JUAN KARITA (AP)
A violência sobressalta a Bolívia. Desde a renúncia de Evo Morales, anunciada no domingo, a convulsão social que sacode o país se precipitou até degenerar em um abismo de caos, vandalismo e batalhas campais. As Forças Armadas decidiram sair às ruas com a polícia para conter os protestos mais duros dos simpatizantes do Movimento ao Socialismo (MAS), que até o último fim de semana era o partido governamental. A advertência partiu do próprio general Williams Kaliman, o comandante do Exército que, com seu pronunciamento na tarde do domingo, acelerou a renúncia do presidente. Os militares, segundo ele, receberam uma comunicação das unidades policiais sobre sua incapacidade de fazer frente à crise, e por isso decidiram agir para “evitar sangue e luto”. Em um pronunciamento transmitido pela televisão, Kaliman anunciou que os soldados empregarão a força “de forma proporcional contra os atos de grupos de vândalos que causam terror à população”.
Especialmente em La Paz e no município de El Alto se vivem horas de pânico. Os habitantes dessas duas cidades vizinhas trancaram-se em suas casas e, grudados à televisão, observam assustados os acontecimentos. “O leão acordou”, dizem nas redes sociais os simpatizantes do MAS sobre as multidões que protestam com fúria incontrolável pela renúncia do presidente Morales, que na noite desta segunda-feira, após governar seu país durante 14 anos, embarcou com destino ao México, onde receberá asilo. Os militantes fazem isso da pior maneira: tentando se vingar da Polícia, acusada pelo ex-mandatário de cumplicidade em sua queda, por causa de seu motim, o que a colocou ao lado dos manifestantes que exigiam a renúncia de Morales por causa da suposta fraude na eleição presidencial de 20 de outubro.
Ao grito de “Agora sim, guerra civil”, milhares de jovens de El Alto atacaram delegacias, patrulhas e alguns policiais, que fugiram. Depois se soube que a multidão desceria para La Paz, onde tentaria tomar o Palácio Quemado, sede do Governo; a ameaça bastou para que todos os comércios, bancos, e mercados da capital administrativa baixassem as portas, e para que os moradores formassem barricadas nas esquinas e começassem a patrulhar as ruas para evitar saques durante a noite. Os parlamentares que tentavam organizar a sessão da Assembleia Legislativa que, a se confirmar a agenda prevista, escolherá um presidente interino nesta terça, suspenderam seu trabalho e se foram.
Morales mencionou a intervenção dos militares – que saem às ruas após vários dias de um motim policial que enfraqueceu a capacidade de reação do Governo – para traçar um cenário sombrio de repressão. “Para um presidente indígena que representa o povo humilde, a Polícia se amotina e dá golpe, enquanto as Forças Armadas pedem sua renúncia. Para políticos neoliberais que ostentam poder econômico, Polícia e Forças Armadas reprimem o povo que defende a democracia com justiça, paz e igualdade”, escreveu nas redes sociais antes de partir para o México.
Representantes do extinto governo e seus principais adversários, incluindo o ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005) e o líder direitista Luis Fernando Camacho, passaram o dia se enfrentando a respeito do conceito do termo “golpe de Estado”. Todos se dirigiram à comunidade internacional. Os primeiros para ressaltar uma quebra das engrenagens democráticas, os outros para negarem qualquer tentativa de subverter a ordem constitucional. Os comitês cívicos de Santa Cruz continuaram mobilizados em dezenas de bloqueios e barricadas nas ruas da segunda maior cidade do país, sem que tivessem sido registrados incidentes graves nesta segunda-feira.
Foi sobretudo em El Alto e La Paz onde a violência se desatou. Além disso, La Paz ficou cercada por numerosas colunas de manifestantes que iniciaram o “cerco” decidido pelos sindicatos de camponeses em protesto pela renúncia de seu líder histórico, que lhes devolveu presença social depois de séculos de injustiças. Centenas de comuneros rodearam alguns dos bairros residenciais desta zona urbana e, agitando paus e explodindo pequenas cargas de dinamite, semearam o terror e deixaram seus moradores desesperados, clamando em vão pela chegada de policiais. Em um dos bairros mais expostos vive o próprio Mesa, que publicou um tuíte pedindo que a Polícia evitasse um ataque à sua casa, como ocorrera na noite anterior com o domicílio de Waldo Albarracín, reitor da universidade pública e outro dos dirigentes dos protestos contra Morales.
A situação de tensão agravou ainda mais a divisão entre brancos e indígenas, e entre as classes média e baixa, que aflorou nesta crise política vindo do fundo da história. Nas redes, os assustados vizinhos desabafaram descrevendo os manifestantes agressivos com toda classe de epítetos depreciativos e racistas; ao mesmo tempo, faziam circular instruções para se organizarem e fazerem “cadeias de oração”. Nas ruas, por sua vez, as pessoas não paravam de proferir ameaças de morte a Mesa e Camacho, o líder do Comitê Cívico pró-Santa Cruz, que já tinha recebido ameaças dos milicianos conhecidos como Ponchos Vermelhos.
Nas primeiras horas posteriores à renúncia de Morales, os policiais amotinados representaram com diferentes gestos sua adesão à onda política vitoriosa: um grupo tentou prender Morales; outro extrapolou suas funções ao deter membros do Tribunal Eleitoral acusados de fraude; e um terceiro arrancou de seus uniformes a representação da whipala, bandeira indígena que, de acordo com a Constituição, é um dos dois símbolos nacionais, mas que, na prática, está associada ao MAS. No dia seguinte, a Polícia – que, afetada pelo motim, não consegue se organizar internamente – realizou um ato de desagravo à whipala, e um de seus oficiais afirmou que quem a tirar do uniforme enfrentará ações penais. No ato, um dos policiais disse, em idioma aimará, que a Polícia é “amiga do povo”. Foi uma tentativa de aplacar a “fera adormecida”, ou seja, os grupos indígenas que, após a queda do seu líder absoluto, não compreendem o que ocorre e só lhes ocorre gritar e golpear tudo o que encontram, em particular os policiais “traidores”.