A política argentina é tão complexa que a vitória não ocorre por bairros, mas por horas. A noite eleitoral das primárias legislativas 2017 começou com a euforia de Mauricio Macri, que, apesar da crise econômica, obteve um grande resultado nas primárias em todo o país. Consolida dessa forma seu poder e transforma seu partido, o Cambiemos, no primeiro da Argentina. O presidente se deu por vencedor e assim foi dormir a maioria dos argentinos. “Estamos começando a viver os 20 melhores anos da história argentina”, afirmou. Mas de madrugada, Cristina Kirchner lutava cabeça a cabeça para ganhar a província de Buenos Aires, e quando a festa macrista já havia acabado, os kirchneristas começaram a comemorar o empate como uma grande vitória. “Ganhamos”, bradava ela às quatro da manhã.
Muita emoção para uma prévia. A eleição real é em 22 de outubro. Mas o fundamental era a guerra psicológica. E Macri claramente a venceu antes da meia-noite. Mas os kirchneristas tentaram empatá-la de madrugada. A realidade é que, se verificarmos os resultados globais, os candidatos de Macri conquistaram vitórias importantes sobre o peronismo em distritos vitais como a cidade de Buenos Aires, onde conquistou quase 50% dos votos, Córdoba, Mendoza e até mesmo em Santa Cruz, bastião histórico do kirchnerismo, o que consolida seu poder. Mas sem a cereja do bolo que é a província de Buenos Aires, a vitória não era total. Será preciso esperar outubro para ver o resultado definitivo.
Apesar da madrugada angustiante que reduziu a euforia, Mauricio Macri tinha muito mais a comemorar. A contagem oficial dá uma vitória muito mais ampla do que a situação esperava em quase todo o país nas PASO, as eleições primárias que definirão as listas que em 22 de outubro lutarão por um lugar no Congresso. Mas precisava da vitória final sobre Cristina Kirchner. Bullrich saiu em vantagem desde o começo da apuração na poderosa província de Buenos Aires, mas pouco a pouco a distância foi diminuindo até chegar a um empate com 94% da apuração feita.
Se for verificado o resultado em todas as províncias, Macri demonstra um enorme domínio da política argentina que envia uma mensagem dentro e especialmente fora, para os investidores internacionais: o presidente controla o país e tudo indica que continuará assim por muito tempo. “Agora se vê que isso não foi um veranico de uma eleição, a mudança não voltará atrás. Eu sei que esses 19 meses foram difíceis. Se tivesse alternativa a muitas decisões, especialmente o aumento das tarifas, eu o teria feito. Agradeço que apesar das dificuldades, os argentinos acreditaram que esse é o caminho correto” disse Macri em uma entrevista coletiva após a vitória. O presidente recuperou o costume de responder as perguntas da imprensa, abandonado durante o kirchnerismo.
Mas nesse momento Kirchner, em absoluto silêncio, perdia em Buenos Aires. Ela esperou enquanto nas telas a vantagem ia diminuindo até desaparecer. Seus correligionários acusaram o Governo de atrasar a apuração nas áreas mais favoráveis ao kirchnerismo, as mais populares, para que os argentinos fossem dormir com a sensação de vitória total de Macri.
Apesar dessa revanche na madrugada, o peronismo sai muito enfraquecido dessa noite eleitoral. Teve um prêmio de consolação em La Rioja, onde o ex-presidente Carlos Menem obteve 44,6% apesar de estar impedido por ter uma condenação judicial e à espera de que a Suprema Corte o habilite. Mas os candidatos macristas ganharam nas maiores províncias do país, aquelas que têm mais deputados no Congresso e onde até então tinha bem pouca presença.
O Governo ganhou na Cidade de Buenos Aires, Mendoza e Córdoba. E ganhou até mesmo nas províncias consideradas feudos particulares, como San Luis (centro), em poder dos irmãos Rodríguez Saá desde o retorno à democracia, em 1983. Em Santa Cruz, berço do kirchnerismo, onde governa a irmã do ex-presidente Néstor Kirchner e Cristina Kirchner vive a maior parte do ano, o macrismo recebeu 45% dos votos, 15 pontos a mais do que o grupo da ex-presidenta.
Os presidentes argentinos têm um enorme poder, mas o sistema eleitoral desse país faz com que estejam submetidos a constantes revalidações: a cada dois anos existem eleições e toda a economia depende de seus resultados. Macri, que venceu em 2015 por apenas três pontos de diferença e está em minoria no Congresso, enfrentou sua primeira grande revalidação. Cristina Kirchner, a ex-presidenta, voltou à política como candidata à senadora e conseguiu transformar as eleições em um grande plebiscito sobre Macri. Mas o presidente por enquanto superou esse teste, à espera do que acontecerá em outubro.
Antes da votação, quase todas as pesquisas colocaram a ex-presidenta como primeira com vantagem na província de Buenos Aires, por onde concorre. Mas na noite eleitoral as coisas mudaram e a diferença entre Kirchner e Bullrich era insignificante. O ambiente no estádio Julio Grondona, onde Kirchner e seus seguidores acompanhavam o resultado, era quase de velório no começo da noite, enquanto os macristas comemoravam em Costa Salguero, na capital, aos gritos de “não voltam mais”. Nesse momento, todas as expressões no estádio eram de contrariedade. Mas poucas horas depois do encerramento da festa macrista, os kirchneristas começavam a sua aos gritos de “voltaremos”. Será preciso esperar outubro.
Macri tinha muita coisa em jogo. Se Kirchner ganhasse a eleição por uma ampla diferença, os mundos do poder e do dinheiro ficariam extremamente inquietos: ninguém consegue entender bem como é possível que uma ex-presidenta que foi derrotada há dois anos, sofreu escândalos de corrupção gravíssimos em seu entorno – seu secretário de Obras Públicas foi preso enquanto jogava malas com nove milhões de dólares (29 milhões de reais) em um convento para escondê-las – e tem ela mesma várias causas pendentes esteja em condições de vencer eleições na principal província.
Quase tudo nela é particular. Não se apresenta pelo peronismo, criou seu próprio partido, Unidade Cidadã. Não deu uma só entrevista e quase não realizou comícios. Ela se candidata pela província de Buenos Aires, mas sua residência e seu local de votação é em Santa Cruz. E dessa vez sequer foi votar porque diz que não daria tempo de voltar no dia seguinte à noite eleitoral em Buenos Aires. Tudo é atípico, e é a única candidata que não votou, mas seus seguidores parecem não se importar com nada.
Se ela vencesse com tranquilidade, o mundo do poder estaria pronto para culpar Macri e o mundo do dinheiro já se assustava com seu possível regresso. Se a vitória do presidente se consolidar em outubro, todos os que duvidavam precisarão se curvar diante dele. Macri está acostumado a ser subvalorizado, mas sempre acaba se impondo nas eleições desde sua vitória na cidade de Buenos Aires em 2007.
Muitas pessoas votaram em Macri cansados do kirchnerismo e principalmente convencidos de que o multimilionário empresário, que vinha de uma boa gestão primeiro no Boca Juniors e depois na cidade de Buenos Aires, acabaria com a crise e traria crescimento. Mas o primeiro ano de Macri foi complicadíssimo, com inflação de 40%, quase 1,5 milhão de novos pobres e queda forte especialmente da indústria e do comércio, essenciais justamente nos arredores de Buenos Aires onde Kirchner mais tem eleitores. O segundo está sendo melhor, mas a recuperação trazida pelos números altos ainda não chegou aos bairros em que ela tem força.
Kirchner buscou pegar carona nessa crise para conseguir sua volta triunfal. Mas, com este resultado, os argentinos parecem dar a Macri uma grande margem de confiança para continuar ditando o ritmo político nos próximos dois anos. Ele afirmou durante a campanha que as mudanças que propõe irão demorar. E que não faria sentido voltar à situação de antes. E os cidadãos estão majoritariamente lhe concedendo esse tempo solicitado. A se confirmar o resultado em outubro, o presidente poderá agir com muita calma para arrematar sua política econômica. Mas na Argentina todo pode mudar em questão horas, como ficou claro novamente nesta noite eleitoral delirante.