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A "escolha", o poste e a seletividade do justiçamento

Por Rafael Caliari

“O Poste”. Pintura em acrílica e nanquim por Aline Chagas

Me deparei com um argumento em relação a mais um linchamento:

Ele roubou por escolha própria e por isso não podemos inverter o valor das coisas e contar a história triste de vida dele depois que foi amarrado e morto. A população só faz isso, pois no Brasil ninguém vai preso e o crime fica impune.

São muitos pontos preocupantes nesse discurso que se torna cada vez mais comum. Vou explicar o motivo pelo qual não podemos concordar com nenhum deles.

Roubou por escolha própria

Pense no rosto de um ladrão. Agora pense em alguém pobre. Pense em um menor infrator. Pense em um traficante armado. Pense em alguém que comete latrocínio. Pronto, agora vamos a segunda parte: Pense no rosto de um médico. Pense no de um engenheiro. Pense em um empresário. Pense em um político. Pense em uma pessoa bem sucedida.

As pessoas destes dois grupos tem a mesma cor na sua cabeça? Provavelmente você pensou em um homem negro para todos na primeira parte e nenhum negro para os que estão na segunda parte. Isso faz de você racista? Não. Isso faz de você alguém que se acostumou a ver negros nestas situações.

Segundo o Censo 2010, 50,7% da população brasileira é parda ou negra. Metade da população é negra, mas os "bandidos" na sua cabeça são negros na totalidade.

Vamos então observar quem é o criminoso preso no Brasil no que tange educação. Segundo o InfoPen do Ministério da Justiça:

50,7% Ensino Fundamental Incompleto
14% Alfabetizados
13,6 Ensino Fundamental Completo
8,5% Ensino Médio Completo
6,1% Analfabetos
1,2% Ensino Médio Incompleto
0,9% Ensino Superior Incompleto
0,04% Ensino Superior Completo
0,03% Chegaram a um nível acima de Superior completo.

Então o criminoso é negro e de baixa escolaridade. Mas e a idade dele?

29,8% de 18 a 24 anos
25,3% de 25 a 29 anos
19,1% de 30 a 34 anos
17,4% de 35 a 45 anos
6,4% de 46 a 60 anos
1% acima de 60 anos
1,2% não informaram.

Já temos o perfil. Ele é negro, com baixa escolaridade e jovem.

Duas crianças estatisticamente criminosas, sem nunca cometer um crime / Foto: Rafael Caliari

Pesquisas por amostragem, como as que estamos acostumados nas eleições, nos provam que se você tem uma certa idade, uma certa renda, uma certa condição social (e quanto mais se colocam fatores, mais preciso fica), você provavelmente vai ter a mesma atitude, opinião e tendencia de fazer coisas que pessoas na mesma situação fazem, independente de estarem no mesmo círculo social ou ainda na mesma cidade ou estado.

Se o crime depende exclusivamente da "escolha", como a maioria esmagadora dos que "escolheram" o crime pertencem somente a um grupo? Se você acreditar que quem rouba, só "roubou por escolha própria", você vai chegar a conclusão que negros, de baixa escolaridade e jovens tem algum tipo de propensão nata a "escolher" o crime. Qualquer pessoa sã há de discordar. Nesse ponto que está o erro de percepção. Se a propensão é inata, ela é menos uma escolha e mais um fator causal, já que os que "escolheram" são bem homogêneos. Observando o cenário no macro, podemos facilmente chegar a conclusão que a desigualdade é causa da criminalidade e os negros estão na posição de vulneráveis.

Se o crime fosse somente uma "escolha", estatisticamente, os criminosos estariam divididos de maneira igual em todos os grupos da sociedade. E quem disse que não estão?

A população só faz isso, pois no Brasil ninguém vai preso e o crime fica impune

Impunidade e percepção de impunidade são coisas diferentes. O Brasil hoje tem o terceiro maior número de presos do mundo. Novamente segundo o InfoPen, houve um crescimento de 21,4% na população carcerária brasileira no período de 2008 a 2012. Ainda há impunidade? Muita. Mas ela está concentrada em setores que historicamente não vão presos.

Quando um empresário, médico, engenheiro, juíz [...] é preso, a notícia é publicada nacionalmente, dada a raridade do fato. Enquanto um jovem, negro e de baixa escolaridade não recebe ao menos uma notinha no canto da página. Se fossem dar nota para todos estes, faltaria jornal. A população acorrenta, lincha e mata o criminoso negro, jovem e de baixa escolaridade e justifica a selvageria com a impunidade que sente de outros setores. Para estes que são mortos, a justiça funciona muito mais (e cada vez mais, segundo dados) do que para aqueles que ao invés de acorrentar, o povo selvagem chama de "doutor".

A base da sociedade punindo a base da sociedade enquanto a elite observa

Não podemos inverter o valor e contar a história triste de vida do criminoso

Temos que contar essas histórias. Precisamos contar essas histórias. É necessário! Ser criminoso é uma condição. Ninguém "é" criminoso, a pessoa "está" criminosa. Cometer um crime não é algo nato. Ninguém nasce criminoso. Quando não contamos essas histórias, resumimos um ser humano a um pedaço dele. O efeito colateral disso, é acreditar que ele sempre foi criminoso, nasceu criminoso e sempre será criminoso, ao invés de ter cometido em um ponto da vida um ato criminoso.

Você gostaria que, no dia da sua graduação, somente a sua nota 2 de matemática da quinta série contasse como um exemplo irrefutável da sua capacidade de aprendizado? Na época daquele fato, você foi punido, fez recuperação, se habilitou e seguiu em frente. Não seria justo a expulsão perpétua do mundo escolar, quem dirá sem um julgamento. Você, como ser humano, tem a capacidade de aprender, mas foi punido pelo seu erro. Não contar a história completa é resumir aquele ser humano a um erro. É desumanizar. E todas as vezes que um grupo foi desumanizado na história, grandes atrocidades foram cometidas e geralmente com apoio, ou pelo menos omissão, dos que foram levados a acreditar que condições inatas eram natas.

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