No começo do ano, uma foto viralizou nas redes sociais: a imagem retratava uma mulher em uma maca dentro do museu Rijksmuseum, em Amsterdã.
Ela apreciava pela última vez a pintura de Rembrant (1606-1669), sua favorita, e a visita só foi possível graças a uma organização de caridade holandesa que ajuda pacientes terminais a realizar seus últimos desejos.
"Descobri que as pessoas que estão para morrer têm pequenos desejos", diz Kees Veldboer, motorista de ambulância que fundou a ONG, chamada Stichting Ambulance Wens (ou "Fundação Ambulância dos Desejos", em tradução livre).
Em novembro de 2006, Veldboer levava um paciente terminal, Mario Stefanutto, de um hospital para outro. Mas, logo depois dele ter sido colocado na maca, os funcionários responsáveis pela ambulância foram avisados de que haveria um atraso, pois o hospital que receberia o paciente não estava pronto.
Stefanutto não queria voltar para a cama onde havia permanecido nos últimos três meses. Veldboer perguntou, então, se ele gostaria de ir a algum outro lugar.
Em seguida, o marinheiro aposentado perguntou se poderia ser levado ao canal Vlaardingen. Ele queria ver a água e dizer um último adeus à baía de Roterdã. Era um dia de sol e os dois ─ Veldboer e Stefanutto ─ ficaram nas docas por quase uma hora.
"Lágrimas de alegria escorreram pelo rosto dele. Quando perguntei se ele gostaria de navegar de novo, ele disse que seria impossível, pois estava em uma maca", lembra Veldboer.
Mas o motorista de ambulância decidiu transformar este último pedido em realidade. Ele perguntou ao chefe se poderia pegar emprestada uma ambulância em seu dia de folga, pediu a ajuda de uma colega e entrou em contato com uma companhia de passeios de barco que trabalha em Roterdã.
Eles toparam ajudar e, na sexta-feira seguinte, para o espanto de Stefanutto, o motorista de ambulância apareceu no hospital para levá-lo para um passeio de barco.
"Me faz bem saber que ainda há pessoas que se importam com as outras...Posso dizer a partir da minha experiência que um pequeno gesto de alguém pode ter um grande impacto", escreveu Stefanutto em uma carta, pouco antes de morrer.
Na cozinha
Foi ali o começo da ONG criada por Veldboer. Ele e sua esposa, Ineke, que é enfermeira, começaram tudo na mesa da cozinha há oito anos. Agora, eles contam com 230 voluntários, seis ambulâncias, uma casa de campo e estão perto de ter realizado 7 mil desejos de pacientes terminais.
Em algumas ocasiões, os desejos são realizados no mesmo dia. Em média, a entidade atende quatro pessoas por dia, de diferentes faixas étarias.
A única exigência é que os pacientes estejam em estado terminal e não possam ser transportados de outra forma a não ser em uma maca.
"Nossa paciente mais jovem tinha dez meses de idade, era uma gêmea e estava em um hospital infantil, nunca tinha ido para casa. Os pais dela queriam se sentar no sofá com ela uma única vez."
"E nossa paciente mais velha tinha 101 anos ─ ela queria andar a cavalo uma última vez. Nós a levantamos até o cavalo com a ajuda de um caminhão e, depois, a levamos em uma carruagem - ela acenava para todo mundo como se fosse da realeza. Foi um bom desejo", conta Veldboer.
Outras organizações oferecem dias fora do hospital e realização de desejos a pacientes doentes, mas a Stichting Ambulance Wens foi a primeira a fornecer uma ambulância e apoio médico total.
Sempre há uma enfermeira a bordo e os motoristas são especializados, geralmente já trabalharam na polícia ou bombeiros. Já as ambulâncias foram adaptadas e possuem janelas, para que os pacientes possam apreciar a vista. Cada um deles recebe um urso de pelúcia chamado Mario, batizado em homenagem a Stefanutto.
'Satisfação'
"Nós, voluntários, ficamos muito satisfeitos ao ver as pessoas se divertindo", diz Roel Foppen, um ex-soldado que trabalha como motorista. Nos últimos seis anos, ele ajudou a realizar 300 desejos.
Certa vez, ele chegou a viajar à Romênia, num percurso de cerca de 4,5 mil quilômetros, para realizar o desejo de uma mãe, Nadja, que, apesar de viver na Holanda havia 12 anos, queria morrer junto dos filhos ─ de três e sete anos ─ que haviam voltado ao país-natal.
"Ela estava tão doente que nem podíamos tocá-la", diz Foppen.
Ele lembra que o comboio saiu na manhã de uma quinta-feira e, quanto atravessavam a Alemanha, Nadja piorou, e foram obrigados a parar em um hospital.
Os médicos recomendaram que ela permanecesse ali, mas Nadja queria ver os filhos. Depois de um atraso de três horas, eles seguiram viagem. Quando atravessaram a fronteira da Romênia, Nadja disse: "Pode tirar a maca (da ambulância), agora eu posso morrer!".
"Só mais 600 quilômetros até sua mãe e filhos ─ você consegue aguentar só mais um pouco?", perguntou Foppen.
No sábado, a ambulância chegou a Bucareste, capital da Romênia, para um encontro emocionante. E, depois, voltou, deixando Nadja no país.
A família enviou um cartão depois a Foppen, dizendo que Nadja havia morrido duas semanas depois do episódio.
No museu
Foppen registrou uma foto agora famosa no Rijksmuseum. Ele estava do outro lado da galeria em Amsterdã, com sua colega Marie Knot, atendendo ao desejo de outra pessoa.
Eles cuidavam de um homem chamado Donald, que visitava o museu regularmente com o parceiro de 30 anos ─ os dois homens haviam se casado na semana anterior.
"O bom é que ele dava as ordens. Ele nos disse quais quadros queria ver e conseguiu nos falar muita coisa sobre eles, então nós aproveitamos também", diz Foppen.
A última obra em exposição era uma que Donald nunca tinha visto, Simeão com o menino Jesus no Templo, uma pintura que Rembrandt não conseguiu finalizar.
"Agora eu percebo que uma vida nunca está finalizada. Minha vida não está acabada e este quadro está inacabado", disse Donald a eles, muito emocionado.
"Vi o que queria ver, podemos ir agora", acrescentou.
Marie Knot diz que é uma honra compartilhar momentos como este. Ela conta ter conhecido a ONG quando foi convidada por um paciente com câncer. O desejo dele era ver uma grande construção feita no porto de Roterdã.
Antes de ficar doente, ele conferia o progresso da obra toda semana mas, mas acabou sendo levado para conhecer toda a construção. A experiência foi tão boa que Knot escreveu para Veldboer se oferecendo para trabalhar na organização.
"Toda vez é especial. Você discute com seus colegas no caminho para casa e é sempre muito especial, não importa quão pequeno (é o desejo)", afirma Knot.
"Atendi uma senhora que só queria um copo de advocaat (um licor de ovo) em casa. O filho dela trouxe a garrafa, fomos até a casa dela, ela experimentou e nós voltamos. Este era o desejo dela."
"As pessoas perguntam se ficamos esgotados, se não é comovente demais sempre lidar com os últimos desejos. Sim, é, mas frequentemente as pessoas estão prontas para morrer, pois elas já foram tão longe. E é sempre bom dar a elas algo que realmente querem", diz.
Girafa
Em 2014, um dos desejos realizados pela ONG virou manchete no mundo todo.
Frans Lepelaar é um ex-policial que investigava fraudes e agora é motorista de uma das ambulâncias da organização. Ele e o colega, Olaf Exoo levaram Mario, um homem de 54 anos com dificuldades de aprendizado ao zoológico Diergaarde Blijdorp, em Roterdã, onde ele havia trabalhado durante 25 anos cuidando da manutenção.
No final do turno, Mario costumava visitar os animais. Lepelaar e Exoo decidiram, então, levar Mario para uma última visita.
Quando eles chegaram ao local onde ficavam as girafas, foram convidados a entrar. De repente, uma girafa se aproximou de Mario e deu uma lambida em seu rosto. Ele estava doente demais para falar, mas "podia ver sua alegria", diz Exoo, que registrou a foto do "beijo da girafa".
A imagem rodou o mundo.
Para Exoo, os pequenos desejos são os melhores.
"Aquelas coisas que para nós são normais, mas que ficaram impossíveis para estas pessoas", explica.
Vetos
Veldboer afirma que alguns médicos proibiam as ações da ONG mas, à medida que o trabalho se tornou mais conhecido, os vetos foram diminuindo. Agora, é mais comum o hospital ou o asilo fazer o pedido em nome do paciente.
"Havia uma senhora que queria ir ao casamento do neto. O asilo disse que não, mas ela estava desesperada então, no fim, eles nos ligaram. Nós a levamos e ela adorou. No caminho de volta ela disse 'vocês nem sabem como isto foi importante para mim'", disse. A senhora morreu naquela mesma noite.
Levando em conta a gravidade do estado de saúde dos pacientes, é talvez surpreendente que, entre os cerca de 7 mil já atendidos pela ONG, apenas seis morreram durante a realização do desejo.
Nesses casos, o papel dos que estão na ambulância é dar apoio à família e tomar as medidas necessárias em relação ao corpo. Segundo Veldboer, em todos os seis casos as famílias ficaram agradecidas pelo suporte da entidade.
Depois do enorme sucesso da organização na Holanda, Veldboer ajudou a estabelecer organizações parecidas em Israel ─ depois de levar uma mulher judia a Jerusalém, onde ela queria morrer ─ então na Bélgica, Alemanha e Suécia.