Luis interpreta a trilha sonora de O Poderoso Chefão à beira-mar em Havana. Todos os dias, quando o sol e o calor baixam detrás dos altos edifícios da cidade, ele se senta a uns metros dos pescadores e toca o trombone, pedindo uma colaboração para os turistas. Conta que é obrigado a fazê-lo porque o salário que ganha se tocando o instrumento em um restaurante não lhe permite chegar ao final do mês. “Parece que agora os americanos vão chegar. Se trouxerem coisas boas para os nossos bolsos, estou contente que cheguem”, diz Luis.
O músico se refere ao degelo diplomático que Cuba e Estados Unidos anunciaram no dia 17 de dezembro de 2014, depois de mais de 50 anos construindo uma cortina de ferro entre ambos. “Nos Estados Unidos, existem lobbies de ambos os partidos, sobretudo de agricultores, que empurraram o governo no sentido de mudar sua política em relação a Cuba”, explica Leonel González, da associação civil cubana Centro Martin Luther King. “Foram fortes também as pressões dos governos de esquerda latino-americanos. De fato, em seu discurso, Obama citou explicitamente Dilma Rousseff”.
Desde o inesperado anúncio, têm sido muitos os sinais de aproximação entre os dois povos. Em maio, a Orquestra Sinfônica de Minnesota se exibiu na ilha; e no mês seguinte chegou a equipe de futebol New York Cosmos — com o ex-jogador Pelé — para um jogo amistoso histórico com a seleção cubana. O governo dos Estados Unidos flexibilizou as viagens dos norte-americanos a Cuba e deu permissão para o estabelecimento de voos regulares e de uma linha de balsas entre os dois países. Além disso, os norte-americanos apagaram Cuba da lista dos países que, segundo eles, patrocinam o terrorismo, e daquela que os países supostamente são cúmplices com o tráfico de pessoas.
Entretanto, Obama reiterou em várias ocasiões que não abandona seu propósito de mudar o regime da ilha e continua dizendo que está apreensivo com a situação dos direitos humanos em Cuba. “Do nosso lado, estamos preocupados com a situação dos direitos humanos nos Estados Unidos, na Europa e no mundo inteiro”, rebate Leonel González do Centro Martin Luther King. “Em Cuba, por causa da guerra com os Estados Unidos foi declarado 'estado de necessidade', que restringiu alguns direitos, por exemplo, o uso dos meios de comunicação. Mas também há milhões de europeus que não têm emprego, ali também há uma grande violação dos direitos humanos”, afirma o analista.
Depois de uma decisão histórica, no último dia 20 de julho Cuba e Estados Unidos restabeleceram relações diplomáticas e reabriram suas embaixadas, mas somente nesta sexta-feira (14/08), o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, hasteou a bandeira dos EUA em Havana, mais um episódio histórico. O restabelecimento de relações diplomáticas não compreende, entretanto, sua normalização. “Começa agora um longo e complexo caminho para a normalização das relações bilaterais que inclui, entre outros aspectos, que o bloqueio cesse e que a base naval de Guantánamo seja devolvida”, afirmou o vice-presidente cubano José Ramón Machado.
Em 28 de julho, um congressista estadunidense republicano e um democrata apresentaram uma iniciativa de lei para o cancelamento do bloqueio, apoiada por 59% da população e por alguns lobbies, mas rejeitada pela maioria republicana do Congresso. O mesmo Congresso que, segundo afirmou a Casa Branca, em breve receberá o rascunho de um plano para fechar a prisão de Guantánamo.
Família dividida
Durante a juventude, Alfredo integrava as Forças Armadas Revolucionárias e, em 1961, se encontrava na Baía dos Porcos quando um grupo de exilados cubanos apoiado pelos Estados Unidos tentou invadir a ilha. Atualmente, aos 75 anos de idade, continua apoiando o governo de Castro e está preocupado com a chegada dos estadunidenses a Cuba, cuja presença depois do degelo diplomático aumentou 54% em relação ao ano anterior.
“Com a entrada dos turistas norte-americanos temos de ter cuidado, virão pessoas de lá não apenas para visitar Cuba, mas para espionar e promover uma penetração ideológica”, diz Alfredo. “Os Estados Unidos não deixarão de lutar contra o governo cubano. Farão como fizeram sempre, de forma encoberta, como fazem em todos os países socialistas e progressistas latino-americanos, como fizeram em Honduras em 2009 quando promoveram um golpe de Estado.”
Alfredo acredita que a aproximação com os Estados Unidos pode trazer prejuízos, mas também benefícios econômicos. Sua mulher, Teresa, que anualmente viaja para os Estados Unidos para visitar sua filha, é entusiasta e se diz convencida de que os norte-americanos trarão desenvolvimento para a ilha. “Se me dá medo a entrada do capitalismo? Não, sendo que já existe em Cuba e a abertura para os Estados Unidos é somente um passo a mais nessa direção”.
Teresa alude às reformas que Cuba está promovendo desde os anos 1990, quando entrou em crise depois do colapso da União Soviética. Essas normas, que o governo cubano chama de “atualização do modelo econômico”, levaram a uma abertura paulatina da economia. Onde antes havia empresas e negócios estatais, chegaram as companhias estrangeiras e o turismo. As gerações que foram criadas depois dos anos 1960, pela primeira vez, conheceram o consumismo e aprenderam a conviver com ele. “Atualmente, muitos cubanos desejam consumir e muitas vezes nos lugares onde o consumismo se impõe o capitalismo avança muito rápido. Penso que é um momento muito delicado para a Revolução Cubana”, adverte o ativista e analista uruguaio Raúl Zibechi.
Em abril de 2014, a nova Lei do Investimento Estrangeiro cubana legalizou a existência de empresas mistas de capital totalmente estrangeiro. A norma contempla também a ampliação do porto de Mariel, a cerca de 45 km de Havana, para a construção de uma Zona Especial de Desenvolvimento, de 465,4 km², onde as empresas estrangeiras possam operar com facilidades fiscais e aduaneiras.
A primeira fase das obras de ampliação do porto foi concluída em janeiro de 2014, graças a um investimento de cerca de 1 bilhão de dólares da Odebrecht, mais da metade financiado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), que concedeu crédito com juros suaves para a modernização da infraestrutura do país.
“O Brasil quer se transformar no principal sócio de Cuba”, disse a presidente Dilma Rousseff, durante a inauguração do novo porto de Mariel. Atualmente, o Brasil é o quinto sócio comercial de Cuba que, no primeiro semestre de 2015, recebeu exportações brasileiras somando mais de US$ 204 milhões.
“As mudanças em Cuba são por mais socialismo”, lê-se nos pôsteres que enchem as ruas da ilha. Segundo o governo, a ilha não trairá seu sistema econômico a ponto de que os programas sociais e os setores mais estratégicos da economia deixem de ser controlados pelo Estado. Mas há os que acreditem que o país caribenho já está em um caminho que desnaturaliza seu caráter socialista.