A tarde do dia 19 de julho de 1936 deveria ser marcada por uma grande celebração em Barcelona. Exatamente às quatro da tarde, 5.000 atletas e 3.000 folcloristas começariam a desfilar no estádio de Montjuïc, para celebrar o espírito esportivo, a paz e a fraternidade. Seria a cerimônia de abertura da Olimpíada Popular, evento organizado como um contraponto aos jogos oficiais, que em 15 dias seriam inaugurados na Berlim capital da Alemanha nazista e entrariam para a história como os jogos de Hitler.
Se o projeto da Olimpíada Popular nasceu para desafiar o nazismo alemão, foi o fascismo espanhol que acabou impedindo que as competições acontecessem. Na véspera da cerimônia de abertura, ocorreu o golpe de Estado mal sucedido que desencadeou a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Desta forma, a Olimpíada Popular, que seria realizada entre 19 e 26 de julho, terminou tragicamente, sem que nem mesmo tivesse começado.
A origem desta empreitada que seria a Olimpíada Popular remonta à escolha da cidade que sediaria os jogos de 1936. A eleição de Berlim como sede das Olimpíadas havia acontecido em 1931, quando a Alemanha ainda vivia sob a democrática e instável República de Weimar. Na ocasião, Barcelona havia sido a principal adversária de Berlim, sendo considerada a favorita entre as dez cidades candidatas, incluindo o Rio de Janeiro. A capital catalã já havia realizado uma bem-sucedida Exposição Universal em 1929, tendo montado uma estrutura turística e hoteleira que seria reutilizada como vila olímpica e construído um estádio com capacidade para receber os jogos na colina de Montjuïc.
Apenas dez dias antes da escolha da cidade-sede dos jogos de 1936, em 14 de abril de 1931, ocorreu a proclamação da 2ª República Espanhola, o que teria sido determinante para a derrota de Barcelona. Diversos membros do COI (Comitê Olímpico Internacional), desconfiados do governo republicano recém-eleito, decidiram optar por Berlim. A votação foi realizada por correspondência e o placar final foi de 43 a 16.
Apenas dois anos depois, porém, o Partido Nazista ascenderia ao poder na Alemanha e, em pouco tempo, o país mergulharia em uma feroz ditadura. O temor de que as Olimpíadas de 1936 se tornassem um evento global de propaganda do regime e dos ideais nazistas fez surgir uma ampla campanha internacional de boicote. O movimento reuniu desde a esquerda tradicional e grupos liberais até entidades judaicas, passando por federações esportivas e atletas que acreditavam que as Olimpíadas não deveriam ser utilizadas para tais fins.
A contestação aos Jogos de Berlim: do boicote à Olimpíada Popular
A ideia de realizar uma olimpíada alternativa nasceu no seio da campanha de boicote internacional. Além da Espanha, tal movimento ganhou repercussão – ainda que efêmera – em países como Grã-Bretanha, França, Suécia, Tchecoslováquia e Holanda, tendo força particular nos Estados Unidos, onde algumas federações debateram a adesão ao boicote e parte da comunidade judaica se mobilizou pela causa. Alemães exilados também fizeram campanha contra os jogos e, individualmente, atletas judeus de diversas nações aderiram ao movimento.
Como forma de esvaziar a campanha de boicote, o governo nazista tomou providências para suavizar sua imagem nos meses que antecederam os jogos. Símbolos antissemitas foram retirados das ruas e, apesar da exclusão dos atletas de ascendência judaica das federações alemãs, foram aceitas algumas poucas exceções, como a esgrimista Helene Mayer. A decisão dos Estados Unidos, em dezembro de 1935, de participar das Olimpíadas de Berlim enfraqueceu o movimento de boicote e, ao final, apenas a Espanha, que à época já estava em guerra civil, se manteve fora das competições.
A decisão de realizar um evento paralelo às Olimpíadas de Berlim aconteceu relativamente tarde. Embora a ideia já estivesse ganhando força na Espanha e no movimento internacional que defendia o boicote, foi decisivo o resultado da eleição espanhola de fevereiro de 1936. Naquele momento o país encarava o seu pleito mais acirrado. A formação de uma ampla coalização, a Frente Popular, levou a esquerda espanhola a uma apertada vitória. A candidatura reunia republicanos progressistas, socialistas, comunistas e grupos que defendiam uma maior autonomia regional, contando até com o apoio indireto dos anarquistas. Na Catalunha foi eleito Lluís Companys, político republicano de esquerda, que apoiou a realização da Olimpíada Popular e foi convertido em presidente de honra do evento.
No mês de abril, o recém-criado Comitê Catalão Pró-Esporte Popular (CCEP), formado por diversas organizações, envia uma carta ao novo presidente espanhol, Manuel Azaña, criticando o financiamento previsto pelo governo anterior para a ida de esportistas ao evento alemão. No documento, a associação afirmava que “o regime nacional-socialista utiliza o movimento esportista para seus fins reacionários, para a militarização da juventude e para a preparação da guerra”, como relata o livro “L’Altra Olimpíada” (A Outra Olimpíada, em catalão), dos historiadores Carles Santacana e Xavier Pujadas. Na carta, o CCEP solicitava que o dinheiro fosse utilizado para financiar o esporte popular e realização da Olimpíada paralela.
Sem esperar resposta do governo, o CCEP começa a articular com diversas outras entidades a viabilização da Olimpíada Popular, com a criação do Comitê Organizador no início de maio. No ato de constituição, é reforçado o carácter de contraposição ao evento alemão, mas não às Olimpíadas em si: “os organizadores da Olimpíada Popular querem a afirmação do verdadeiro espírito olímpico, do ‘fair play’ e do ‘jogo honrado’, e é por isso que essa será a verdadeira festa olímpica da Paz e da Fraternidade”.
Com a formação do Comitê Organizador há menos de três meses das competições, concretizar o evento não foi simples, ainda mais com um orçamento pequeno. A Olimpíada contou com um financiamento modesto, mas importante, dos governos de Catalunha, Espanha e França, à época também sob um governo de Frente Popular. Apesar de relativamente bem estruturada, a capital catalã não estava preparada para receber as milhares de pessoas que viriam para participar e acompanhar o evento, e o Comitê recorreu ao apoio de diversas associações e clubes, inclusive do Barcelona, para atender as demandas.
Além destas dificuldades, a Olimpíada Popular sofreu uma oposição implacável da direita e dos conservadores espanhóis, que em seus jornais chamavam o evento de “Olimpíada Vermelha”. Os críticos ainda afirmavam que a realização e o uso do termo Olimpíada eram uma afronta ao COI e que nunca mais Barcelona realizaria os jogos olímpicos.
Como seria a Olimpíada Popular?
O evento contaria com 16 modalidades. Haveria esportes olímpicos tradicionais, como futebol, rúgbi, basquete, handebol, beisebol, boxe, tênis, tênis de mesa, atletismo, natação, ciclismo, remo, tiro e luta, além de outros hoje não presentes: pelota basca e xadrez. Os jogos contariam ainda com exibições de ginástica e aviação sem motor. Além disso, as competições seriam acompanhadas de uma programação cultural, com mais de 3.000 artistas participando de atividades folclóricas como danças populares, música e teatro. Esta programação contemplava a concepção de que as duas dimensões – esporte e cultura – eram inseparáveis e contribuíam à formação integral dos indivíduos.
Um dado impressionante é que os jogos alternativos de Barcelona contariam com um número de participantes maior que o de Berlim, embora não contasse com todos os atletas de ponta como o evento oficial. A capital alemã recebeu pouco mais de 4.000 atletas de 49 países, enquanto da Olimpíada Popular participariam cerca de 6.000 esportistas de 23 países. Ainda eram esperadas outras 20 mil pessoas para acompanhar os jogos. A maior delegação estrangeira era a francesa, com 1.500 atletas, sendo 500 de federações oficiais, seguida da Suíça com 200 e da Bélgica, Holanda e Reino Unido, com 50 esportistas cada.
A Olimpíada Popular, além de receber delegações nacionais, possibilitou a inscrição de equipes regionais e locais, como forma de quebrar o monopólio estatal sobre a representação esportiva. Foram inscritas, por exemplo, delegações de Catalunha, País Basco e Galícia, na Espanha, e da Alsácia, na França. Além disso, estiveram presentes equipes das colônias francesas em Marrocos e Argélia; da Palestina, à época em mãos inglesas; e dos territórios espanhóis na África. Houve também a participação de representações de exilados políticos alemães, austríacos e italianos e uma equipe de judeus de diferentes nacionalidades.
Outra prioridade do evento foi buscar o incentivo à participação das mulheres nas competições. Nas primeiras décadas do século 20, as Olimpíadas contaram com escassa presença feminina, que enfrentava oposição inclusive do fundador dos jogos modernos, Pierre Coubertin. Nos jogos de Berlim, por exemplo, as atletas foram apenas 8% do total de inscritos. Ainda que os dados disponíveis não permitam conhecer o número de mulheres participantes do evento espanhol, entidades e federações esportivas femininas estiveram na organização e competiriam no evento.
Muitos dos atletas participantes foram enviados por clubes e associações esportivas vinculadas a sindicatos e partidos de esquerda, e não por comitês patrocinados pelos Estados, com algumas poucas exceções como a França, que inscreveu atletas para as duas Olimpíadas. Desde o início, o intuito dos organizadores era realizar um evento o mais amplo possível, atraindo instituições oficiais de diversos países. Ao final participariam dez federações internacionais, oito espanholas e seis catalãs. O objetivo não era realizar mais uma competição internacional de atletas amadores ou outra edição dos tradicionais jogos operários e, sim, organizar um grande evento esportivo capaz de se contrapor aos jogos oficiais.
Sonho interrompido
Milhares de atletas já estavam na capital da Catalunha no dia 18 de julho. Os últimos ensaios para a cerimônia de abertura eram realizados no Estádio de Montjuïc, quando começou a correr a notícia de que iniciara um golpe militar, a partir dos territórios espanhóis na África. O clima tenso que tomava o país era sentido entre os atletas às vésperas das competições, como relata o participante catalão Eduardo Vivancos: “o entusiasmo e a euforia flutuavam sobre o estádio, mas, desgraçadamente, eram mitigados por um sentimento de temor e tensão. Durante todo o dia corriam rumores muito alarmantes sobre uma iminente rebelião militar”.
No dia seguinte, antes de o sol raiar, as ruas de Barcelona vivenciariam uma insurreição militar que tentou controlar a cidade. “Em torno das cinco da manhã, os atletas foram despertados por tiros de fuzil, metralhadora e canhão: as forças fascistas tentavam derrubar a República”, recordaria em uma crônica da época Auguste Delaune, dirigente francês que participou da organização da Olimpíada. O que se seguiu então foram dois dias de combates até que as forças legalistas controlassem a capital catalã, com um saldo de centenas de mortos e cerca de mil feridos.
O desenrolar dos confrontos nas outras regiões espanholas nos dias seguintes deixou o país dividido em duas zonas, uma leal ao governo republicano democrático e outra que havia sido tomada pelos insurgentes, que tinham entre suas lideranças o futuro ditador Francisco Franco. A guerra civil que explodiu justo um dia antes do início da Olimpíada Popular tinha como pano de fundo a conjuntura internacional radicalizada da década de 1930 e, em especial, a extrema polarização da sociedade espanhola, então dividida entre grupos conservadores e os que defendiam – de distintas formas – profundas mudanças sociais.
Com o início do conflito, muitos dos atletas estrangeiros deixaram o país às pressas e, inclusive, dois barcos foram fretados para que pudessem partir rumo à França. Alguns atletas, entretanto, decidiram ficar e colaborar com a República, principalmente franceses e exilados alemães e italianos. Segundo o historiador Antony Beevor, em seu livro “A Batalha Pela Espanha”, “muitos dos atletas estrangeiros que esperavam em seus alojamentos e hotéis se uniram no dia seguinte aos operários para lutar contra o fascismo, e uns duzentos deles se incorporaram mais tarde às colunas das milícias populares”.
É difícil confirmar tal número, mas é certo que muitos esportistas colaboraram com a resistência ao golpe militar – há relatos de um austríaco morto já no dia 19 – e que alguns deles teriam participado de outras batalhas. O livro “L’Altra Olimpíada”, por exemplo, confirma que um grupo de alemães teria lutado na frente de Aragão. Outros episódios relatados pela obra mostram que italianos e franceses teriam participado dos combates em Barcelona. Além disto, esportistas espanhóis de Mallorca e Zaragoza decidiram permanecer na capital catalã, já que suas regiões haviam sido tomadas pelos insurgentes. Com o passar do tempo, ganhou força a tese – difícil de ser confirmada – de que aqueles atletas teriam sido uma espécie de embrião das Brigadas Populares, formadas por milhares de estrangeiros que deixaram seus países para lutar ao lado da República.
Os jogos de Hitler
Enquanto a Espanha mergulhava em sua violenta guerra civil, começava a Olimpíada de Berlim com uma estrutura nunca antes vista. O orçamento havia sido multiplicado por 20 e foi construído um moderníssimo complexo esportivo. A Olimpíada teve presença de jornais do mundo todo, foi a primeira transmitida ao vivo pelo rádio – e para mais de 40 países – e ainda contou com uma pioneira cobertura televisiva. Além disso, a destacada cineasta Leni Riefenstahl foi escalada para produzir o filme oficial dos jogos “Os deuses do Estádio”. Como se era de esperar, as competições foram transformadas em um espetáculo de apologia ao nazismo e de propaganda do poderio alemão.
Pela primeira vez se realizou o agora tradicional cortejo da tocha desde as ruínas de Olímpia. Mais de 3.000 atletas carregaram o fogo olímpico desde a Grécia até chegar em Berlim para a cerimônia de abertura, que foi acompanhada por 100 mil pessoas e não poupou na exibição de símbolos nazistas e no culto à personalidade do führer. Entre as delegações estrangeiras em desfile, muitas fizeram a saudação nazista ao passar por Hitler, que declarou os jogos abertos. Enquanto a euforia tomava conta de Berlim, 800 ciganos eram levados para o gueto de Marzahn e, perto da capital alemã, o enorme campo de concentração de Sachsenhausen era erguido. Em pouco tempo seria o destino de milhares de inimigos do regime.
Após as competições, mesmo com a consagração do atleta negro norte-americano Jesse Owens, era inegável a enorme vitória política da Alemanha. O país ficou em primeiro lugar, com 38 medalhas de ouro, e utilizou o evento para legitimar o regime nazista e propagandear seus ideais. O próprio Pierre de Coubertin afirmou, ao final das competições, que aquela tinha sido a melhor edição. Com a Segunda Guerra Mundial e derrota da Alemanha nazista, o tempo não perdoaria a Olimpíada de 1936, hoje considerada o episódio mais controvertido da história dos jogos modernos.
Esquecimento e memória
Quase 40 anos de ditadura franquista fez com que a empreitada da Olimpíada Popular praticamente caísse no esquecimento. Apenas com a abertura política, a partir de 1975, a memória desses acontecimentos ressurgiu. Até hoje o tema é relativamente desconhecido e diversas informações a seu respeito se perderam para sempre, como muitos dos arquivos dos jogos que desapareceram durante a guerra civil. O único livro sobre o assunto, “L'Altra Olimpíada”, foi publicado em 1990, e, apenas em 2006 o governo da Catalunha realizou uma exposição sobre os jogos. Atualmente, por conta do aniversário de 80 anos, outra mostra está em cartaz no Estádio do Montjuïc.
Foram necessários 56 anos para que Barcelona realizasse seus Jogos Olímpicos, contrariando os opositores da Olimpíada Popular que afirmavam que a capital catalã nunca mais teria tal oportunidade. O mesmo estádio de Montjuïc que sediaria a Olimpíada Popular foi reformado e adaptado para os jogos de 1992. Desde 2001, o lugar foi nomeado Estádio Olímpico Lluís Companys. Assim como a Olimpíada Popular, seu presidente de honra também teve um fim trágico. Após a tomada da Catalunha pelos franquistas em 1939, Companys foge para a França, onde foi preso pelos nazistas, que haviam invadido o país em 1940. Deportado para a Espanha, acabou fuzilado no castelo de Montjuïc, muito próximo ao estádio que hoje leva o seu nome. Muitos catalães gostam de lembrar, com orgulho, que o seu então presidente teria sido o único chefe de estado democraticamente eleito a ter sido executado no exercício do cargo.
O sentimento de frustração de muitos dos que se envolveram naquela aventura foi traduzido, ainda durante a guerra civil, em julho de 1937, em um texto do articulista Prats i Fonts, reproduzido no livro “L’Altra Olimpíada”: “não nos foi possível computar nossa força esportiva diante do mundo pelo fato de que tivemos que trocar os dardos pelo fuzil; o lançamento de disco pela bomba de mão; os saltos de obstáculos pelas barricadas e trincheiras; e as corridas pelas marchas militares; da mesma maneira nossa alegria se desmoronou ao sofrimento e a atração estrangeira foi trocada pelo horror, o turismo pela invasão, e a luz, o amor e a vida pelo tenebroso, o ódio e a morte. O CCEP não pôde levar a cabo aquele sonho que se havia forjado com tanto ânimo”.