Fotos: Lina Etchesuri/ Acampe contra Monsanto
Formado por donas de casa, funcionários públicos, empregados do setor privado, jovens e adultos, o movimento Assembleia das Malvinas Argentinas – cidade da província de Córdoba – completa neste mês mais de 730 dias combatendo a Monsanto, a maior corporação agrícola mundial. “Chamam de progresso, mas os lucros são privados e nos territórios ficam a doença e a devastação”, diz um dos moradores.
A região é cercada por plantações de transgênicos e fumigações. O impacto na vida das pessoas é sentido pela contaminação vivenciada por familiares, vizinhos e no próprio corpo. Aos poucos, os moradores da região começaram a se informar sobre a empresa e o impacto que a fábrica de milho transgênico teria naquela sociedade. Então decidiram, em 19 de setembro de 2013, realizar o bloqueio da entrada da fábrica e, mesmo com a repressão da polícia e do governo local, dois anos depois, seguem barrando os objetivos da corporação.
O fato, estranhado pela própria empresa que “reconheceu nunca ter passado por semelhante situação”, como afirma um dos moradores, é objeto de estudo para acadêmicos e é considerado um importante caso testemunhal para outros movimentos, além de mau exemplo por governos e empresas. Para a Monsanto, é uma manifestação que impede "o direito ao trabalho".
Para retratar essa experiência, o jornalista argentino Darío Aranda foi até a localidade e registrou as impressões dessas pessoas que lutam contra uma causa supostamente perdida e estão ganhando. Segue o relato:
Televisão
A população das Malvinas Argentina se inteirou pela televisão de que teria a Monsanto como vizinha. Foi em 15 de junho de 2012, quando a presidente Cristina Kirchner informou, falando dos Estados Unidos, que a multinacional lhe havia confirmado a instalação de uma fábrica na localidade de Córdoba. Só sabiam disso o prefeito, Daniel Arzani, do partido UCR (União Cívica Radical UCR), e seus colaboradores mais próximos.
Eli Leiria escutou o anúncio na televisão. Mas deu por certo que se tratava da localidade de mesmo nome na Província de Buenos Aires. Até que lhe avisaram que era a poucas quadras de sua casa. Não sabia nada sobre a Monsanto. No dia seguinte, perguntou a um estudante universitário, da casa de família onde trabalhava, e a resposta a deixou gelada: “Você está frita”, ele disse. E lhe passou os primeiros dados da história da empresa.
Começou a ler, a se informar, a perguntar. E já não lhe restavam dúvidas. “Aí, acordei. Alguns vizinhos diziam que ia trazer mais trabalho, eu lhes respondia que sim. Mais trabalho para os oncologistas, os médicos, os coveiros”, ironiza, mas não esboça um sorriso.
Raquel Cerrudo conta que havia deixado a capital cordobesa em busca de tranquilidade. “Quer melhor que uma pequena cidade nos arredores?”, diz. Passados seis meses da mudança, o anúncio da Monsanto. Raquel via a televisão e chorava. Sabia o que era a Monsanto por um trabalho com uma bióloga crítica do modelo agropecuário. Conhecia pouca gente no bairro. Começou a falar com os lojistas, no açougue, no armazém, a trocar informações. Assim conheceu outras pessoas inquietas com o tema e se inteirou de uma palestra do biólogo Raúl Montenegro. E também de uma manifestação na capital, onde foi com uma faixa da cidade de Malvinas. Lá, conheceu Ester Quispe, hoje também parte da assembleia. Veio a primeira reunião e o contato com dezenas de vizinhos, o segundo encontro e o nascimento do movimento.
Despertar
Silvana Alarcón cresceu em Malvinas. Sotaque cordobês inconfundível, lembra que não sabia o que era a Monsanto, como a grande maioria de seus vizinhos. A princípio acreditou no discurso de investimentos, de trabalho, mas também começou a escutar – primeiro superficialmente – quem era a empresa, sua história de denúncias e contaminação. “Começamos a reunir os vizinhos, a ler, ter outras informações. Aos pouquinhos fomos aprendendo”, recorda. Também lhe causou impacto o modo como a empresa começou a intervir no bairro, prometendo trabalho. Num terceiro momento, começaram a problematizar a situação atual, do povo rodeado por cultivos transgênicos e fumigações. “E nos demos conta de que havia muitas crianças doentes, com lúpus, malformações, problemas respiratórios, broncoespasmos. E se a isso acrescentássemos a Monsanto... fomos nos dando conta de que iria ser pior”, explica.
A mobilização se deve muito à visita de biólogos, médicos, advogados e também de movimentos e ativistas de outras cidades. A população avaliou também a proximidade da fábrica com a escola, conhecida como “La Candelária”, onde o filho de Alarcón estuda, e de onde se pode ver o prédio da Monsanto.
Ela lembra que a justiça havia freado a obra, mas a fábrica continuava em andamento. Sentia impotência ao ver que a empresa seguia com a construção. “Faziam o que queriam. Até que demos um basta, aqui não entra mais ninguém”, relata.
E nasceu o bloqueio. Setembro de 2013. Não foi sem consequências. Várias ações repressivas, policiais, balas de borracha, bandos da UOCRA (sindicato dos operários da construção civil na Argentina), pancadaria. Recorda-se de uma em particular. Ela estava em sua casa e escutava os disparos. Seus amigos e parentes estavam sendo alvo da repressão. Chorava de impotência. Espancaram seu irmão e seu marido. “Podia acontecer qualquer coisa”, afirma, e a voz fica embargada. “Em primeiro lugar, como mãe, está a saúde de meu filho. Não importa o que tenhamos de fazer. E não vamos recuar”, avisa.
Saúde
Em 2007, a dona de casa Eli Leiría teve seu primeiro choque com o modelo agropecuário. Começou a ter vômitos, diarreia, perdeu muito peso e passou a ficar fraca. O médico não encontrava nada, mas ela sentia que não tinha forças nem para se levantar da cama. Davam-lhe injeções, levantava-se um pouco e voltava a cair. Foi a outro médico. Ele lhe disse que os exames estavam bem. Ela sentia que estava morrendo.
Até que ligou os pontos. Ao lado de sua casa eram reciclados galões de herbicidas. Na realidade, o processo era mais que rudimentar. Eram levados sem lavar, cortados com uma serra de açougue e moídos. O terreno vizinho estava repleto de recipientes, e justo colado ao seu quarto. As árvores e todas as suas plantas morriam. Contou ao médico e ele não teve dúvidas. Mandou-a fazer novos exames. Mais complexos. Encontraram herbicidas no sangue dela. Não se lembra dos nomes, mas, sim, das cifras: “O máximo tolerado pelo organismo é 0,3%. Eu tinha 27”.
Perguntou ao médico como iria se curar. E se fez um longo silêncio. Ele lhe respondeu que nada podia ser feito. Que era preciso esperar. Disse-lhe que era como um tornado. A tempestade passa, mas as sequelas ficam. E as doenças podem aparecer meses ou anos depois. Dois anos depois foi constatado um enfisema pulmonar. O médico lhe perguntou se fumava muito. E ela nunca havia acendido um cigarro.
De pura impotência, começou a fumar nesse mesmo dia. “Eu escolho como morrer”, disse.
Diagnosticaram uma alteração no seu sistema nervoso e no aparelho digestivo. E lhe deram um coquetel de medicamentos. “Vou terminar me matando com remédios. Não quero isso”, avisou.
E o anúncio da Monsanto foi a cereja do bolo. Aderiu à segunda reunião de moradores, era o gérmen do movimento. No dia seguinte, foi ver o prefeito. “Não, querida. Não te preocupes. A empresa trará trabalho. Acontece que há pessoas que não querem trabalhar, e se opõem”, foi a resposta que lhe deu Daniel Arzani.
A chave, outra vez, foi a informação. Leu muito. Foi a debates. Viu documentários. Pensou em seu filho e se decidiu: não queria a empresa em seu bairro.
Contaminação
Silvia Vaca, 52 anos, é empregada municipal, nascida e criada nas Malvinas. O primeiro aviso sobre o modelo agropecuário veio pelo marido. Caminhoneiro, transportador de cereais. Costumava queixar-se do cheiro da roupa quando voltava do trabalho e da forte dor de cabeça. Silvia colocava as peças na máquina de lavar e tinha de enxaguá-las duas vezes. Odor penetrante.
O segundo veio quando a fossa séptica de sua casa ficou cheia. Chegou o caminhão limpa fossa e o funcionário chamou a atenção para a ausência de insetos e bactérias no material orgânico coletado. Perguntou se usavam algum produto químico forte. Silvia pensou em voz alta e, não, só água sanitária de vez em quando.
Terceiro aviso: a repentina pneumonia do marido. Internação, depois tratamento e, em poucas horas, risco de vida. Os médicos a tratavam com distanciamento, perguntavam e reperguntavam. Acreditavam que ela o tinha envenenado. Voltou a sua casa, deu a má notícia à família. Aí se deu conta. Voltou ao hospital e contou que o marido transportava cereais. Também colocava as famosas pastilhas de fosfina no caminhão para protegê-los dos insetos. Estava se envenenando.