O incêndio que destruiu o alojamento das categorias de base do Flamengo e deixou dez garotos mortos no centro de treinamentos do Ninho do Urubu segue gerando repercussões além da esfera esportiva. Pelos indícios de falhas e omissões levantados até o momento, sobretudo no embate de versões entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e o clube rubro-negro, que não tinha o certificado de segurança do Corpo de Bombeiros nem alvará de funcionamento para o CT, a deputada federal Erika Kokay (PT) irá protocolar nesta terça-feira um pedido para instalação de CPI com objetivo de apurar o caso e, de maneira mais abrangente, a situação dos alojamentos que abrigam crianças e adolescentes em clubes de futebol. A abertura da comissão na Câmara dos Deputados depende de pelo menos 171 assinaturas —um terço dos parlamentares da Casa.
Além de fazer um levantamento sobre as condições de escolinhas e centros de treinamentos de base no país, a CPI se debruçaria sobre outras violações ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) relacionadas ao futebol, como as recorrentes denúncias de abuso sexual de jovens atletas. “Esse incêndio no Flamengo revela uma situação crítica no futebol brasileiro”, afirma Kokay, que, em 2014, presidiu a CPI da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, responsável por investigar abusos de jogadores por técnicos, dirigentes e olheiros. “Caso se confirme a documentação incompleta do alojamento, o clube descumpriu aspectos legais que poderiam ter preservado vidas. Percebemos que há uma cadeia de violações sistemática aos direitos dos garotos que sonham se tornar jogadores. Por isso é preciso saber como eles estão sendo tratados em outros centros de formação e estabelecer regras mais rígidas, com vistoria periódica dos conselhos tutelares nos clubes formadores.”
Nesta segunda-feira, o comitê de crise instituído pelo Flamengo, encabeçado pelo presidente Rodolfo Landim, se reuniu com representantes da prefeitura, Corpo de Bombeiros, Defensoria Pública e Ministério Público. Durante a reunião, o clube reiterou que vem prestando apoio aos três atletas feridos e assumiu a responsabilidade de bancar indenizações às famílias das vítimas. Negociações para um acordo, que pode envolver o pagamento de pensão, serão mediadas pela Defensoria Pública. A força-tarefa do Ministério Público do Trabalho (MPT) deu prazo de 48 horas para o Flamengo apresentar todos os contratos de jogadores da base. Se constatar irregularidades nos vínculos, o órgão pode abrir uma ação civil pública contra a diretoria.
Por meio da assessoria de comunicação, o clube confirmou ao EL PAÍS que, entre as dez vítimas, apenas o meia Gedson Santos, 14 anos, não tinha contrato de formação. Natural de Itararé, interior de São Paulo, ele estava alojado no Ninho do Urubu desde o sábado anterior à tragédia e foi aprovado em um teste realizado no início da semana passada. De acordo com interpretação do MPT, o alojamento de atletas sem vínculo formal configura violação à Lei Pelé, que regulamenta os contratos entre clubes e jogadores no Brasil. O Flamengo também será investigado por supostamente descumprir norma do ECA sobre a garantia de convívio familiar. A maioria dos 26 garotos que estavam alojados na noite do incêndio provinha de outros Estados e cidades. Alguns deles relataram permanecer períodos de até um ano sem visitar a família por causa da rotina de treinos e competições — realidade comum em grandes clubes.
Também nesta segunda-feira, representantes do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente visitaram o Ninho do Urubu para vistoriar as instalações da base em um conjunto de contêineres. Embora o Flamengo tivesse registro no Conselho Municipal dos Diretos da Criança e do Adolescente, o CT nunca havia sido vistoriado pelos órgãos antes do incêndio. A prefeitura do Rio esclarece que o cadastro no Conselho não isenta o Flamengo de cumprir exigências técnicas de segurança, como a certificação dos Bombeiros, por se tratarem de diferentes competências em cada regimento. O ECA prevê, de forma genérica, que, para uma instituição obter o registro no Conselho Municipal, é preciso oferecer “instalações físicas em condições adequadas de habitabilidade, higiene, salubridade e segurança”. O Conselho Municipal do Rio não respondeu por que conferiu registro ao clube sem que houvesse vistoria prévia das instalações. Já a prefeitura alega que, apesar das 31 multas que aplicou ao Flamengo por falta do alvará de funcionamento, não interditou o CT pelo fato de não ter “poder de polícia”. As causas do incêndio ainda não foram descobertas.
“Além das responsabilidades do clube, houve falha do sistema de garantia dos direitos da criança e adolescente”, afirma Cristiane Maria Sbalqueiro Lopes, procuradora do MPT no Paraná e integrante da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância). “As políticas públicas contra a violação de direitos de atletas em categorias de base ficaram em segundo plano nos últimos anos. Que essa catástrofe no Flamengo sirva para reforçar a necessidade de mais proteção a crianças e adolescentes no futebol.” Caso seja instalada, a CPI na Câmara dos Deputados planeja desarquivar projetos de lei que tratam da regulamentação das categorias de base no Brasil e estabelecer exigências mais específicas para que instituições esportivas recebam registro dos Conselhos Municipais dos Diretos da Criança e do Adolescente.
Na reunião realizada na sede do Ministério Público do Rio de Janeiro foi programada ainda uma perícia de órgãos fiscalizadores ao Ninho do Urubu. A interdição do centro de treinamento não está descartada. Além do Flamengo, outros clubes formadores do Rio de Janeiro devem ser vistoriados nos próximos dias. Pouco antes da reunião começar, um outro incêndio atingiu as dependências ocupadas por um time de futebol carioca. O alojamento da equipe principal do Bangu, localizado em um terreno da Aeronáutica na Zona Oeste, pegou fogo enquanto os jogadores descansavam após o treino. Dois deles precisaram ser encaminhados ao hospital por inalação de fumaça. O CT administrado pela Comissão de Desportos da Aeronáutica abriga projetos sociais que atendem centenas de crianças e adolescentes.