20 anos depois, tudo mudou...
No dia 3 de outubro, o time comandado por Ole Gunnar Solskjaer, ex-atacante e ídolo da "era de ouro" de 1999, não consegue dar um único chute a gol contra o modesto AZ Alkmaar, na Liga Europa, a competição de segundo escalão da Uefa.
No final da semana, os "Diabos Vermelhos" visitam o Newcastle, time recheado de jogadores nascidos após o ano 2000, e perdem por 1 a 0 de forma vexatória, tomando um gol de um garoto de apenas 19 anos.
O United confirma seu pior início de Premier League na história (12º lugar, 37,5% de aproveitamento), e chega a 11 jogos sem vencer fora de casa, algo que não acontecia desde 1989.
Na televisão, Michael Owen, ex-jogador do United e hoje comentarista, crava: "Esse deve ser o pior time do Manchester United em décadas...".
Na Deloitte Money League, os Red Devils já estão atrás de Real Madrid e Barcelona na lista dos mais ricos do planeta, e as notícias pioram: o patrocinador máster ameaça deixar a camisa por causa dos resultados ruins.
Mas, afinal, o que aconteceu com o Manchester United, o "ex-maior time do mundo?".
Para entender mais sobre a crise do gigante inglês, a ESPN veio a Manchester e ouviu alguns dos maiores especialistas no assunto.
United antes de jogo contra AZ Alkmaar: jogadores não acertam nem pose para foto Getty ImagesOS ERROS DA DIRETORIA
Samuel Luckhurst é editor-chefe de Manchester United no jornal Manchester Evening News - provavelmente a seção mais lida do diário local - e tem acesso aos bastidores do clube como poucos.
Na sua opinião, a raiz de toda a crise atual dos Red Devils está nas péssimas decisões tomadas pela diretoria do clube nos últimos anos.
"A estrutura é o principal problema do Manchester United hoje. Não há ‘presença de futebol’ em uma diretoria dominada por formandos da Universidade de Bristol", afirma, em entrevista à ESPN.
"Matt Judge, que negocia contratos com os jogadores atuais e com possíveis contratados, além dos valores a serem pagos em transferências, é o ‘chefe de desenvolvimento corporativo’, o que dá a impressão de que ele é o ‘cara da grana’, algo que fontes confirmam que ele é. Mas não há ninguém com conhecimento de futebol ou expertise suficiente para ser objetivo ou pessimista, para trazer entusiasmo ou para ter ideias focando um plano maior", observa.
"Ele foi talvez o melhor jogador do United na temporada passada, mas, com a chegada da janela de transferências, o agente do atleta disse que o Barcelona estava interessado nele, depois que os espanhóis descobriram que Matthijs de Ligt preferia jogar na Juventus. O empresário de Lindelof procurou Matt Judge, que disse que o United não iria vender o zagueiro, afirmando também que queria renovar seu contrato imediatamente. Então, o jogador, que tinha vínculo até 2021, com opção de ampliar até 2022, ganhou um contrato maior e um aumento de salário", lembra.Para exemplificar alguns dos equívocos do alto escalão da equipe, Luckhurst usa a recente renovação do zagueiro Victor Lindelof.
"O cínico que existe em mim custa a acreditar que o tal ‘interesse’ do Barcelona de fato existiu, e a equipe espanhola foi apenas usada para barganhar mais fichas na renovação de Lindelof. E o United caiu nesta armadilha", ressalta.
"Se o United de fato tivesse um diretor de futebol, ele poderia ter dito: ‘Esse agente possivelmente está exagerando, já que este zagueiro jogou bem durante nove meses, mas, neste período, ainda assim tivemos nossos piores números defensivos em 40 anos. Ele precisa fazer mais antes de ganhar um aumento’. Mas o United não tem ninguém com tamanho bom senso em sua diretoria", critica.
Mark Ogden, repórter-sênior da ESPN UK e outro jornalista com larga experiência na cobertura do United, também vê a diretoria como culpada por muitas das mazelas da equipe de Manchester.
"Há muitos problemas com o United. Mas, basicamente, o United não se planejou da maneira correta após a aposentadoria de Alex Ferguson, em 2013. Todo grande anúncio do clube desde então, tanto internamente quanto na diretoria, foram inferiores a Ferguson e a David Gill, o antigo CEO. Pessoas incapacitadas e com ideias muito ruins, combinadas a donos que usam o clube como se fosse um caixa eletrônico", observa.
A 'HERANÇA MALDITA' DE FERGUSON
Pogba lamenta durante jogo entre Manchester United e Rochdale, pela Copa da Liga Getty ImagesSir Alex Ferguson comandou o Manchester United entre 1986 e 2013. Ganhou tudo o que podia: 13 Premier Leagues, cinco FA Cups, quatro Copas da Liga, duas Champions e dois Mundiais e Clubes, entre outros troféus menores.
Após sua aposentadoria, em 19 de maio de 2013, porém, os "Diabos Vermelhos" deram início à uma terrível era de contratações desastrosas de treinadores.
Foram eles, pela ordem: David Moyes (julho de 2013 a abril de 2014), Ryan Giggs (interino, de abril a maio de 2014), Louis van Gaal (julho de 2014 a maio de 2016), José Mourinho (maio de 2016 a dezembro de 2018) e Ole Gunnar Solskjaer, que assumiu interinamente em 19 de dezembro de 2018 e depois acabou efetivado no cargo, sendo o atual comandante da equipe.
Dentre todos esses nomes, alguns até conquistaram títulos, como Van Gaal, que ganhou uma FA Cup, e Mourinho, que faturou uma Liga Europa e outra FA Cup. Mas o fato é que, no geral, todas as gestões foram consideradas fracassadas, ficando longe de manter o alto padrão que o United se acostumou ao longo das últimas duas décadas.
Teria Sir Alex deixado uma "herança maldita" no trono do Manchester United?
"Ferguson poderia ter feito a entrega de poder de forma serena em 2013, se o United tivesse contratado José Mourinho ao final daquela temporada", diz Samuel Luckhurst.
"O panorama da Premier League não era tão feroz. Manuel Pellegrini havia acabado de chegar ao Manchester City, Brendan Rodgers estava há apenas um ano no Liverpool e o Arsenal de Arsène Wenger não era uma ameaça. Ferguson era um gênio, mas nem sempre acompanhou as mudanças que vêm com os tempos, e David Moyes foi uma escolha puramente instintiva para a sucessão. Não houve um raciocínio bem feito", acrescenta.
"A decisão de contratá-lo foi baseada em sua longevidade e estabilidade com o Everton, o que era um pensamento antiquado já nesta época. Ferguson era o rei. E os problemas estruturais já existiam desde quando ele decidiu se aposentar. Mas, sem ele, o Manchester United deixou de ter como mascará-los", completa.
Quando Busby encerrou seu reinado de 24 anos à frente do clube, após 1.120 jogos, em 1969, o clube de Manchester viveu tempos de crise, com diversas trocas de treinadores e até rebaixamento para a 2ª divisão.
Foi só após a chegada de Sir Alex, em 6 de novembro de 1986, que as coisas começaram a voltar aos trilhos.
"É possível traçar muitos paralelos entre as saídas de Matt Busby e a de Alex Ferguson, mas a verdade é uma só: se um novo treinador conseguir ter sucesso no Manchester United, ele será abraçado pela torcida. Nenhum dos últimos técnicos do United foi comparado de maneira desleal a Sir Alex. Eles apenas não foram bons o bastante", salienta Howson, em conversa com a ESPN.
O ex-goleiro Edwin van der Sar, um dos grandes nomes da última era vitoriosa do United e hoje diretor-executivo do Ajax, opina que as trocas de treinador não funcionam, pois não se vê qualquer progresso com as mudanças.
“É claro que Solskjaer está passando por dificuldades. Eu deixei o clube há oito anos, e, nos últimos seis anos da minha carreira, ganhei quatro vezes a Premier League e joguei três finais de Champions. Então, há claramente uma enorme distância em relação ao ponto em que o Manchester United se encontra agora. O clube trocou de treinador diversas vezes, mas nenhum tipo de progresso foi visto", observa, à ESPN.
Mark Odgen, por sua vez, discorda que Ferguson tenha deixado uma "herança maldita" no clube, e afirma que a "gastança final" dos últimos anos de "Fergie", quando o Manchester City começou sua ascensão, também tem sua parcela de culpa na crise atual.
"Não acho que haja 'herança maldita'. Outros clubes ganharam grandes troféus depois que técnicos marcantes saíram. No entanto, os gastos feitos por Ferguson em seus últimos três, quatro anos, provaram-se ruins a longo prazo. Ele não conseguiu igualar a gastança inicial do Manchester City (após a equipe ser comprada por um grupo do Oriente Médio), e o United agora está pagando o preço disso", explica.
O 'SURGIMENTO' DO MANCHESTER CITY
Aguero comemora gol do Manchester City sobre o Manchester United, em 2011 Getty ImagesEm 2008, o Manchester City foi comprado pelos petrodólares de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.
Antes disso, a equipe celeste jamais havia representado uma ameaça ao Manchester United, não chegando sequer a ser citada como rival dos Red Devils - todo torcedor vermelho sempre colocou o Liverpool como maior adversário.
No entanto, os árabes não colocaram só dinheiro nos Citizens. Eles também contrataram bons dirigentes, que, por sua vez, trouxeram excelentes jogadores.
Veio também o cobiçado técnico Josep Guardiola, que ajudou a transportar o clube a outro patamar: em 2018, por exemplo, o City se tornou o primeiro time na história da Premier League a fazer 100 pontos em uma temporada. Em 2019, a equipe empilhou quatro troféus em série, tornando-se o primeiro clube a fazer o "rapa" inglês: Premier League, FA Cup, Copa da Liga e Community Shield de uma só vez.