O que aconteceria se indivíduos que vivem em um mundo plano e bidimensional acidentalmente descobrissem que existe um universo alternativo tridimensional, até então invisível para eles? Qual a reação deles ao descobrir que seu mundo plano não passa de um fino papel que esconde uma vasta realidade tridimensional? Essa é a proposta de um surpreendente curta de animação húngaro “Rabbit and Deer” (2013) com mais de 100 prêmios em festivais por todo o mundo. O curta faz uma releitura da Alegoria da Caverna de Platão por um ponto de vista dimensional – mais uma evidência de como cresce a sensibilidade gnóstica na indústria do entretenimento atual, desde que a Relatividade e a Mecânica Quântica atualizaram na ciência antigas mitologias gnósticas.
O leitor deve conhecer a Alegoria da Caverna de Platão, onde o filósofo descreve a situação em que a humanidade se encontra e a proposta de um caminho de salvação: a crença de que o mundo revelado pelos nossos sentidos não é o mundo real, mas apenas uma pálida cópia – a condição humana seria como a de prisioneiros acorrentados em uma caverna vendo sombras projetadas na parede de objetos que passam diante de um fogo atrás deles. As sombras são tão próximas que passam a designar nomes para elas e toma-las como fossem a própria realidade.
Agora imagine essa alegoria por um ponto de vista dimensional: os homens acorrentados e as sombras pertenceriam a um mundo bidimensional, enquanto o fogo e os objetos que passam diante dele estão no plano tridimensional – mesmo que se virassem, seres da segunda dimensão seriam incapazes de verem o fogo ardente tridimensional. Platão dizia que o brilho do fogo os cegaria. Do ponto de vista dimensional, a tridimensionalidade simplesmente se tornaria invisível para esses seres planos prisioneiros das suas correntes em duas dimensões.
O curta de animação Rabbit and Deer (2013, assista ao vídeo abaixo) do roteirista e diretor húngaro Péter Vácz faz esse nova interpretação da alegoria da caverna, seguindo uma tendência atual nas animações onde em forma e conteúdo cada vez mais flertam com temas gnósticos ou místicos: metalinguagem, narrativa em abismo, criação de mundos dentro de mundos de onde protagonistas tentam escapar etc. – The Paiting (Le Tableau, 2013), Muppets, Alma (2009) ou mesmo uma animação mainstream como Lego Movie (2014) são alguns exemplos.
O curta de Vácz já foi exibido em 63 países em mais de 300 festivais ganhando 125 prêmios.
Rabbit and Deer foi um trabalho de conclusão na Universidade de Arte e Design MOME de Budapest. Segundo Vácz, na época vivia um tenso relacionamento amoroso ao mesmo tempo em que explorava diferentes técnicas de animação. Somou-se a esse contexto o gosto por um programa de computador que criava avatares baseado em animais a partir dos dados de personalidade do usuário. Desse mix existencial com alusões filosóficas geek, surgiu a inspiração para Rabbit and Deer (Coelho e Cervo).
O Cubo de Rubik e a Terceira Dimensão
O curta parte de protagonistas que de repente passam a viver em mundos dimensionais diferentes, mas que tentam, de alguma maneira, conviverem e tocarem a vida. Temas como a Caverna de Platão, universos paralelos e incomunicabilidade nos relacionamentos atuais se misturam numa metalinguagem do próprio universo das técnicas de animação: como uma narrativa pode combinar simultaneamente técnicas de desenho plano 2D, aquarela 2D, stop motion e desenhos em 3D.
Um coelho e um cervo vivem juntos e felizes em uma casa em um universo plano em 2D, até entrarem numa disputa pelo controle do controle remoto da TV. O conflito leva à queda e destruição da televisão... até que a última imagem que aparece na tela antes de quebrar definitivamente é um cubo de Rubik (ou “cubo mágico”) desenhado em 3D que desaparece em poucos segundos.
O cervo fica obcecado por aquela figura fugaz, e tenta encontrar a fórmula do 3D em um mundo 2D. Isola-se na leitura de pilhas de livros e pesquisas em um laptop, enquanto o coelho irrita-se até que um novo conflito criará um novo acidente: eletrocutado pelo laptop, o cervo então é projetado magicamente para o universo 3D – transforma-se em um boneco em stop motion que observa o antigo universo 2D como um desenho em uma parede de papel que parece esconder uma realidade além.
Torna-se invisível ao seu amigo coelho 2D ao vê-lo a partir de uma espécie de fundo infinito branco onde encontra-se. Mas sabe que terá de furar aquele papel do universo 2D para conhecer uma estranha realidade 3D que está além...
A sensibilidade gnóstica
O fascinante no curta de Péter Vácz é que tanto o conteúdo quanto a forma da narrativa permitem diversas interpretações.
O argumento de Rabbit and Deer é claramente inspirado no gnóstico filme A Vida em Preto e Branco (Pleasentville, 1999) onde após dois irmão brigarem pela posse do controle remoto são projetados para o interior de uma série de TV em pb dos anos 1950 – o confronto era entre os universos colorido atual e preto e branco do passado e as implicações místicas e religiosas disso.
Uma primeira interpretação é que Vácz transpõe o argumento de 1999 para um conflito interdimensional: um mundo tridimensional seriam invisível para seres de um mundo plano. Como superar a barreira? Vácz sugere que a força do amor, amizade e tolerância ajudariam a superar a interdição. A mesma mensagem da produção Interestelar (Interstellar, 2014) de Christopher Nolan onde o amor e entrelaçamento quântico aproximam as distâncias interdimensionais.
O curta sugere o tema da incomunicabilidade das relações humanas como originada no conflito de pessoas como universos fechados em si mesmos, como dimensões invisíveis entre si.
A segunda interpretação é metalinguística – Vácz parece fazer uma narrativa dentro de outra narrativa: a criatividade baseada na tensão estética das diversas técnicas de animação. Vácz parece propor desconstruir as diferentes linguagens em desenho e animação diante do espectador, assim como Lego Movie faz – grande parte da narrativa desse filme baseia-se em brincadeiras com a própria natureza do brinquedo Lego: os diferentes mundos que é possível fazer com o jogo como diferentes universos separados entre si.
Essa interpretação conduz logicamente para outra: a interessante versão da Alegoria da Caverna de Platão proposta por Rabbit and Deer. Certamente essa versão está impregnada com a sensibilidade neoplatônica (ou gnóstica) atual que começa no mundo da Física teórica e termina nas sci fi da indústria do entretenimento.
Física e Gnosticismo
Por exemplo, a chamada Teoria Kaluza-Klein (KK Theory) procura unificar a teoria da gravitação e eletromagnetismo em torno de uma ideia de uma outra dimensão que existiria para além do espaço-tempo habitual – altura, largura, profundidade e tempo.
A Teoria parte do modelo gravitacional de Einstein: por que de todas as forças fundamentais, a gravidade é a mais fraca? A explicação para essa debilidade seria de que ela perpassaria diversas dimensões, conhecidas e desconhecidas.
Para Einstein, se a força gravitacional fosse visível teria o aspecto de um enorme pântano repleto de camadas, vales, ondulações e curvas. Por isso, a gravidade é capaz de capturar qualquer objeto que se aproxime.
Para a Teoria Lauza-Klein, essas dimensões extras seriam diminutas e impossíveis de serem detectadas por nós. Seria algo como a animação Rabbit and Deer: o mundo tridimensional seria invisível para os seres planos.
Mais uma vez essa suspeita (agora científica) de que a realidade como a conhecemos é uma ilusão que abrigaria outros mundos alternativos, é um revival das antigas narrativas platônicas como a Alegoria da Caverna, passando pela cosmologia gnóstica de Basilides (filósofo gnóstico que viveu entre 117 e 138 DC em Alexandria) que acreditava em um pluriverso composto por 365 “céus”, onde um plano desconheceria a existência do outro.
O curta de animação Rabbit and Deer é mais uma evidência da sensibilidade gnóstica atual que desde o final do século passado cresce na indústria do entretenimento, depois de manifestar-se na Ciência de ponta do século XX com a Relatividade e a Mecânica Quântica.