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Dá para controlar os abusos de programa policiais na TV? Lei uruguaia mostra que sim

Por Brasil de Fato                                                                                         

 

As imagens das câmeras de segurança de uma pizzaria em Montevidéu flagraram a execução de um garçom durante um assalto, em 2010. No dia seguinte, os jornais vespertinos passaram a exibir, exaustivamente, as fortes imagens da morte do jovem. E assim, foi durante semanas, enquanto a polícia investigava e buscava os assassinos.

O caso era só mais um, em uma época em que a televisão uruguaia exibia, diariamente, imagens de cadáveres, troca de tiros, sangue e afins. A partir do caso da execução na pizzaria, o governo do Uruguai, então presidido por José Mujica, decidiu que era necessário impor limites aos noticiários vespertinos.

Gustavo Gomez, que comandou a Diretoria Nacional de Telecomunicações (Dinatel) - cargo equivalente ao de ministro das Comunicações - na administração Mujica (2010-2015), conta que foi o avanço das discussões sobre uma lei para impor limites aos noticiários que fez surgir um projeto maior: a Lei de Meios. O novo marco regulatório das comunicações do Uruguai foi aprovado em 2014 e passou a valer em 2015.

“Precisávamos tomar alguma medida para proteger a infância da exposição dessas imagens. Porém, essa discussão se prolongou e ganhou mais fundo, ficou mais ampla e se tornou a Lei de Meios, essa foi a origem da discussão”, relembra Gomez.

A Lei de Meios uruguaia determinou que, entre 6h e 22h, não poderia haver imagens com conteúdo violento na televisão, o que desestimulou os programas com inclinações policialescas. Desde 2015, porém, apenas três vezes emissoras foram notificadas por infringirem a lei.

Um alerta nacional

No Brasil, José Luiz Datena, Sikera Junior e Luiz Bacci se tornaram os expoentes atuais de uma cultura vespertina da televisão brasileira: os programas policiais. Ancorados na defesa da violência praticada por policiais e o uso de imagens de assaltos, perseguições, troca de tiros e cadáveres, essas atrações garantem audiência às emissoras e se mantém na grade dos canais há décadas.

Datena, que hoje apresenta o "Brasil Urgente", na Band, é um símbolo dos programas policiais no país. Com passagens pelas emissoras que apostam no gênero, Band, Record e RedeTV, o apresentador não economiza elogios aos policiais militares, mesmo diante de cenas de abusos que são punidas pela própria corporação. Em junho de 2015, Datena protagonizou um episódio que marcou o gênero na televisão brasileira. O apresentador colocou no ar imagens feitas de um helicóptero que mostravam policiais perseguindo homens suspeitos de um assalto.

Entusiasmado, o apresentador narrou a operação. “A polícia vem atrás, em velocidade atrás dos marginais, Que coisa incrível isso aí! Que imagem! Que imagem impressionante” Após alguns minutos de perseguição, os suspeitos perdem o controle da moto e caem. Imóveis, os dois não esboçam reação. Porém, um dos policiais vai até eles e dispara quatro vezes, à queima-roupa. A imagem volta para Datena que defende a ação do agente.

“Se ele atirou é porque o bandido estava armado. E fez muito bem. Não sei se os caras apontaram uma arma para o policial, não vi. Provavelmente, sim”, argumentou Datena. Pelas imagens, não é possível ver se os suspeitos estavam armados.

O mais jovem entre os apresentadores de programas policiais é Luiz Bacci, que está à frente do “Cidade Alerta”, na Record. No dia 18 de fevereiro, o jornalista provocou sua audiência ao anunciar para uma mulher desesperada pelo sumiço de sua filha (Marcela) que tinha uma informação sobre o caso. “A senhora quer mesmo saber as novidades?”. Ao ouvir a confirmação da mulher, colocou, ao vivo e por telefone, o advogado de seu genro para falar com ela.

“Ele deu um breve depoimento, confessou a autoria do crime e nos levou ao local em que o corpo da Marcela foi encontrado”. Em seguida, os telespectadores ficaram com um espetáculo deplorável, com uma mãe gritando a perda de sua filha assassinada pelo namorado. A mulher desmaiou e teve que ser carregada.

Sucesso em Manaus, capital do Amazonas, onde comandava o “Alerta Amazonas”, que por diversas vezes superava a Rede Globo em audiência, Sikera Junior passou a ser a aposta da RedeTV em 2020 e ganhou um programa nacional e diário, o “Alerta Nacional”.

Na estreia da atração, o apresentador triplicou a audiência da RedeTV no horário, saindo de 0,5 ponto (cada ponto equivale a 75 mil televisores ligados no canal) e saltando para 1,7 pontos. Durante o noticiário, o apresentador, que transita entre o caricato e juvenil, criou um quadro que chama “CPF cancelado”, onde celebra as mortes de pessoas consideradas suspeitas por terem cometido algum crime. No dia 27 de março deste ano, Sikera mostrou imagens de uma tentativa fracassada de assalto que terminou com o proprietário do imóvel esfaqueando o assaltante.

“Esse cara merece um prêmio, é um herói brasileiro. E o ladrão é tao cabra safado que ainda sujou a cortina dele de sangue, é um miserável, deu prejuízo. A pergunta é: Ele morreu? Morreu. Agora, vamos cantar a música que não sai da cabeça da criançada. Vamos ensaiar a música que já é sucesso na igreja, na Febém, na delegacia e nas igrejas que estão sem culto. Solta DJ”, anuncia Sikera. Em seguida, entra a canção que lembra uma marchinha de carnaval. “Ele morreu, ele morreu. Problema dele, antes ele do que eu.”

Não há novidade

Em 2018, Sikera trabalhava na TV Arapuan, em João Pessoa, na Paraíba, onde apresentava o “Cidade em Ação”. Após imagens de uma suspeita detida, o apresentador afirmou que ela não pintava as unhas e que, por isso, era uma “sebosa” e “vagabunda”. Em seguida, afirmou que a jovem devia ser uma cheiradora de pó, jumenta, que precisava de “um rodo bom para lavar a cela, aprendera a lavar e ser dona de casa.”

Iara Moura, coordenadora executiva do Coletivo Brasil de Comunicação Social (Intervozes), lamenta a existência desse gênero na televisão brasileira. “O fenômeno dos programas policiais é muito nocivo para o Brasil. Há vários artigos que mostram que eles violam vários tratados internacionais que o Brasil é signatário, violam leis brasileiras com a exposição indevida de pessoas, o desrespeito à presunção de inocência e a violação de direitos de crianças e adolescentes.”

O Intervozes denunciou, em 2016, a TV Cidade, afiliada da Record no Ceará. À época, o programa “Cidade 190” veiculou, por quase 20 minutos, cenas do estupro de uma criança de 9 anos. Durante a reportagem, a jornalista divulgou o endereço da vítima e a identidade da família.

O Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações multou a emissora em R$ 23.029. “Valor irrisório”, lamenta Moura. No Brasil, o teto para este tipo de infração é de R$ 76 mil.

A Band foi condenada, em 2015, a pagar R$ 60 mil em indenização, por conta de uma entrevista conduzida pela repórter Mirella Cunha, no Brasil Urgente, em que a jornalista zomba de um suspeito de estupro por oito minutos, por conta do desconhecimento do jovem sobre seus direitos e por não saber que deveria fazer um exame de corpo delito para provar que não havia cometido o crime.

É preciso legislar

O que garante a permanência desse gênero na televisão brasileira é que, quando não são os líderes de audiência geral, garantem uma fatia importante do público às emissoras. O Cidade Alerta, com média de 8 pontos diários, é o maior sucesso Record. Para Moura, esse índice não tem relação com a qualidade do conteúdo.

“Não temos muita diversidade na TV e no Rádio brasileiro. O que temos diariamente são oito horas de programas policialescos durante a tarde. Falta poder de escolha e diversidade. Há também alguns elementos, como os apresentadores se colocarem como justiceiros, como defensores dos mais pobres e desassistidos pelo Estado. Então, a primeira vez que as pessoas se viram na TV foram em programas como o Aqui e Agora”, explica.

Especialista em Gestão Pública, professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani condena os programas policiais brasileiros e afirma que seria importante replicar a legislação uruguaia no Brasil.

“Muitos deles não contam a realidade dos fatos, exageram e incentivam uma sensação de pânico na população que não é correspondente com a realidade. É uma boa medida que poderia ser repetida aqui no Brasil”, encerra Alcadipani.

Moura explica que é “preciso criar mecanismos para regular o setor” e que isso “não pode ser confundido com censura”. O ex-ministro Gustavo Gomez celebra o sucesso desse aspecto da Lei de Meios.

“A lei nunca teve como objetivo reduzir a criminalidade ou discurso dessa criminalidade. O objetivo da lei foi proteger as crianças e adolescentes de certas imagens. O que estamos falando é de como a quantidade de informações policiais, impacta a percepção da população sobre a segurança. Porém, a lei não tinha esse objetivo. A criminalidade aumentou e os programas seguiram noticiando temas policiais, dando espaço para essas notícias, mas sem as imagens. Em todo esse tempo, não vimos mais um braço cortado e nem assassinatos”, finaliza.

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