Café tipo exportação. Considerado fonte de riqueza de Minas Gerais, do Brasil e da geração de empregos no meio rural. Mas, para quem presta serviços, as lavouras cafeeiras do Sul do Estado são um martírio. A realidade no campo é cruel. A criatividade dos cafeicultores para lucrar e explorar os trabalhadores é infindável e revoltante.
Para a população urbana, empregadas e empregados rurais são privilegiados. Não pagam o INSS e, mesmo assim, se aposentam aos 60 anos, os homens, e aos 55, as mulheres, somente com a comprovação de 15 anos de contribuição. No entanto, basta conhecer o dia-a-dia de trabalhadoras e trabalhadores rurais para derrubar esses preconceitos. A sustentabilidade do café se apoia na exploração de mão-de-obra barata, no trabalho escravo ou degradante, nas fraudes nas formas de pagamentos, nas violações de direitos trabalhistas, em moradias precárias e insalubres, no transporte em ônibus, vans e kombis caindo aos pedaços.
Percorrer parte da região Sul de Minas - Varginha, Elói Mendes, Conceição do Rio Verde, Carmo da Cachoeira, Carmo de Minas, Jesuânia, Lambari, Cristina e Três Corações -, mesmo que por curto espaço de tempo, já é suficiente para comprovar como os maus-tratos e desrespeito aos direitos dos trabalhadores nas lavouras de café são quase uma regra, sem que os responsáveis sofram qualquer punição. As mulheres, discriminadas ainda mais do que no meio urbano, dificilmente se aposentam. No campo, carteira assinada para elas é exceção, assim como condições de trabalho decentes.
Ocorrências de trabalho análogo à escravidão e de condições subumanas vêm sendo denunciadas há mais de 12 anos pelos coordenadores da Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais (Adere-MG) e dirigente do Sindicato dos Empregados Rurais (SERRSMG), dentre eles, Jorge Ferreira dos Santos Filho, sem que providências efetivas sejam tomadas pelo poder público.
O ativista participou, no dia 15 de junho de uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara dos Deputados, em Brasília. O objetivo da audiência foi discutir o trabalho escravo em plantações de café do Sul de Minas Gerais, denunciado pela organização dinamarquesa Danwatch, que acusa multinacionais como Nestlé e Jacobs Douwe Egberts (dona de marcas como Pilão, Damasco, Caboclo e Café do Ponto) de se beneficiarem dessa prática. Em março, a Nestlé admitiu ter comprado café de duas plantações em Carmo de Minas, onde as autoridades brasileiras resgataram trabalhadores da escravidão.
Jorge Ferreira disse, também, que a Adere-MG pretende denunciar o governo brasileiro “por financiar direta ou indiretamente essa situação”, uma vez que os bancos oficiais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal etc) continuam a conceder financiamento a empregadores que praticam essas infrações. “Há 12 anos eu luto contra o trabalho escravo em Minas Gerais e nunca vi um dono de fazenda ser algemado”, diz.
Para o ativista, o Estado deveria cobrar o cumprimento da legislação trabalhista. Conforme afirma, mais de 60% dos trabalhadores das fazendas cafeeiras de Minas estão na informalidade. De acordo com o coordenador da Adere-MG, é comum a contabilidade oficial das fazendas mostrar que o trabalhador recebe salário mínimo (R$ 880) quando, na realidade, ganha salários maiores, especialmente no período da colheita o café. Isso causa enormes prejuízos financeiros e sociais aos trabalhadores e aos cofres públicos.
No dia 8 de julho, em reunião na Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de Minas Gerais (SRTE-MG), em Belo Horizonte, a SRTE-MG e a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) se comprometeram a fiscalizar 250 propriedades rurais indicadas pela Adere-MG ainda este ano, durante o período da safra de café.
Interpretação dúbia e confusão no processo de aposentadoria
A interpretação dos direitos previdenciários dos rurais varia e, desta forma, trabalhadores e trabalhadoras dependem da boa vontade de servidores do INSS e de juízes para garantir a aposentadoria. É o que diz Paulo Sebastião, do Sindicato dos Empregados Rurais da Região Sul de Minas Gerais (SERRSMG) e da Adere-MG. Em alguns casos, é cobrado o tempo de contribuição e, em outros, aceita a comprovação inicial do período de relação de trabalho.
Os dirigentes da Adere-MG consideram que uma série de ações seriam essenciais para combater o trabalho escravo, as fraudes e a informalidade nas lavouras de café do Brasil. As providências seriam:
- No caso flagrante de prática de trabalho escravo, prisão imediata e sem direito a fiança por parte do escravocrata.
- Inclusão dos empregadores na lista suja do trabalho escravo do Brasil.
- A obrigação de os fazendeiros terem de pagar indenização por danos morais aos trabalhadores submetidos a essas condições.
- Indeferimento nos pedidos de liberações de financiamento de bancos públicos a qualquer produtor rural que violar e não respeitar as leis trabalhistas. O governo federal libera R$ 200 bilhões anuais para os produtores rurais, sem cobrar contrapartidas no respeito aos direitos trabalhistas ou combater efetivamente a prática do trabalho escravo.
- Desapropriação ou expropriação imediata das fazendas em que foram encontradas práticas de trabalho escravo ou outras infrações gravíssimas nas relações do trabalho, e destinar as terras também de forma imediata para a reforma agrária, sem qualquer tipo de indenização ao produtor rural infrator.
- Quadriplicar os valores das multas aplicadas pelos auditores fiscais do trabalho, contra qualquer empregador infrator da legislação trabalhista.
Fazendeiros infratores são ligados
a importantes cooperativas de café
Recentemente, fazendas ligadas a cooperativas de café, foram flagradas pelo Ministério do Trabalho submetendo trabalhadoras e trabalhadores a condições de trabalho análogo a escravo, sendo uma delas a Cooperativa Regional dos Cafeicultores do Vale do Rio Verde (Cocarive), com sede em Carmo de Minas. Ainda em Carmo de Minas, mais uma fazenda foi encontrada, por um sindicato ligado à Adere-MG, nove trabalhadores do Vale do Jequitinhonha também em condições precárias, com documentos pessoais retidos, devendo ao fazendeiro, além de haver alguns deles dormindo no chão.
Na Fazenda Santa Júlia, em Jesuânia, apesar de os auditores não terem aplicado o que determina a Instrução Normativa (IN) 91/2011 do MTE, as condições eram precaríssimas e desumanas. Segundo as informações, as quatro fazendas são ligadas a Cocarive.
“Registramos suspeitas de ligações de cooperativas, que atuam na exportação de café, com fazendas com casos de exploração de trabalho escravo, trabalho degradante e análogo à escravidão, fraudes trabalhistas e trabalho informal. São a Coocarive, Minasul, Cooparaíso e Coxupé, a quem fazendas de Carmo de Minas, Itamogi, Monte Santo de Minas, Campanha, Machado, Silvanópolis, Jesuânia e Botelhos são filiadas”, diz Jorge Fernando dos Santos Filho.
“Nas fazendas da Pedra e Lagoa flagramos trabalho escravo. A Fazenda Lagoa é ligada ao ex-presidente do sindicato Patronal rural, e hoje dirigente. A outra é ligada a outro dirigente do mesmo sindicato rural de Carmo de Minas. As duas fazendas são da Coocarive e venderam café para a Nestlè. Está comprovado o envolvimento das duas fazendas no trabalho escravo, e a própria Nestlè admitiu ter comprado o café destes produtores em 2015. A fazenda Cambará também está na Coocarive. O Sindicato combateu o trabalho precário, que se fiscalizado pelo MTE, seguramente seria caracterizado como escravo na Fazenda Cambará”, conta Jorge Ferreira.
Em 2016, entre o dia 17 de junho e 4 de Julho, três casos de trabalho escravo em fazendas de café foram denunciados pela Adere-MG ao Ministério Público e ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), sendo a pratica desumana nas fazendas Santana (Perdões), Santa Rita (Jusuânia) e Palmeiras (Conceição de Aparecida). Nas três houve resgate de trabalhadores. Há informações de mais de dez ocorrências na região só nesta safra de café.
“Nas últimas safras de café, encontramos e denunciamos fazendas com práticas de trabalho escravo nos municípios de Silvianópolis, Carmo de Minas, Jesuânia, Ibiraci, São Sebastião da Bela Vista, Lambari, Monte Santo de Minas, Itamogi, Machado, Perdões, Conceição de Aparecida, São Gonçalo do Sapucaí, Poços de Caldas, Botelhos. Se fiscalizassem mais seriam constatadas muito mais práticas de trabalho escravo”, avalia o dirigente da Adere-MG.
Problemas recorrentes
Informalidade
Atinge no mínimo 60% dos trabalhadores nas lavouras de café do Sul de Minas. Ou seja, mais da metade trabalha na colheita do café sem ter carteira assinada.
Fraudes no pagamento
Quem tem carteira assinada é vítima de fraude generalizada nas formas de pagamento. O empregado safrista, durante a colheita do café, trabalha por produção, mas tem registro de pagamento de um salário mínimo. Ele colhe de 8 a 10 medidas de café por dia – cada medida corresponde a 60 litros. Pelo valor da medida (R$ 10 em média) receberia em torno de R$ 80 por dia. Pelas contas, teria a receber R$ 2.400 em um mês. Espertamente, os patrões, produtores de café, pagam o salário mínimo, na folha, o restante por fora.
Deslocamento para o local de trabalho
Os produtores também não pagam as horas itineres – que correspondem ao tempo gasto no deslocamento para o local do trabalho e o retorno para o alojamento ou para a moradia.
Transporte
Normalmente precário, com ônibus, vans e kombis caindo aos pedaços, sem contar os casos em que trabalhadoras e trabalhadores são conduzidos por veículos ilegais, por motoristas sem habilitação, e em carrocerias de caminhões ou em carroças engatadas em tratores. Os veículos precisam ser devidamente autorizados e fiscalizados e, os motoristas, habilitados.
Horas extras
Os patrões que pagam horas extras são raríssimos.
Intervalo de almoço
Não é respeitado o período legal ou descanso mínimo de uma hora para a alimentação, como a legislação exige.
Refeições
Na maioria dos casos, são feitas no local de trabalho, onde existem resíduos de agrotóxicos pesados, utilizado de forma intensiva nas lavouras de café. Banheiros químicos e água potável são raridade.
Equipamentos de proteção
Apenas uma minoria obedece a lei e fornece botina, boné, óculos e máscaras contra os agrotóxicos e gases. Na maioria dos casos, os trabalhadores tem que se proteger por conta própria nas fazendas de café do Sul de Minas.
Médicos e peritos se omitem ou fraudam exames admissionais e demissionais
Os exames não são realizados corretamente. Apesar do alto nível da exposição ao agrotóxico, não há exame periódico. É comum, nos postos de saúde, os trabalhadores das fazendas de café se queixarem de problemas como, tonturas, dores de cabeça e no estômago, coceiras, dores abdominais etc. Muitos dos médicos são fazendeiros ou parentes de produtores de café.
Moradias
No Sul de Minas é grande o número de empregadores que cedem moradias precárias, sem água encanada, sem rede de esgoto, com instalações elétricas deterioradas e inadequadas. A situação é tão absurda, que eles se atrevem a cobrar aluguel, mesmo pagando apenas o salário mínimo.
Motoristas irregulares fogem da reportagem
“São 4h30. No trevo de Elói Mendes, a 15 km de Varginha, centenas de trabalhadoras e trabalhadores rurais aguardam o transporte para as fazendas de café da região. Aos poucos, os ônibus vão chegando. Dois deles, em melhor estado, aguardam o horário para rodar por cerca de 22 quilômetros até o local da colheita. A viagem, de ida e volta, acontece de segunda a sexta-feira. Assim como no embarque, o retorno é no escuro. E nesta época do ano, o frio é intenso. Minhas mãos quase congelam.
Ao perceber a minha presença, um desconhecido e ainda por cima com uma câmera fotográfica, muitos ônibus não param em frente a uma padaria. Seguem, rápido, para outro local. Não é por menos: todos estão caindo aos pedaços. “São irregulares. Não têm licença e o motorista não é habilitado. Por isso não pararam aqui. Vão pegar o pessoal em outro local”, denunciam duas trabalhadoras.
Me identifico com um motorista, Gerson Donizete Mendes, e ele se dispõe a falar comigo. “Tenho CNH, meu ônibus está registrado. As condições do veículo estão boas e fazemos revisão constantemente”, diz o motorista, que é empregado – o veículo, do ano de 1998, é alugado pelo fazendeiro – e leva 20 trabalhadoras e trabalhadores rurais para a Fazenda Carina, a 22 km, em Elói Mendes. Em comparação com os outros, até que o ônibus está apresentável. Pelo menos está melhor do que o que vai para Fazenda Santa Hedwirges (isso mesmo).”