Nas décadas de 1980 e 1990, execuções em massa levavam pânico e terror à região metropolitana de São Paulo. Moradores viviam assustados e corpos amanheciam estirados pelas ruas. O cenário mudou ─ para melhor ─, mas as chacinas não foram extintas. Pelo contrário, continuam a assombrar a população e turbinar as estatísticas de criminalidade.
O sociólogo Sérgio Adorno conhece a fundo o problema. Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, ele é uma das principais referências no estudo sobre o tema.
Na quinta-feira passada, uma chacina em Osasco e em Barueri resultou na morte de 18 pessoas e suscitou temores de um novo ciclo de violência.
Um levantamento do Instituto Sou da Paz, com base em dados obtidos junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP SP), mostra que o número de mortos em chacinas na Região Metropolitana de São Paulo dobrou no primeiro semestre deste ano na comparação com o mesmo período de 2014 ─ e sem que as vítimas fatais do episódio mais recente fossem contabilizadas.
Em entrevista à BBC Brasil, Adorno abordou as causas mais comuns para as chacinas, o papel da polícia como fator gerador de violência e a comoção popular ante este tipo de crime.
"Vivemos uma 'anestesia moral'. Não nos sentimos solidários com a morte dos outros, especialmente dos mais vulneráveis. Não se generalizou no Brasil o sentimento de que a defesa e a promoção da vida é um direito de quem quer que seja, mesmo de um criminoso", afirma.
BBC Brasil - Na semana passada, uma chacina resultou na morte de 18 pessoas na Grande São Paulo. Nas décadas de 80 e 90, esse tipo de crime era muito mais frequente. Por que até hoje execuções sumárias como essa ocorrem?
Adorno - As causas são complexas. Infelizmente, não temos estudos que permitam uma radiografia completa desses acontecimentos. Para isso, seriam necessárias investigações rigorosas e imparciais, o que, na grande maioria das vezes, não acontece.
Como resultado, nós, pesquisadores, ficamos dependendo ora do que é veiculado pela imprensa ora do que ouvimos em campo. É claro que essas informações são muito importantes, mas também são extremamente parciais. Mas temos algumas certezas.
BBC Brasil - Quais são elas?
Adorno: Em primeiro lugar, observamos que as chacinas costumam ser fruto de disputas pelo controle de território e de negócios ilícitos, seja entre grupos criminosos ou entre criminosos e a polícia. Em segundo, que esse tipo de crime tende a aumentar nos períodos em que crescem as mortes praticadas pela polícia.
É o que chamo de 'ciclo de vinganças'. Ou seja, um policial é assassinado e a partir daí várias pessoas são executadas, muitas delas sem qualquer envolvimento com atividades criminosas. Aqui vale lembrar que mesmo que elas não fossem inocentes, deveriam estar sujeitas ao Estado de Direito, julgadas e processadas segundo as regras que prevalecem numa sociedade democrática.
Por último, que as chacinas têm um componente racial muito forte. A imensa maioria das vítimas é jovem, negra e pobre. E moradora da periferia das regiões metropolitanas.
BBC Brasil - Por que as chacinas parecem ter localização e alvo muito específicos?
Adorno: Não podemos generalizar. Mas na periferia encontramos uma carência de instituições de promoção de bem-estar e de proteção social; escolas e hospitais são algumas delas. Por outro lado, há também casos em que regiões desprovidas disso apresentam taxas de violência muito baixas.
Nesse caso, outros fatores têm de ser analisados. De qualquer forma, o alvo é normalmente o mesmo: a população de baixa renda, especialmente a de jovens negros pobres. Há um componente racial indissociado às chacinas.
Embora estudos mostrem que o negro não seja potencialmente mais criminoso do que o branco, essa associação entre cor e crime continua sendo muito forte. Não existe aleatoridade. O crime não é privilégio de raça, mas a punição é.
BBC Brasil: Essa é uma das razões pelas quais esse tipo de crime não gera grande comoção popular?
Adorno: Sim. Faça uma reflexão: o que aconteceria se o mesmo crime tivesse acontecido em alguma região nobre da cidade? A comoção popular seria provavelmente muito maior.
Mas também vivemos uma 'anestesia moral'. Estamos anestesiados pela violência, e não nos permitimos nos preocupar com os outros, especialmente os mais vulneráveis.
Tampouco se generalizou no Brasil o sentimento de que a defesa e a promoção da vida é um direito de quem quer que seja, independentemente das diferenças de raça, etnia, classe social, procedência regional. Pelo contrário, o pensamento generalizado é de que os direitos devem ser preservados apenas para quem obedece às leis. Já aqueles potencialmente transgressores não devem ter nenhum direito, inclusive direito à vida.
BBC Brasil: A participação de policiais em chacinas é apontada como frequente. Qual papel cabe à polícia nesse processo?
Adorno: A sociedade tem de cobrar da polícia respeito às leis. Quando a população entende que o policial está numa guerra e nesse conflito armado ele pode usar a força letal sem limites, o Estado de Direito sai enfraquecido.
Temos de fazer uma crítica sobre como a polícia funciona, ao modo como ela está organizada e como exerce suas atribuições constitucionais. Interessante notar que a polícia como instituição tem, notoriamente, um grau de confiabilidade muito baixo junto à sociedade, mas isso não se reflete na maneira como parte dela vê os agentes policiais. Basta ver as 'selfies' registradas com PM's durante as manifestações do último domingo.
Não podemos divorciar o desempenho da polícia de seus integrantes. Temos de discutir a natureza das decisões, como elas operam e por que elas produzem esses policiais que são violentos e causam essas mortes.
BBC Brasil: Existe solução possível para as chacinas?
Adorno: Existe, mas essa solução tem de ser conjunta, entre governo e sociedade. Do lado do Estado, é necessária uma ampla reforma da atual política de segurança. E isso inclui uma apuração rigorosa sobre a responsabilidade criminal de agentes que violem as leis.
A impunidade é um elemento-chave nesse processo. Se o policial que comete um crime não for punido, ele se sente legitimado e vai cometê-lo novamente. Do nosso lado, temos de construir uma base de solidariedade pela qual todos sintam que preservar a vida é um valor absoluto.
A maioria de nós não se dá conta de que a situação que vivemos hoje não favorece a ninguém. Não é saudável viver numa sociedade onde nos sentimos permanentemente ameaçados. Enquanto não pensarmos em uma política de segurança pública que beneficie a todos sem qualquer tipo de distinção ─ e que defenda o direito à vida, não teremos paz.