SE VOCÊ TENTASSE delinear um programa com o intuito de atingir o alto escalão das corporações mais poderosas do mundo e os políticos cujas carreiras elas financiam, você teria algo parecido com o que Bernie Sanders revelou no dia 22 de agosto em sua versão do New Deal Verde, orçada em US$ 16,3 trilhões. Esse é um ponto. “Nós precisamos de um presidente que tenha a coragem, a visão e o referencial para enfrentar a ganância dos executivos dos combustíveis fósseis e da classe bilionária que se interpõe no caminho da ação climática”, afirma o plano na introdução, ecoando uma frase famosa de Franklin Delano Roosevelt: “Nós precisamos de um presidente que receba esse ódio d
Com mais de mil páginas, o projeto de lei, que ficou conhecido como Waxman-Markey, conseguiu avançar após uma articulação política cuidadosa e com concessões consideráveis. Como David Roberts, que escreve sobre mudanças climáticas, apontou, a lei em si era mais abrangente do que seus críticos admitiam. Mas a política que a orientava — reflexo de uma dinâmica mais ampla em Washington, e dentro do Partido Democrático em particular — se apoiava em uma premissa precária: a de que os republicanos e as corporações estavam dispostos a negociar a legislação climática com boa fé. O movimento ultraconservador Tea Party estava ganhando força rapidamente, e os irmãos Koch passaram os meses após a votação na Câmara mobilizando seu império na área de combustíveis fósseis contra os republicanos moderados que tinham apoiado a lei e mesmo contra alguns que não tinham, dando suporte para que grupos como o conservador Americanos para a Prosperidade gerassem uma revolta contra o crap-and-tax empurrando o partido para a extrema direita. No momento em que uma lei similar à Waxman-Markey chegou ao Senado, no segundo semestre daquele ano, o ânimo em prol da ação climática já havia esfriado.
Enquanto isso, as corporações puderam facilmente jogar dos dois lados do campo: enfraquecendo leis que aparentemente poderiam ser aprovadas, enquanto se esforçavam para ter certeza de que elas jamais o seriam. Em um artigo de 2015, o cientista político Jake Grumbach mostra que várias empresas que se uniram à USCAP simultaneamente apoiaram lobistas contra a ação climática. Shell, BP e ConocoPhillips eram membros da USCAP e do Instituto Americano de Petróleo, através do qual ajudaram a reforçar a campanha “Energy Citizen”, que promoveu manifestações pagas contra o cap-and-trade pelo país, mirando os senadores em seus próprios distritos, durante o recesso de verão. Esses eventos foram planejados de forma coordenada com a Câmara Americana de Comércio, da qual Chrysler, Deere, Dow Chemical, Duke Energy, GE, PepsiCo, PNM Resources e Siemens (que integravam a USCAP) eram todas membros.
Isso permitiu que as companhias efetivamente enfraquecessem o processo político ao mesmo tempo em que colhiam um retorno positivo no quesito relações públicas, por aparentemente apoiarem a solução para o problema. “O meio empresarial não apenas ampliou suas chances aproximando uma possível legislação climática de seus interesses e moldando a arena política para o futuro”, escreve Grumbach. “Eles estavam simultaneamente dispostos a investir recursos com o intuito de virar o debate político a seu favor e impedir que a legislação passasse, em primeiro lugar”. Tudo isso, é claro, veio depois de a indústria dos combustíveis fósseis (e algumas das mesmas empresas, think tanks e associações empresariais que combateram o cap-and-trade) passar duas décadas fazendo campanha para pôr em dúvida a veracidade do aquecimento global, deslocando o terreno do debate político em que a disputa em torno do cap-and-trade ocorria.
SEM CONTAR COM O APOIO dos republicanos ou das corporações na batalha no Senado, e com poucas pessoas animadas a defendê-la, fora aquelas que integravam o círculo mais próximo do governo, a cap-and-trade morreu com um lamento. Em uma extensa análise de 2013, Theda Skocpol, professora de sociologia da Universidade Harvard, escreveu: “ao longo desse ano crucial, republicanos, incluindo aqueles que supostamente eram amigos de longa data do movimento ambiental, como John McCain, simplesmente desapareceram; e no fim das contas, senadores republicanos se negaram de forma unânime a apoiar qualquer versão de cap-and-trade”.
O ponto positivo aqui é que o New Deal Verde de Sanders apresenta uma abordagem que não poderia ser mais diferente da investida climática que ocorreu no Capitólio dez anos atrás — e, ao abandonar aquela estratégia restrita a iniciados, tem uma chance real de ser bem-sucedida. Como Skocpol escreveu em 2013:
A maré só pode virar na próxima década por meio da criação de uma política de mudança climática que envolva uma ampla mobilização popular de centro esquerda. É isso que será necessário para combater a associação entre a oposição da elite do livre mercado e a mobilização da direita contra soluções para o aquecimento global. (…) Enquanto isso, liberais e moderados precisam construir um movimento populista anti-aquecimento global do seu próprio lado do espectro político.
Sanders, é claro, não é o único a adotar uma abordagem centrada em mobilização popular, extensão de seu longo apelo por uma “revolução política”. Essa mobilização também faz parte dos planos dos organizadores do Movimento Sunrise para vencer política climática. Uma das principais mensagens que Weber me disse a partir de seus estudos sobre a disputa em torno do cap-and-trade “é que você realmente precisa de um movimento que vá pressionar durante e depois da campanha, é preciso cobrar os políticos. Não basta apenas vencer as eleições.” Como Weber disse, reformas estruturais como o fim do obstrucionismo e do Colégio Eleitoral — demandas que não aparecem nos planos de Sanders — provavelmente serão pontos-chave para conseguir aprovar essa legislação. Mas delinear uma política que visa à construção de um movimento é fundamental para tornar possível uma votação no plenário.]
e braços abertos”.
A partir da proposta apresentada pela deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez e pelo senador Ed Markey em abril, Sanders delineia um sistema abrangente, que geraria energia limpa estatal, daria origem a 20 milhões de novos empregos, acabaria com as importações e exportações de combustíveis fósseis, reavivaria a rede de segurança social, repararia injustiças históricas, como o racismo ambiental, e investiria de forma prolífica na descarbonização tanto dentro como fora dos Estados Unidos — entre muitas e muitas outras coisas. Não seria apenas uma transição para afastar a sociedade americana dos combustíveis fósseis, mas também a reavaliação de falácias que circulam há décadas, com o patrocínio da direita, acerca dos respectivos papéis do governo e da economia.
“Este é, definitivamente, o maior e mais audacioso plano existente hoje”, disse Evan Weber, diretor político do Movimento Sunrise, “tanto na escala, pura e simples, como nos mecanismos para atingir essa escala; realmente parece [que Sanders está] empurrando os limites que estruturam a sociedade americana atualmente”.
Propostas novas, atraentes, fazem com que o projeto de Sanders se destaque em um campo já bastante ambicioso: um programa de incentivos e de auxílio financeiro para ampliar a aquisição e o uso de veículos elétricos, planos para melhorar o número de passageiros no transporte público em 65% até 2030; a exigência de que o Escritório de Orçamento do Congresso trabalhe com a Agência de Proteção Ambiental para atribuir a novas leis uma pontuação climática, com escores, assim como a pontuação orçamentária que já é adotada; e o respeito à Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas para assegurar o consentimento prévio, livre e embasado por parte dos povos indígenas.
O plano também gerou controvérsias entre aqueles que veem ideias contra a energia nuclear como algo antagônico à descarbonização. A proposta também exclui de antemão medidas para captura e armazenamento de gás carbônico, que especialistas consideram necessárias a curto prazo, para promover a transição em setores onde é mais difícil descarbonizar — mas que têm sido usadas por executivos do setor de combustíveis fósseis como forma de obter um adiamento indefinido. A tributação em cima da emissão do gás carbônico tem sido um dos pilares das propostas climáticas de Sanders, e seu esquema para o New Deal Verde não exclui essa opção, mas também não a enfatiza.
Permeando o projeto há uma teoria diferente e mais explícita de mudança em relação às plataformas apresentadas por outros proponentes; o plano de Sanders está fundamentado em mobilização e na identificação de inimigos. Ele promete lutar contra os “bilionários dos combustíveis fósseis cuja ganância reside no cerne da crise climática”, que, segundo ele, “gastaram centenas de milhões de dólares protegendo seus lucros às custas de nosso futuro” e “que farão qualquer coisa para extrair até o último centavo do planeta”. Ao esboçar como o plano será financiado, Sanders afirma que obterá US$ 3,085 trilhões fazendo com que “a indústria dos combustíveis fósseis pague por sua poluição, por meio de processos, impostos e outros tributos, além da eliminação de subsídios federais ao setor”.
“Mais importante ainda”, diz Sanders, “nós devemos construir um movimento popular sem precedentes que seja poderoso o bastante para lutar contra eles e ganhar. Jovens, ativistas, tribos, cidades e estados por todo este país já deram início a esse importante trabalho, e nós vamos seguir seus passos.”
ESSA É UMA ABORDAGEM que distingue Sanders não só em relação a outros candidatos nas primárias do Partido Democrata como também em relação ao discurso político sobre o clima que predominou nos Estados Unidos ao longo dos últimos 30 anos.
O mais perto que o país já chegou de aprovar uma legislação abrangente para reduzir as emissões de gás carbônico foi a luta perdida no congresso em torno da lei de cap-and-trade, um esquema de troca de emissões, em 2009 e 2010. Existem muitos motivos pelos quais aquele plano falhou e muitos fatores infelizes convergiram para aniquilar suas chances. Uma das principais razões? Alguns seus defensores mais influentes estavam mais interessados em derrotar as corporações do que em convencer o público de que essa era uma boa ideia. Na avaliação deles, o caminho para obter apoio republicano era enfraquecer o meio empresarial, aproveitando-se dos fortes laços que, historicamente, unem as corporações ao Partido Republicano. A peça-chave para chegar a isso seria um programa de cap-and-trade, estabelecendo um limite, ou cap, para a quantidade de poluentes que as companhias poderiam emitir. Se uma empresa ultrapassasse o limite, poderia comprar mais de outra ou vender qualquer excesso, no que é conhecido como mercado de carbono.
Em 2007, USCAP, capitaneada pelo Fundo de Desenvolvimento Ambiental, convocou organizações ambientais próximas ao governo, assim como as 500 maiores empresas listadas pela Fortune — incluindo BP America, Duke Energy e Lehman Brothers —, para dar início a um plano que contava com aliados no Capitólio. Acreditava-se que a política climática poderia ser delineada e aprovada a portas fechadas, e defensores do cap-and-trade nunca se mexeram para explicar o que as medidas significavam para o público em geral ou — diante de uma recessão crescente — como elas poderiam melhorar a vida da população; preferiram, em vez disso, repetir o sermão acerca de quão grave era a ameaça do aquecimento global.
Se um dos maiores erros da Waxman-Markey foi a inabilidade de seus apoiadores para mostrar como a lei climática tornaria a vida das pessoas mais fácil, o New Deal Verde opera constantemente entregando e divulgando ganhos tangíveis em qualidade de vida, usando vitórias prévias como uma oportunidade para obter mais apoio junto às muitas e muitas pessoas que serão necessárias para desafiar o poder colossal dos executivos de combustíveis fósseis, dispostos a ir à luta de um jeito ou de outro. O New Deal Verde de Sanders oferece à população uma visão de quão melhor o mundo seria sem eles; seus princípios e sua política não estão apartados.
O plano de Sanders prevê uma série de investimentos tanto em trabalhadores como em comunidades já atingidas duramente pelo declínio no número de empregos em indústrias como a do carvão. As provisões para uma transição justa proporcionariam cinco anos de seguro desemprego, uma garantia salarial e um monte de outros benefícios para trabalhadores, assim como US$5,9 bilhões em financiamento a agências regionais de desenvolvimento econômico como a Comissão Regional Apalachiana. Reforçando quão sólida essa transição será, o New Deal Verde vai gastar seus primeiros dois anos “estabelecendo intensamente uma rede de segurança social para garantir que ninguém será deixado para trás”, expandido programas estatais de bem-estar social — como almoços gratuitos nas escolas e programa de suplemento alimentício — que em décadas recentes passaram a sofrer ataque tanto dos democratas como dos republicanos.
Há também várias referências à implementação do [seguro de saúde] Medicare para Todos e a um aumento expressivo da filiação sindical no texto que a equipe de Sanders apresentou em outro plano na semana passada. Comunidades em todo o país também poderiam receber auxílio financeiro para assumir o controle de suas instalações elétricas particulares, e o plano corajosamente estabelece um esquema detalhado para “acabar com a ganância em nosso sistema de energia” e garantir que a “energia renovável gerada pelo New Deal Verde seja de propriedade pública” — uma condição que certamente vai desagradar os atuais proprietários das instalações, que gastaram milhões bloqueando medidas climáticas em cada esfera do governo. Inicialmente, o Estado vai ficar com o lucro proveniente dos novos serviços de energia, mas, de acordo com o plano, essa energia renovável será “virtualmente gratuita” depois de 2035.
Usando uma velha cartilha, republicanos vão associar ao socialismo qualquer plano voltado a refrear emissões — seja a taxação de carbono, seja um padrão de eficiência energética. O plano de Sanders não se esquiva do fato de que o governo realmente vai desempenhar um papel mais ativo na economia — ou que a vida da maioria das pessoas será melhor por isso.
Em vez de ser receptivo aos interesses dos combustíveis fósseis na mesa de negociações, Sanders os elege como inimigo número um. Há tanto razões práticas quanto políticas para não alistar as colegas da ExxonMobil na transição para uma economia de baixo carbono: o centro de seu modelo de negócios — desenterrar e queimar tanto carvão, óleo e gás quanto possível — não mudou, e é claramente incompatível com o processo de descarbonização no tempo que a ciência diz ser necessário para evitar uma catástrofe. Além de banir o fraturamento e a “decapitação” de montanhas para mineração de carvão, assim como a extração em áreas estatais, Sanders planeja “processar a indústria dos combustíveis fósseis pelos danos causados”, referindo-se especificamente a revelações feitas nos últimos anos mostrando que a Exxon financiou a desinformação em torno do clima, mesmo sabendo muito bem o dano que o aquecimento global representa. “Essas corporações e seus executivos não deveriam se safar depois de esconder a verdade do povo americano. Eles deveriam pagar pela destruição que sabidamente causaram”, afirma o plano. Nesse aspecto, a proposta de Sanders é mais combativa que a de Ocasio-Cortez e Markey, que não menciona combustíveis fósseis.
Diante de uma luta historicamente tímida quando se trata de dar nome aos bois — e que frequentemente apresenta o problema como sendo de ação coletiva —, o New Deal Verde encoraja uma estratégia de “nós contra eles” não muito diferente da adotada por sua homônima. “Acho que as pessoas em geral se sentem apavoradas em relação à crise climática. Mas elas também foram enganadas, em parte, pela indústria de combustíveis fósseis, para acreditar que é tudo nossa culpa”, diz Weber. “Essa obviamente não é a verdadeira história. A história real é que estamos nessa confusão graças a um punhado de bilionários, com seus lobistas e políticos. Se vamos realmente tentar superar essa crise, as pessoas precisam ouvir a verdade, precisam ficar furiosas em relação a isso e saber que, se tirarmos esses caras do caminho, poderemos ter um mundo melhor para todo mundo.”