A resposta ao conservadorismo que ganha cada vez mais corpo por meio da deslegitimação de qualquer luta em defesa da igualdade, veio nesta segunda-feira (25) na forma de cultura e de debate que setores conservadores tentam estrangular num Brasil sob direção golpista.
A celebração do Dia Internacional da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha e do Dia Nacional de Tereza de Benguela, no saguão da sede da CUT, em São Paulo, teve roda de conversa para falar sobre trabalho, políticas públicas, violência, espiritualidade, drogas e educação. E também roda de capoeira, rap e poesia.
Ao final do dia, ficou o recado pelas vozes das mulheres negras que estiveram na sede da Central: diante dos gritos hidrofóbicos dos conservadores, a missão da esquerda é gritar ainda mais pelas periferias e em defesa do direito às diferenças, estas que devem servir para unir todos aqueles que não acreditam na obrigatoriedade de se adequar, seguir e aceitar padrões racistas, apontou a secretária de Combate ao Racismo da CUT, Maria Júlia Nogueira.
“O racismo só será vencido quando negros e brancos se juntarem para erradicar essa chaga que ainda persiste na sociedade brasileira”, disse.
Otimista, a secretária da Mulher Trabalhadora da Central, Junéia Batista, defendeu que as dificuldades devem servir para unificar os movimentos progressistas apartados por diferenças na batalha.
“Não podemos nos esquecer das tristezas da desigualdade com as quais o povo negro convive, mas precisamos ressaltar a alegria das conquistas dos últimos 13 anos. Até setembro de 2018 teremos de estar preparados para muitas dificuldades no objetivo de retomarmos a democracia”, falou.
Papel da CUT
A necessidade de unidade que forja a criação de secretarias voltadas a quem enfrenta diariamente o preconceito no mundo do trabalho. “Quando a CUT criou a Secretaria de Combate ao Racismo foi para empoderar o negro no mercado e fortalecer nossa luta”, afirmou Rosana Silva, secretária de Combate ao Racismo da CUT-SP.
Secretária da Mulher Trabalhadora da CUT-SP, Ana Firmino, apontou como o golpista Michel Temer (PMDB) tem minado as possibilidades de políticas públicas de combate à desigualdade. “Uma das grandes portas de entrada para combater as discriminações é o concurso público, porque, ao contrário do setor privado, que discrimina negros e mulheres, o serviço público não leva em conta raça e gênero na contratação. Portanto, quando os golpistas cortam os concursos, ferem diretamente as políticas de promoção de igualdade”, explicou.
O mesmo acontece quando setores defensores de medidas como o fim da Lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas redes públicas e particulares da educação, conseguem avançar.
“Esses setores querem as heroínas africanas longe das salas de aula para que as crianças aprendam apenas o que a elite branca escreveu”, definiu a secretária nacional adjunta de Cultura, Anyelle Nascimento.
Secretária Adjunta de Mulheres da Prefeitura de São Paulo, Dulce Xavier, também falou sobre a Lei 10.639, mas abordou o papel formativo que cumpre e, por isso mesmo, torna-se indesejada. “Essa é uma das políticas mais eficazes para aprender sobre a história do povo negro e ajudar a construir respeito. Para que as crianças tenham mais facilidade em reconhecer sua raça, cor e cultura. O desafio, porém, continua fazer com que seja implementada de fato”, avaliou.
Muito a aprender
Presidente nacional da CUT, Vagner Freitas, acredita que nunca o mundo esteve tão ameaçado de perder os princípios cidadãos, uma realidade mundial que vai além do Brasil dos ataques à democracia e se expressa na saída xenofóbica do Reino Unido da União Europeia e na candidatura de Donald Trump à presidência dos EUA.
O caminho, alerta, é tratar desiguais de maneira diferente. “A classe trabalhadora em geral sofre com o preconceito, mas alguns sofrem muito mais do que outros e temos de ter um corte por gênero e raça na nossa luta”, defendeu.
O racismo, disse o secretário Geral da CUT-SP, João Cayres, tem o mesmo peso que o machismo na balança de fatores que atrasam o desenvolvimento do país. “Devemos combater o que está nas entrelinhas, o que discrimina, o que faz considerar a magia africana pecadora e a magia anglo saxônica, de Harry Potter, linda”, comparou.
Resistir é o caminho
Gestoras de projetos e Iyalorixá – sacerdotisa no Candomblé – Solange Machado contou um pouco de sua história que, na prática, é a de muitas mulheres. Primeiro, era discriminada porque crescia profissionalmente no trabalho e atribuíam isso a ‘favores’ sexuais e não à competência. Depois, ao conhecerem sua crença, colegas atribuíam os avanços à ‘feitiçaria’.
A reação foi responder à altura. “Se eu me recolhesse diante de uma ofensa, iria alimentá-la. O tempo de submissão acabou porque o preto foi pra escola, a preta se formou e tem direito a ganhar o mesmo salário de um homem branco que faz a mesma função. E saiba que se alguém mudar de cadeira porque você é preta ou acredita em uma religião de matriz africana, pode processar”, ensinou.
Um aprendizado que precisa ainda ser repetido, conforme lembrou a advogada e membro da Associação de Mulheres Negras Aqualtune, Allyne Andrade. Para ela, os avanços de conquistas gerais de combate à violência como a Lei Maria da Penha e contra o feminicídio não se desdobram quando o foco é o recorte por raça.
Prova disso, falou, é que o assassinato de mulheres negras cresceu 54% entre 2003 e 2013, enquanto o de mulheres brancas recuou 9,8%. O mesmo ocorre em outros índices como mortalidade materna e a violência sem vítimas fatais.
Para ela, é preciso que as mulheres da esquerda tenham mais ousadia na luta pelo empoderamento. “Falamos muito da direita, mas temos de fazer o trabalho entre nós. É muito simbólico quando uma mesa de mulheres negras tem um homem branco como forma de legitimá-la. A esquerda não abriu mão dos privilégios da branquitude. Para reverter isso, precisamos pensar além, pensar condições para negras serem viabilizadas como candidatas pelos partidos”, cobrou.
Educação e drogas
A última roda de conversa teve a participação da cientista social e presidenta do Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnico-Racial de São Paulo, Anatalina Lourenço, e da pesquisadora na área de drogas e sociabilidade e integrante da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), Amanda Amparo.
Anatalina falou que o formato de ensino existente hoje no país não dá condições para o estudante refletir sobre a sociedade e não motiva a frequentar o espaço escolar.
A cientista também criticou o programa Escola Sem Partido, projeto que está no Senado e que busca o fim de uma suposta “doutrinação” em salas de aula. “A escola sem partido é a manutenção da escola racista, sexista, machista, homofóbica e excludente”.
Já Amanda dialogou sobre a urgência de ampliar o debate acerca da política sobre drogas no Brasil, sobretudo na perspectiva racial. Segundo a pesquisadora, ainda há uma resistência em abordar o assunto. “A gente precisa discutir a questão da guerra às drogas se quisermos falar do genocídio da população negra. Não dá para desconsiderar, pois esse é um fator majoritário dentro desse tema”.
No Brasil, de acordo com o último relatório do Infopen Mulheres (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), publicado pelo Ministério da Justiça, 38 mil mulheres estão em cárcere, sendo que a grande maioria (68%) está presa por crimes relacionados ao tráfico de drogas.
Mas Amanda ressalta que muitas dessas mulheres encarceradas são negras, algumas chefes de família, e pertencem a um ciclo de desigualdade. “Não é qualquer guerra (de combate às drogas) que estamos falando. Ela é especifica. Tem cor, recorte social, localização geográfica, e é contra pretos e pretas”, afirma.
A atividade terminou com uma apresentação da cantora Izalú de suas canções que abordam questões políticas e sociais. Ao final, as participantes seguiram para se unir à Marcha das Mulheres Negras, que ocorreu no centro da capital paulista.