Não sei se o nome de Vanessa Baraitser, magistrada do Tribunal Criminal Central de Londres, entrará para a história do Direito Penal Internacional ou das extradições de seu país. Mas a decisão que ela proferiu nesta segunda-feira (4) marcará um antes e um depois em sua carreira, ao negar a entrega de Julian Assange, fundador do Wikileaks, aos Estados Unidos. Foi o que aconteceu, como pano de fundo, com o juiz Ronald Bartle, quando concedeu a extradição de Augusto Pinochet em 1999.
É verdade que ela poderia, e talvez devesse, ter optado por uma decisão mais enérgica, colocando claramente a defesa da liberdade de expressão como motor de sua sentença. Mas ela optou por recorrer à variável menos complicada para a justiça britânica, sempre tão equilibrada e politicamente correta. Isto é, motivos humanitários.
Ao rejeitar a extradição de Julian Assange, conforme solicitado pelos Estados Unidos, causou um suspiro coletivo de alívio. A juíza veio resolver o que tantas vezes revelamos da equipe de defensores que coordeno: a saúde de Julian Assange sofreu uma evidente deterioração, resultado de tantos anos de confinamento forçado e do permanente assédio que ele sofreu durante todo esse tempo de cerco. “O risco de Assange cometer suicídio, se a extradição fosse permitida, era alto”, explica Baraitser. “A saúde mental do senhor Assange está em tal estado que seria esmagador para ele ser extraditado para os Estados Unidos.”
É certo. Eu vi com meus próprios olhos como o jornalista e fundador do WikiLeaks foi tratado de forma desumana por forças poderosas e onipresentes que tentaram por todos os meios silenciá-lo, neutralizá-lo e destruí-lo. Eles não tiveram sucesso. É a luta do próprio Davi contra Golias que temos travado para combater a impunidade nos Estados Unidos, já que em 19 de junho de 2012 Julian foi recluso na embaixada do Equador em Londres para exigir asilo, que lhe foi concedido pelo governo do presidente Rafael Correa, corajoso diante do imponente governo norte-americano. Estávamos arriscando a liberdade de expressão, a liberdade de informação e, acima de tudo, o direito dos cidadãos de saber quem puxa os cordões que movem o mundo, o que não querem que saibamos e para onde pretendem ir. Em outras palavras, a própria essência da democracia estava em jogo.
Assange levantou-se
Julian Assange se levantou e pagou por isso. Eles o acusaram de cometer 18 crimes, 17 deles sob a Lei de Espionagem de 1917 – você pode ver de que época estamos falando – e um relacionado à suposta ajuda de computador para o militar Chelsea Manning, que os Estados Unidos alegam ter sido a fonte do WikiLeaks. Os 175 anos de prisão que alegam têm a ver com a publicação dos diários de guerra do Iraque e do Afeganistão em 2010, os arquivos de Guantánamo e os telegramas do Departamento de Estado. O que Assange revelou foi a prática de diversos crimes pelas autoridades dos EUA: crimes de guerra, tortura e vários crimes internacionais.
Ele viveu uma verdadeira provação desde então. Isso foi destacado pelo relator da ONU contra a tortura, Nils Melzer. Bem como o Grupo de Trabalho da ONU sobre Detenções Arbitrárias e o Relator de Saúde da mesma Organização, com relatórios repetidos e conclusivos. Além disso, o tratamento recebido na prisão de segurança máxima de Belmarsh desde sua expulsão da embaixada, em abril de 2018, levou à condenação judicial de que qualquer processo contra ele que terminasse em condenação seria cruel e pode levar à morte certa.
Esta resolução evidencia a desproporcionalidade das penas possíveis e as dúvidas que o sistema penitenciário norte-americano, principalmente em tempos de pandemia, suscita no magistrado e faz com que em sua resolução leiamos a aparente contradição de afirmar que o processo seria justo no país demandante, mas a execução da sentença não, porque poderia levar irreversivelmente à morte do sujeito afetado. Esta afirmação é ainda mais grave se for possível afirmar claramente que a perseguição a Julian Assange foi política e repressiva do direito à liberdade de expressão, como realmente o é do ponto de vista da defesa. A decisão acaba desqualificando todo o mecanismo penitenciário norte-americano, como fez a mesma justiça do Reino Unido há apenas dois anos com o caso de Lauri Love, do Anonymous, ao negar, pelo mesmo motivo, sua extradição para os EUA em fevereiro de 2018.
Sete anos de confinamento e assédio
A solidariedade e o espírito justo do presidente Correa impediram que Assange, ao refugiar-se na Embaixada do Equador em Londres, fosse entregue à Suécia por uma obscura acusação que se esvaziou com o tempo sem que houvesse acusações e foi encerrada sem provas, mas que gerou a firme suspeita de que tudo fora uma estratégia para provocar sua extradição para os Estados Unidos. Esse foi o jogo.
Passou sete anos na embaixada, em um quarto sem sol, sem ar fresco, sofrendo de todo tipo de enfermidades físicas e psicológicas. Sendo espionado constantemente. A mudança de governo no Equador com a chegada ao poder de um presidente, Lenin Moreno, submisso aos Estados Unidos, levou à expulsão da embaixada e à entrada em um presídio de alta segurança que ameaçava acabar destruindo o frágil estado do jornalista. Na minha última visita àquela prisão, quando nos despedimos, chorosos, com um longo abraço, realmente temi por sua vida e duvidei que a justiça no caso de Julian Assange pudesse ser calibrada, enquanto nenhum dos fatos graves denunciados por ele tinha sido investigado pelo país que exigia silenciá-lo.
Neste confronto, o assédio se espalhou para seu entorno imediato. Seus advogados também foram espionados pela empresa espanhola de segurança (UC Global), presente na embaixada do Equador e supostamente relacionada com os serviços de inteligência norte-americanos, o que está sendo investigado no Tribunal Central de Instrução número cinco do Tribunal Nacional Espanhol. Nem mesmo o bebê, filho de Assange, foi poupado de tal vigilância, cuja vida, mesmo em termos tão minimalistas, foi exaustivamente revisada e analisada.
Mate o mensageiro
O grande pecado que o jornalista cometeu foi, sem dúvida, fundar o WikiLeaks, a agência de notícias que estabeleceu um sistema de firewall em IPs para que qualquer denunciante no mundo pudesse enviar informações relacionadas à prática de crimes para essa plataforma. A fonte foi mantida anônima. Anos mais tarde, uma diretiva europeia sobre esses denunciantes é proposta nos mesmos termos.
Matar o mensageiro sempre foi o recurso dos ímpios, dos criminosos, daqueles que não sabem esconder o mal que exercem. O silêncio é o remédio que eles aplicam com força na crença de que assim seus pecados não virão à luz. Às vezes eles conseguem, mas neste caso a peça não correu bem. Assange não estava sozinho, havia centenas de milhares de vozes que clamavam pela liberdade do jornalista em todo o mundo. Embora também seja verdade que houve muitos silêncios oficiais e desqualificações pessoais inaceitáveis. Mas no final, e por enquanto, enquanto se aguarda o apelo mais do que provável, a justiça foi feita em um momento chave, quando Donald Trump, enfurecido por sua condição de presidente cessante, dá seus últimos golpes aplicando mão pesada em todos aquelas questões que ele pode resolver com seu estilo nos poucos – e longos dias – que faltam para a substituição presidencial. Não quero pensar no que teria acarretado a extradição de Assange nestas circunstâncias.
Acho que o melhor resumo foi feito por Noam Chomsky, cujo depoimento lemos no julgamento perante o magistrado britânico. Na opinião do filósofo, Assange prestou um enorme serviço à liberdade de expressão e à democracia. “O governo dos Estados Unidos busca criminalizá-lo por expor um poder que pode evaporar se a população aproveitar a oportunidade de se converter em cidadãos independentes de uma sociedade livre, ao invés de súditos de um mestre que opera em segredo”. Essa é a glória de Assange e a miséria dos Estados Unidos. Hoje, o mensageiro ainda está vivo. E nós, seus advogados, continuaremos a defender que ele apenas cumpriu, nem mais nem menos, com o seu dever de jornalista em benefício de todos.