o subemprego, atividades de baixíssima necessidade de escolarização, como, por exemplo, lavoura, garimpo, ateliê de costura. Por conta de ter essa baixa escolarização, a pessoa fica mais propensa a aceitar qualquer coisa”, afirma.
Uma das pesquisas das quais Laura participou estudou as dinâmicas que envolvem o trabalho infantil nas cidades de Goiânia (GO), Fortaleza (CE), Rio de Janeiro (RJ), Porto Alegre (RS) e Belém (PA). Ali, percebeu-se que, especialmente em Fortaleza e Goiânia, não era raro que ao final do expediente em feiras de hortifrúti e de artesanato menores fossem aliciados para a exploração sexual ou para o tráfico. “Então, é insuficiente olhar só para a escola. É preciso garantir os direitos mínimos de moradia, saneamento, alfabetização, etc”, diz.
A professora aponta ainda que um tipo de trabalho infantil que é invisibilizado, mas que também pode ser danoso, é o doméstico que vai além da mera colaboração em tarefas. “Uma coisa é o trabalho solidário, em que a pessoa se responsabiliza pelas atividades de casa, isso é um elemento, mas se observamos famílias muito grandes, há casos em que a irmã mais velha toma conta da gurizada e da casa, perdendo sua oportunidade de estudar, de desfrutar da infância e adolescer, que são momentos muito importantes na formação social”.
Menor aprendiz
Além de ser necessário diferenciar exploração de trabalho infantil e trabalho colaborativo, a legislação brasileira já permite que jovens a partir de 14 anos comecem a trabalhar na condição de menor aprendiz, em contratos inferiores a dois anos e que respeitem a vida escolar dos adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente determina ainda que o aprendiz não pode trabalhar entre 22h e 5h, em condições perigosas, insalubres ou que possam prejudicar o seu desenvolvimento mental e físico.
A juíza Carolina diz que o contrato de aprendiz é o que vai propiciar ao adolescente uma iniciação no mercado de trabalho de forma sadia, porque tem regramentos que buscam preservar a infância e a juventude, respeito ao horário escolar, respeito à época de provas, respeito ao horário de descanso, remuneração e carteira assinada. “Isso é um investimento em um cidadão de fato. Aquele que já começa a compreender o mundo do trabalho e tem condições, inclusive, passado o período de dois anos de contrato, de passar a trabalhador regular da empresa”, afirma.
Ela destaca que, no passado, era possível contratar aprendizes a partir dos 12 anos. No entanto, convenções internacionais indicam que é a partir dos 15 anos que o adolescente já teria mais consciência de suas responsabilidades e sobre a segurança do próprio corpo, o que tornaria adequado começar a trabalhar. “Quando a gente fala de trabalho infantil, a gente fala de muito acidente de trabalho. Falamos de muita morte no trabalho. Porque, quanto mais novo tu é, menos consciência tu tens em relação à segurança. Quando tu vê uma criança em cima do muro, por exemplo, ela sabe que não deve andar ali e que pode cair a qualquer momento e se machucar ou até morrer. Mas ela anda porque não tem essa previsibilidade de consequência. Então, se definiu uma idade mínima porque é quando ela consegue desenvolver a consciência da responsabilidade, de assumir compromissos e de desenvolver compromissos de uma forma segura”.
De acordo com dados do Sistema de Informações de Agravo de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, 187 crianças e adolescentes, dos 5 aos 17 anos, morreram por causas relacionadas ao trabalho infantil entre 2007 e 2015. No mesmo período, foram registrados 20.770 casos graves de acidentes de trabalho envolvendo crianças e adolescentes, como 518 que sofreram amputações de mão. Apesar dos números, a OIT aponta que, entre 1992 e 2015, houve uma redução de 68% do trabalho infantil no Brasil, o que significa que 5,7 milhões de crianças e adolescentes deixaram essa situação ou evitaram entrar nela.