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O capitão que venceu Puskas e reergueu a Alemanha

Ago 03, 2015

Por ESPN                                    

 

 'Fritz' Walter sorriu e fez a Alemanha voltar a sorrir após os terrores da Segunda Guerra

 

Berna. 4 de julho de 1954. Fim de tarde.

Os 64 mil torcedores presentes no Wankdorf Stadium veem a temida Hungria se encaminhar para seu primeiro título mundial. A geração de ouro do país abria 2 a 0 no placar diante da Alemanha com apenas oito minutos de bola rolando. Puskas aproveitou o rebote de um chute desviado na zaga para abrir o placar aos seis. Dois minutos depois, Czibor beneficiou-se de trapalhada de Kohlmeyer com o goleiro Turek para ampliar a vantagem.

Apesar de terem goleado os germânicos por 8 a 3 na fase de grupos, os húngaros - que estavam invictos havia quatro anos - não deixavam de surpreender pela rapidez com que marcaram os gols. Até porque, no outro jogo, o técnico germânico, Sepp Herberger, havia escalado um time reserva.

Era o momento de a Alemanha recomeçar. Assim como recomeçava fora da esfera futebolística. Um país devastado pela Segunda Guerra Mundial e envergonhado por ter feito o nazismo atingir as proporções que tomou buscava se reerguer.

O cotidiano e a final da Copa de 1954 ofereciam uma dura realidade aos alemães, que teriam de buscar forças onde não havia para poder se levantar.

É neste momento que o papel de líder se faz necessário. E ele apareceu. O meia-armador Friedrich 'Fritz' Walter honrou a condição de capitão e manteve seu time vivo no jogo.

"O Fritz Walter representava em campo o que o técnico teorizava para a equipe. A primeira importância era essa. Mas tinha uma importância maior. Ele representava também um líder e poderia dar ao mundo uma nova visão de uma nova Alemanha. Nem sei se ele já tinha consciência disso. A expectativa que existia no povo alemão era de que através da seleção alemã o mundo pudesse olhar novamente para a Alemanha com respeito", contou ao ESPN.com.br o especialista de futebol alemão dos canais ESPN, Gerd Wenzel, que teve Walter como ídolo na infância e na adolescência.

O relógio marcava dez minutos quando os alemães deram início à resposta. Rahn cruzou rasteiro, e Morlock mandou para a rede. Aos 18, veio o empate. Fritz Walter cobrou escanteio no segundo pau, onde Rahn completou para o alvo.

No segundo tempo, o que parecia impossível se concretizou. Rahn dominou, escapou da marcação, invadiu a área e chutou rasteiro para vencer o goleiro Grosics aos 39 minutos.

O 'Milagre de Berna' estava consumado. A Alemanha, nove anos após a Segunda Guerra Mundial, era campeã do mundo pela primeira vez.

 

Um feito acompanhado de outro milagre: o econômico

De fora da Copa de 1950 por estar banida da Fifa devido ao que havia causado nos anos anteriores, o país germânico via no futebol um motivo para sorrir. Na volta da seleção de trem à Alemanha, os jogadores eram festejados e ganhavam presentes a cada parada.

"Até hoje historiadores escrevem livros sobre este aspecto. Em um primeiro momento, imaginava-se que era apenas um título mundial. Logo depois, percebeu-se que não era apenas isso. Percebeu-se que aquilo foi um pontapé inicial não só do futebol alemão, mas o pontapé inicial para o reerguimento da autoestima. O povo alemão era derrotado, devastado, responsabilizado pelo fato de o nazismo ter ascendido ao poder", afirmou Wenzel.

"Começou a se passar na cabeça do povo: ‘Nós podemos ressurgir, nos reerguer, construir um regime democrático, podemos constituir uma economia produtiva, podemos reconquistar o respeito de todos.'"

Ao término da guerra, além dos milhares de mortos, desabrigados e presos, a Alemanha era uma terra de entulhos e vergonha. A Conferência de Potsdam, que ocorreu entre julho e agosto de 1945 e contou com a presença de União Soviética, Estados Unidos e Reino Unido, definiu como o país germânico seria administrado. Os territórios foram divididos entre os três e a França, o que vigorou até 1948. Além disso, a indústria foi limitada, e as terras que haviam sido tomadas foram reanexadas aos seus respectivos países. A Áustria, por sua vez, voltou a ser independente. O sonho nazista havia terminado. A Alemanha estava neutralizada bélica e economicamente.

Apesar do cenário trágico, a reconstrução veio de forma rápida. Com o apoio do Plano Marshall, programa de recuperação dos países aliados na Segunda Guerra Mundial, e o perdão de metade de suas dívidas, a Alemanha voltou a crescer. O PIB duplicou entre 1953 e 1963.

E o título mundial veio justamente neste contexto: o país que se reestabelecia, mas ainda tinha um moral baixíssimo. O 'Milagre de Berna', junto ao que ficou conhecido como milagre econômico alemão, colocava o conflito de 1939 a 1945 em um passado cada vez mais distante.

E quem liderou a seleção alemã para isso foi justamente alguém que viveu a guerra. E se engana quem pensa que a guerra aqui mencionada é uma metáfora para a final de uma Copa do Mundo ou qualquer partida de futebol.

O prisioneiro que foi salvo por um guarda húngaro

A foto no topo deste texto poderia nem ter existido, já que Walter poderia ter morrido anos antes de erguer a taça Jules Rimet. Em 1942, o jogador cerebral foi recrutado para servir ao exército na guerra. No fim do conflito, virou prisioneiro dos russos, que o mandaram para o leste. O caminho era quase o mesmo que a morte, já que muitos não sobreviviam às condições às quais eram submetidos.

Aliás, no período, ele contraiu malária, o que dificultava muito para jogar quando estava quente. Por conta disso, o meia gostava de atuar quando chovia. Logo, na Alemanha, o clima chuvoso ficou conhecido como o "clima Fritz Walter." A final de Berna, por exemplo, ocorreu sob esta condição.

Em meio a uma situação delicada, o futebol apareceria para salvar-lhe a vida. Em um campo de detenção na Ucrânia, ele participou de uma partida que seria a mais importante nos 81 anos em que viveu. Bem mais do que a final da Copa do Mundo. Walter assistia a um jogo e, então, acabou participando. O talento demonstrado fez um guarda húngaro o reconhecer, e este disse aos russos que o homem em questão, na verdade, era austríaco e não alemão. Isso salvou a vida de Walter, que se livrou de ir à Sibéria e regressou à cidade onde nasceu e virou um ícone.

Idolatria em Kaiserslautern

"A cidade de Kaiserslautern foi fundada por Fritz Walter."

Reza a lenda na Alemanha que um aluno escreveu a frase acima em uma redação. A constatação pode ser equivocada, mas, se for considerada a representatividade do jogador para a cidade (que em 2013 registrava 97,6 mil habitantes), não é absurda.

Nascido em Kaiserslautern, ele começou no principal clube da cidade quanto tinha oito anos. Com 17, fez sua estreia como profissional. Dois anos mais tarde, estreava pela Alemanha, já comandada por Herberger, marcando um hat-trick em um triunfo por 9 a 3 sobre a Romênia.

Porém, como foi para a guerra, ficou um período sem jogar profissionalmente. Pela seleção, sua ausência foi de 1943 a 1950. No ano seguinte, Walter assumiria a braçadeira de capitão de seu país e levaria o Kaiserslautern ao seu primeiro título do Campeonato Alemão na história - ele ainda seria campeão com o time em 1952/1953.

Além do título mundial de 1954, o qual ganhou ao lado de seu irmão mais novo Ottmar, Fritz Walter ainda jogou a Copa de 1958 - sua última partida pela seleção foi a derrota por 3 a 1 para a Suécia na semifinal. Foram 61 jogos e 33 gols. Pelo Kaiserslautern, se aposentou em 1959. Ele atuou por um único clube na carreira inteira.

Por conta dos feitos e da lealdade, foi eleito capitão honorário da seleção alemã e teve seu nome dado ao estádio do Kaiserslautern em 1985 - o que segue intacto até hoje. A morte em 2002, enquanto dormia, lhe impediu de ver a Alemanha jogar a Copa do Mundo de 2006 em casa - a sua cidade natal foi uma das sedes. Porém, uma lenda nunca morre e, fisicamente ou não, ele estava lá. Afinal, cinco jogos ocorreram no Fritz Walter Stadion.

"Ele tinha um carisma, era o maestro, um excepcional jogador. Até quando recebe a taça Jules Rimet, ele recebe humildemente, como se não merecesse. Essa humildade dele, o aspecto do caráter, conquistou as massas. Dessa forma, eu o considero o primeiro herói nacional no pós-Segunda Guerra. Se analisar de forma mais abrangente, não só como jogador, considerando a personalidade, a pessoa e o que representou ao país, Fritz Walter foi para mim o principal nome do futebol alemão", avaliou Wenzel.

A FINAL DE 1954 POR QUEM VIVEU NA ALEMANHA 

Gerd Wenzel, que nasceu em Berlim e foi para o Brasil com 12 anos de idade, vivia na parte oriental da Alemanha quando ocorreu a Copa do Mundo de 1954 e contou à reportagem como foi acompanhar a final contra a Hungria em solo germânico. Embora ainda não existisse o muro de Berlim, o país já era dividido entre o capitalismo e o socialismo.

"Eu vivenciei essa história. Tinha 11 anos quando a Alemanha Ocidental foi campeã mundial. Eu vivia na Alemanha Oriental, que era comunista. Éramos obrigados a torcer contra a Alemanha Ocidental.

O professor nos dizia na escola : ‘Vocês têm que torcer para a Hungria, porque a Hungria é a nossa nação irmã. A Hungria é socialista como nós. Temos que torcer para o socialismo. Vocês estão proibidos de torcer para a Alemanha Ocidental, estão proibidos de ouvir as estações de rádio da Alemanha Ocidental, porque elas só fazem propaganda do capitalismo. Vocês são obrigados a ouvir nossa transmissão.'

O que fizemos (eu e meus colegas de classe), eu nunca vou esquecer, isso não sai da minha cabeça. Eu pensei: ‘Ah, vou ouvir esses locutores que só fazem propaganda comunista? Que nada!'. Na minha casa, pegamos o rádio, estendemos o fio, colocamos debaixo da mesa, cobrimos a mesa com cortinas e tapetes para o vizinho não ouvir (já que não sabíamos se o vizinho era do serviço secreto do comunismo. Ele podia nos denunciar), e ouvimos baixinho debaixo da mesa a transmissão da rádio da Alemanha Ocidental.

Esse era o ambiente. Tínhamos que torcer escondidos, não podíamos festejar a vitória. Na minha classe, todos torciam para a Alemanha Ocidental. Isso é para você ver o ambiente e o que representou para nós na Alemanha Oriental." 

 

 

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