São duas da tarde e o centro de Santiago começa a ficar inquieto novamente. Do palácio presidencial de La Moneda, é possível ouvir buzinas, cantos e apitos das centenas de pessoas que protestam nos arredores.
As manifestações não dão trégua ao governo do presidente Sebastián Piñera desde que ele determinou um aumento nas passagens de metrô no dia 18 de outubro, dando início à crise política e social mais profunda dos últimos 30 anos no país sul-americano.
O governo precisou suspender a alta do preço do transporte público e se comprometeu a implementar uma agenda social amplamente esperada por muitos chilenos, como o aumento de 20% das aposentadorias.
Mas nada parece acalmar a fúria das ruas.
Em entrevista à BBC, a primeira desde que a crise se instalou, Piñera defende sua decisão de decretar estado de emergência (e, com isso, colocar militares nas ruas), trata das divisões políticas e econômicas no Chile e assegura que, apesar dos pedidos por sua renúncia, não pensa em fazê-lo.
Ele também admite mudanças, por meio do Congresso, na Constituição, em vigor desde a ditadura de Augusto Pinochet.
O modelo adotado à época tinha privatizações como um pilar: desde então, serviços básicos como eletricidade e água potável passaram para a iniciativa privada. Outros serviços, como educação e saúde, também sofreram processo semelhante.
O controle estatal da economia diminuiu com a Carta, que persistiu sob governos de esquerda na redemocratização, e os investimentos estrangeiros cresceram.
Os indicadores macroeconômicos do Chile estavam em crescimento, o que transformava a condução da economia em um modelo de sucesso, mas esses números ocultaram o que estava acontecendo com as camadas que estão abaixo das elites econômicas.
Nos protestos, os chilenos dizem se sentir "abandonados" pelo Estado e denunciam "abusos" do sistema. Para manifestantes, o país hoje é absurdamente desigual.
BBC - O senhor afirmou que o Chile era um oásis na América Latina, mas também é um dos mais desiguais entre os mais desenvolvidos...
Sebastián Piñera - Isso não está correto. O Chile está na média em termos de desigualdade na América Latina. É claro que ainda é um país bastante desigual, e é por isso que estamos lutando para vencer a pobreza e reduzir a desigualdade, mas não é o país mais desigual da América Latina.
BBC - Mas segundo a OCDE...
Piñera - Em comparação com os países da OCDE (organização conhecida como "clube dos países ricos"), isso é verdade. Em comparação com a América Latina, isso é outra história. Estamos totalmente comprometidos em derrotar a pobreza, aumentar a mobilidade social e reduzir a desigualdade.
BBC - Diante de tamanha revolta popular, que autocrítica deve ser feita por seu governo e pelo sr.?
Piñera - Muitas autocríticas, e as estamos fazendo. Ninguém previu ou teve a sensibilidade para se dar conta disso. Não escutamos com atenção suficiente, não entendemos a mensagem (das ruas) com clareza suficiente. E esta não é uma crítica só para este governo, é algo que vem se acumulando há décadas.
BBC - Quais são, para o sr., os pontos no sistema político-econômico chileno que vêm se acumulando há décadas e levaram a essa crise social?
Piñera - Há vários. Apesar de termos reduzido a desigualdade, o Chile continua sendo um país bastante desigual. As pessoas têm a percepção, com muita razão, de que no Chile há muitos abusos. De que há muitas empresas que não respeitam seus clientes, seus empregados e o meio ambiente. Depois de muito tempo, decidiram se manifestar com toda a força que têm demonstrado.
BBC - Houve protestos em 2006 e 2011, que talvez não tenham sido tão grandes, mas o senhor está na política há bastante tempo. Essa revolta popular não pode ter sido uma surpresa tão grande para o sr...
Piñera - Nas últimas duas semanas temos vivido dois fenômenos diferentes, de naturezas distintas. Primeiro, este absolutamente inesperado, foi a onda de destruição e violência de um modo bastante organizado.
Foram depredadas ou queimadas quase 100 das 136 estações de metrô, além de mercados e lojas.
Essa violência é inadmissível, não está dentro da lei. Tivemos de usar ferramentas democráticas e constitucionais, como decretar o esado de emergência, para restituir a ordem pública e proteger os nossos cidadãos.
Outra história bastante diferente é aquela das manifestações legítimas, dos protestos de cidadãos chilenos. É óbvio que as pessoas têm direito de protestar. Reconhecemos isso e protegemos esse direito porque é parte de nossa democracia.
BBC - Mas as ruas de Santiago não pareciam protegidas. Temos visto pais correndo com seus filhos para evitar bombas de gás lacrimogêneo enquanto protestavam pacificamente...
Piñera - Quando isso ocorre, é porque há grupos criminosos que usam todo tipo de violência, que estavam determinados a transformar tudo em cinzas.
BBC - Mas esse é um grupo pequeno.
Piñera - Sim, é uma pequena parcela, e é por isso que fiz uma clara distinção entre os grupos organizados, que estão dispostos a destruir tudo e que não podemos permitir, e os milhões de chilenos que se manifestam nas ruas. Reconhecemos o direito de protestar, estamos escutando tudo com cuidado e temos respondido a isso.
O problema é que quando há esses episódios de violência as pessoas que mais sofrem são as mais pobres e as de classe média.
É por isso que eu lamento tanto o tremendo estrago que essa onda de violência e destruição tem gerado nas pessoas de baixa renda, e não podemos permitir em um Estado democrático que as pessoas pensem que podem fazer o que quiserem. Porque, no fim, isso destruirá nossa democracia e machucará a maioria de nossos cidadãos.