Conheci a doutora Wilses meses atrás, na chácara da amiga médica Ana Maria Costa, sua orientadora no mestrado em Saúde da Família na Escola Superior de Ciências da Saúde. Numa noite estrelada de sábado, eu, ela e Ana tomamos algumas taças de vinho e conversamos sobre política e amor diante da paisagem noturna de Brasília, vista do meio do mato… Me impressionaram a inteligência e a simplicidade de Wilses, da etnia Tapajó, do Pará, residente no Tocantins, casada e mãe de três filhas, que deixava lá em Palmas para vir estudar na capital federal.
Há umas duas semanas, recebi um e-mail dela: “Cynara, quero fazer um agradecimento ao Lula em público. Pelas cotas, que me tornaram médica e agora mestra. Defendi a tese hoje! Estou muito feliz. Se interessar me fale, estou aqui em Brasilia.” Lógico que me interessei. Marcamos no restaurante da tia Zélia, na Vila Planalto, o favorito de Lula quando governava o país, e lá fui ouvir sua história.
Ao chegar, a médica me mostrou suas anotações sobre o que desejava dizer ao ex-presidente. Ela contou que ficou muito nervosa ao defender a tese, e, na hora, nem lembrou de agradecer a Lula. Foi só depois de ver a carta do ex-presidente recusando o semiaberto que pensou em fazer um agradecimento público. Daí o contato com o site.
“Querido Lula: (…) Reconheço que és um preso político e estás preso por mim. Sim, eu represento o motivo da sua prisão, pois você escolheu lutar pelos pobres e isso passou a incomodar a elite deste país. Venho da aldeia, sou indígena, sou mulher e através da spolíticas afirmativas e para mim em especial as cotas indígenas me tornei médica. Ontem (30-09-2019), acredite, me tornei mestra, Lula, uma indígena, mulher, médica e agora mestra! Quero agradecer e dizer que lhe espero LIVRE, para que volte a assegurar a democracia.”
Wilses nasceu no território indígena Cobra Grande, em Santarém, demarcado pela Funai em dezembro do ano passado. Com 8.906 hectares e cerca de 600 indígenas, o território, situado na margem esquerda do rio Arapuins, reúne os povos Arapium, Tapajó e Jaraqui, distribuídos em cinco comunidades: Caruci, Lago da Praia, Santa Luzia, Arimum e Garimpo/Caridade. Ela é de Caridade.
O pai dela, Ulisses, chegou a ir para a cidade, mas não se adaptou à vida como vendedor de picolés e voltou à aldeia. A mãe, Ana, havia sido alfabetizada pelo pai, o avô de Wilses, que escrevia o ABC com carvão na parede de casa para os filhos. “Mamãe lia, gostava de ler. E ficava idealizando que os filhos tinham que estudar: ‘existe um mundo que eu não conheço, mas que eu quero que meus filhos conheçam’, dizia. Ela ficava entre Santarém e a aldeia, e carregava palhas para sobreviver. Um dia, de férias em Belém, Wilses viu a cidade alvoroçada, cheia de jovens nas ruas, um festejo só. Parecia até o Círio de Nazaré. “O que é isso?”, perguntou. “São os estudantes comemorando que passaram no vestibular”, alguém explicou. “Eu achei linda a comemoração do vestibular da UFPA”, conta. “E desejei ver o meu nome no jornal. Era uma menina cheia de sonhos.” Só havia então universidade federal na capital. A UFOPA (Universidade Federal do Oeste do Pará), em Santarém, seria criada por Lula em 2009, 20 anos depois.
Após 11 anos atuando como enfermeira concursada no Tocantins, surgiram as cotas para Medicina na Universidade Federal do Tocantins, a primeira universidade brasileira a adotar uma política de ação afirmativa para indígenas, em 2004: 5% das vagas deveriam ser reservadas para indígenas. E o sonho de Wilses se reacendeu. Ela tinha 38 anos quando passou para o vestibular de Medicina na UFT, em 2007. Era a primeira da lista de espera quando foi chamada, após uma desistência. Estava escrito nas estrelas que a menina tapajó seria a “doutora Wilses”. Trabalhava à noite como enfermeira e estudava de dia. Formou-se médica aos 44 anos, e se especializou em Saúde Indígena.
Dos 10 filhos de seus pais, Wilses, a caçula, foi a primeira a ter curso universitário. As mais velhas, professoras, acabaram fazendo também, para cumprir a exigência do MEC de que se formassem em Pedagogia para continuar lecionando. A terceira geração da família tem hoje 12 pessoas com nível superior, sete delas pelas cotas para os povos indígenas. “Eu nunca teria realizado o sonho de me formar em Medicina se não fosse pelas cotas. Minhas filhas não terão a dificuldade que eu tive.”
O primeiro plantão como médica formada foi na aldeia do povo Javaé, na ilha do Bananal. Depois, pelo programa Mais Médicos do governo Dilma, foi convidada para ser supervisora, atendendo, além dos Javaé, os Xerente, os Kraô, os Canela… “No Mais Médicos tive a oportunidade de percorrer todas as etnias do Tocantins, já que os médicos em geral não queriam atender área indígena”, diz. Depois que Temer e Bolsonaro desmontaram o Mais Médicos, os territórios indígenas voltaram a ter nenhum médico.
Wilses conta que teve medo de aceitar o convite de ir para o Mais Médicos por temer perseguição dos colegas. Circulava no Tocantins uma espécie de “lista negra”: quem atuasse no programa, não conseguia mais trabalho em lugar nenhum
Wilses conta que teve medo de aceitar o convite de ir para o Mais Médicos por temer perseguição dos colegas. Circulava no Tocantins uma espécie de “lista negra”: quem atuasse no programa, não conseguia mais trabalho em lugar nenhum. “A princípio recusei. Mas depois o coordenador do curso tocou no meu ponto franco: ‘estou precisando de gente para trabalhar em Território Indígena’. Lógico que não podia recusar.”
Quando fazia residência em Saúde da Família na FESP (Fundação Escola de Saúde Pública de Palmas), a médica despertou para a questão da saúde pública e resolveu se inscrever no mestrado. O tema de sua dissertação: Atenção pré-natal: um estudo acerca da Sífilis entre gestantes e neonatos em Palmas. Doença sexualmente transmissível antiquíssima e exclusiva do ser humano, a sífilis ainda contamina recém-nascidos na capital do Tocantins e Wilses descobriu por quê: apenas 33% das gestantes são submetidas ao teste que detecta o vírus na primeira consulta na rede pública.
O que Lula fez foi empoderar os indígenas, eles começaram a se organizar, a não ter vergonha da própria língua. E isso para essa elite que Bolsonaro representa é assustador. A Casa Grande surta quando a aldeia aprende a ler
Pergunto a Wilses sua opinião sobre os (raros) indígenas que se renderam ao bolsonarismo mesmo sabendo do perigo que ele representa para todas as etnias, como Ysani Kalapalo, que chegou a ir com o presidente à ONU. “Só ouvi falar dela depois que começou a acompanhar o presidente Bolsonaro. Nós, indígenas, estranhamos, pois as verdadeiras lideranças nascem na base, ou seja, representam o povo indígena e são apoiadas por este povo, já que estas lideranças são responsáveis por levar as demandas da população indígena. Me parece que ela não tem esse elo”, diz Wilses. “Lideranças sem esse perfil nós dizemos que querem apenas autopromoção, até porque os próprios caciques, que são nossas autoridades, não a apoiaram.”
E o que ela acha do discurso de Bolsonaro de que deseja “reintegrar’ o índio à sociedade”, ignorando que, nos 13 anos em que o PT governou, os indígenas entraram para a universidade, se tornaram médicos, antropólogos, mestres, doutores? “Ele não tem noção da cultura indígena, não é isso que o indígena quer”, argumenta. “Não é isso que meus parentes estão pedindo, o índio tem muito amor à terra, sair de sua terra representa sofrimento para ele. O que Lula fez foi empoderar os indígenas, eles começaram a se organizar, a não ter vergonha da própria língua. E isso para essa elite que Bolsonaro representa é assustador. A Casa Grande surta quando a aldeia aprende a ler.”