Com um auditório lotado de ativistas de diversos movimentos sociais e populares, pastorais, dirigentes sindicais e parlamentares, o teólogo, filósofo, escritor, professor e membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, Leonardo Boff, fez uma exposição, na manhã desta segunda-feira (25), no Seminário “Em Defesa da Casa Comum – Uma cidade para seu povo”, na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (Estef), em Porto Alegre.
Antes da palestra, o encontro teve uma mística conduzida pelo bispo da Igreja Anglicana, Humberto Maiztegui. A mesa foi composta pela deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), organizadora do evento, e pelo frei Nestor Inácio Schwerz, responsável pela escola.
“O desafio que temos nesse encontro é a reflexão sobre nossas responsabilidades”, ressaltou a deputada. Ela lembrou os desastres ambientais e as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, em especial no Vale do Taquari.
Maria do Rosário destacou o descuido que vem sofrendo a capital gaúcha. “Como podemos enfrentar a crise climática e a injustiça social na nossa cidade para construirmos uma consciência, um projeto de cidade sustentável com respeito a tudo que vive?”, questionou. “Caminhemos de mãos dadas para enfrentar os efeitos dessa crise”, apontou.
“Pacto de cuidado da terra”
Boff começou respondendo a indagação feita pela deputada e citou trechos da Carta da Terra. “Estamos em momento crítico da história da terra, o momento que a humanidade deve tomar uma decisão. A decisão é essa: ou fazemos um pacto de cuidado da terra e uns com os outros, ou assistiremos a nossa destruição e a destruição da diversidade.”
Para o filósofo, a humanidade chegou a um momento crítico, em um ponto da autodestruição, criticando ações humanas como bombas nucleares, armas químicas e biológicas.
“Não estamos indo ao encontro do aquecimento global, nós chegamos atrasados. Nós ultrapassamos o aquecimento global, entramos em um novo regime climático da terra. O clima da terra vai mudar a partir de agora e crescer cada dia um pouco”, disse.
O teólogo lembrou do Acordo de Paris, em 2015, do qual o Brasil foi signatário. O documento estipula a redução até 2025 das emissões de gases de efeito estufa em até 37% (comparados aos níveis emitidos em 2005), estendendo essa meta para 43% até 2030. “Para que em 2030 chegássemos a um grau e meio de aquecimento, ninguém fez coisa alguma, pelo contrário, todo ano emitimos 40 bilhões de toneladas de dióxido de carbono”, observou.
Para Boff, chegamos no ponto de inflexão. “A ciência já não pode fazer mais nada, o que pode fazer é advertência. Ela não consegue evitar o curso do aquecimento diuturno e com os efeitos danosos dessa mudança climática. Nos dois últimos dois anos, chegamos na fase mais perigosa, que é o piroxênio. Há fogos por toda parte do planeta.”
"Temos que reaprender a tratar os rios"
“Todo rio tem dois leitos, o comum que ele corre e o leito alagado que é reservado para as enchentes, que pertencem ao rio. Junto a esse leito alargado, não podemos construir nada, mas devemos garantir a mancha similar, porque esse território pertence ao rio. Temos que reaprender a tratar nossos rios, respeitar o que é dele. Não só o leito comum”, alertou
Segundo ele, não estamos aprendendo os sinais dados pela natureza. “Como diz Gramsci, a história ensina, mas ela quase não tem ouvidos. Temos que aprender a história.”
“Precisamos nos reinventar”
Conforme Boff, a terra mudou e precisamos nos reinventar como seres humanos. Sem isso, pontuou, "vamos ver esses efeitos danosos como normais e cada vez mais frequentes".
“Para cada cidade, para cada vila, este é um grande desafio. Essa mudança vai criar os efeitos extremos como algo normal e extremamente danoso aos seres humanos e cada vez mais frequentes. E ai daqueles que não se adaptam, porque, se não se adaptarem, irão desaparecer. Mas nós temos o otimismo como aliado, e isso é importante, nós temos que desenvolver alguns valores”, afirmou.
Nova mente, novo coração
“Como nunca antes na história, o ser humano deve fazer um novo começo. Esse novo começo exige uma nova mente e um novo coração. Nova mente significa não entender a terra como foi entendida até agora pelo paradigma industrialista, a terra como uma espécie de baú cheio de recursos para um mercado que comercializa todas as coisas, mas entender a terra como algo vivo, físico, químico, ecológico, para que forneça vida e que dá vida a todos nós. Temos que mudar nossa compreensão da terra, temos que entender que nós somos terra”, enfatizou o filósofo.
Boff relacionou que a nossa inteligência ficou irracional ao ponto de esquecermos que em nosso coração há muitas ciências. “A ciência esqueceu do coração, essa chave que habita o mundo das ciências, habita a empatia, habita a amizade, especialmente habita o amor. Nós precisamos resgatar o coração.”
Para o filósofo, tudo é sistêmico, tudo é relação, nada existe fora da relação. “Hoje separamos a cabeça do coração, precisamos enriquecer a inteligência, precisamos dela para dar a luz e a compreensão da complexidade dos problemas das comunidades, mas precisamos fazer com o coração, com sentimento, enriquecer essa inteligência. para que seja emocional e não apenas racional”, pontuou.
Ela citou a sua obra “O TAO da Libertação”, escrita com o cosmólogo canadense M. Hathaway. Esta obra é resultado de 13 anos de estudos, que foram reconhecidos com uma medalha de ouro em ciência e cosmologia nos Estados Unidos. “Nesse livro nós defendemos a tese de que o ser humano está em um momento da história da terra, momento da sua complexidade, da sua interioridade, deu um salto na sua qualidade, entrou em uma nova ordem em que precisamos estabelecer um laço de fraternidade com a terra e com todos aqueles que a habitam, como as plantas, os animais, com as montanhas, com os rios”, ressaltou.
O teólogo frisou que existe um laço fraterno entre todos nós. “Precisamos nos enxergar a todos como irmãos e irmãs. Devemos trocar o punho cerrado de donos da natureza pela mão estendida para as chagas sociais, as mãos unidas para construirmos juntos um projeto coletivo, precisamos ter responsabilidade coletiva para recriarmos uma nova Casa Comum”, destacou.
“Ou nós salvamos todos ou ninguém se salva”“Temos formas diferentes de sermos humanos, mas que estas diferenças não se transformem em desigualdades. Temos que alimentar um sentimento de interdependência entre nós, todos somos dependentes uns dos outros. Mas não nos tratamos como irmãos”, diagnosticou.
Ele também acentuou que a crise não é política ou econômica, mas é de sensibilidade. “Nós não olhamos aqueles que estão do nosso lado. Por isso, somos desumanos. Não reconhecemos o nosso irmão. Desta vez não teremos uma arca de Noé. Ou nós salvamos todos ou ninguém se salva”, comentou.
“Como o Papa diz: nunca esperem nada de cima, comecem de baixo, das comunidades, dos territórios. Se você trabalha no território, pode criar uma verdadeira sustentabilidade, uma democracia participativa, onde todos cabem dentro. Cultivando o afeto, estreitando os laços da afetividade”, lembrou.
“Cada um se considere uma semente”Boff ainda citou o educador Paulo Freire ao afirmar que precisamos esperançar. “Esperançar é diferente de esperar, esperançar é criar condições boas para todos.”
Para o filósofo, “nós nascemos para brilhar e não para sofrer e morrer miseravelmente. Cada um se considere uma semente".
Após a palestra, foi aberto um espaço para manifestações das entidades. O presidente da CUT-RS, Amarildo Cenci, destacou que “a classe trabalhadora, que não é com carteira assinada, mas também a que está nos territórios e nas comunidades, está junto com esperançar para fazer as mudanças”.
Também compareceram a deputada estadual Sofia Cavedon (PT) e a vereadora Biga Pereira (PCdoB).
Boff e a Maria do Rosário são também os convidados do podcast De Fato #08 – “Como evitar o fim do mundo”, que vai ao ar no próximo sábado (30), às 11h, no Canal do Youtube e no Spotify.
O seminário desta segunda-feira teve transmissão realizada pelo Brasil de Fato RS, nas redes da deputada Maria do Rosário, CUT-RS, Rede Soberania, Frei Sérgio Görgen, Via Campesina e Movimento Sem Terra (MST).
Com informações de Maria Helena dos Santos e Fabiana Reinholz – Brasil de Fato RS