Os líderes da manifestação afirmaram que o protesto era contra "o custo de vida, o golpe e a mentira, e a favor da democracia, eleições livres e da UE".Foto: Czarek Sokolowski/AP Photo/picture allian
Uma enorme manifestação ocorreu na capital da Polônia neste domingo (04/06), com cidadãos de todo o país viajando a Varsóvia para expressar seu repúdio ao atual governo ultraconservador nacionalista de direita, que é acusado de minar a independência do Judiciário, implementar políticas contra mulheres e minorias, distorcer a história e fazer uso do nacionalismo para sufocar a oposição e lançar críticas à União Europeia.
As autoridades de Varsóvia estimaram que 500 mil pessoas participaram do protesto, liderado pelo partido de oposição ao qual pertence o prefeito da cidade, Rafal Trzaskowski.
Grandes multidões também se reuniram em Cracóvia e outras cidades do país de 38 milhões de habitantes, a poucos meses das eleições legislativas. Muitos participantes exibiram bandeiras da UE e da Polônia, com alguns também segurando símbolos do arco-íris.
O ex-presidente Lech Walesa, líder do movimento Solidariedade que desempenhou um papel histórico na derrubada do comunismo na Polônia, subiu ao palco com o líder do partido de oposição Plataforma Cívica, o ex-primeiro-ministro e liberal pró-europeu Donald Tusk. Os líderes da manifestação afirmaram que o protesto era contra "o custo de vida, o golpe e a mentira, e a favor da democracia, eleições livres e da UE".
A multidão aplaudiu os dois homens, que costumam ser alvos de ataques do Partido Lei e Justiça (PiS), liderado pelo político Jaroslaw Kaczynski, e que comanda o governo polonês desde 2015. Em um breve discurso, Tusk destacou que a missão da oposição é de "importância comparável" a das dos anos 1980 e à luta contra o comunismo na época. A manifestação coincidiu com o 34º aniversário das primeiras eleições parcialmente livres na Polônia, que aceleraram queda do comunismo na Europa.
Tusk ainda pediu aos poloneses que marchassem com ele pelo bem do futuro da nação - uma mensagem que ressoou para Radek Tusinski, de 49 anos, que se reuniu com sua esposa e dois filhos pequenos. Uma placa feita à mão com os dizeres "Não posso desistir da liberdade" foi colcoada junto ao carrinho de bebê.
Tuskinski disse que se preocupa com a possibilidade do retorno de um sistema autoritário semelhante ao que ele lembra de sua infância. "Queremos um país livre para nossos filhos", disse.
Apoiadores da marcha alertaram que a eleição pode ser a última chance do país de impedir a erosão da democracia que vem ocorrendo sob o comando do PiS, em meio a temores crescentes de que a eleição de outono não seja justa e que o país esteja trilhando o caminho "ilberal" da Hungria.
No poder, o PiS combinou uma fórmula de gastos sociais mais altos com políticas socialmente ultraconservadoras e apoio à Igreja nesta nação majoritariamente católica. No entanto, os críticos alertam há anos que o partido está revertendo muitas das conquistas democráticas desde que a Polônia se viu livre do regime comunista em 1989.
Até mesmo o governo dos EUA, um aliado da Polônia, chegou a manifestar preocupação com a erosão da liberdade de imprensa e da liberdade acadêmica na área de pesquisa do Holocausto na Polônia.
Os críticos apontam principalmente para a ofensiva do PiS contra o Judiciário e a mídia independente no país. O partido costuma usar a mídia estatal para atacar a reputação dos seus oponentes. O PiS também instrumentalizou o preconceito contra minorias, principalmente LGBTQ+, cuja luta por direitos o partido descreve como uma ameaça às famílias e à identidade nacional. A repressão ao direito ao aborto, outra bandeira do partido, já desencadeou protestos no país.
Os críticos do PiS também temem que o partido possa eventualmente forçar o país a deixar a União Europeia.
Alguns também expressaram raiva pela inflação de dois dígitos no país. O governo culpa a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a pandemia de covid-19, mas economistas dizem que as políticas de gastos do PiS aceleraram a espiral dos preços.
Barbara Dec, de 26 anos, e sua avó deixaram sua cidade natal, Zielona Gora, às 4h30 e viajaram sete horas em um ônibus organizado pela oposição para protestar. Eles planejaram voltar para casa imediatamente após a manifestação em Varsóvia. Dec exibiu um cartaz de papelão que dizia: "Tenho medo de ter filhos na Polônia".
"As mulheres perderam o direito de abortar mesmo quando o feto está em estado terminal, e algumas mulheres morreram", disse ela.
O PiS chegou a tentar desencorajar a participação nos protestos com um vídeo que usava imagens do campo de concentração de Auschwitz. A tática rendeu críticas por parte do museu responsável pelo memorial.
Em 2018, o governo do PiS também foi alvo de críticas de Israel por promover uma lei que previa multas e penas de até três anos de reclusão se alguém, entre outras coisas, atribuisse "publicamente e contra os fatos" ao povo ou ao Estado polonês responsabilidade ou corresponsabilidade por crimes nazistas cometidos pelo Terceiro Reich.
Os críticos temiam que a lei poderia impedir que sobreviventes do Holocausto e pesquisadores relembrassem ou apontassem a participação de poloneses no genocídio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. O governo de Israel chegou a acusar os poloneses de tentar reescrever a história e até mesmo de negar o Holocausto.
O protesto deste domingo foi visto como um teste para a Plataforma Cívica de Tusk, um partido centrista e pró-europeu que permanece atrás do PiS nas pesquisas. Aparentemente, uma controversa lei promovida pelo PiS para criar uma comissão para supostamente investigar a "influência russa" no país parece ter fortalecido a oposição.
De acordo com a lei, uma comissão especial será formada para investigar se, entre 2007 e 2022, funcionários públicos, sob a influência de Moscou, tomaram decisões que ameaçaram a segurança do país. Eles poderiam então ser banidos por 10 anos de cargos públicos.
Na Polônia, a comissão foi descrita pela oposição e por vários juristas como inconstitucional e "estalinista". Críticos do governo condenaram a lei como uma tentativa de banir políticos da oposição de cargos públicos e uma forma de manchar a candidatura do ex-primeiro-ministro Donald Tusk nas próximas eleições. Por essa razão, o texto foi apelidado de "Lex Tusk" (Lei Tusk). A medida também foi fortemente criticada pelos Estados Unidos e pela União Europeia.
Em meio às críticas, o presidente Andrzej Duda, que assinou a lei em 29 de maio e é ligado ao PiS, ensaiou um recuo e propôs emendas na última sexta-feira.
Alguns poloneses dizem que a comissão pode se assemelhar às investigações de Joseph McCarthy, o senador dos EUA cuja campanha anticomunista no início dos anos 1950 levou à histeria e à perseguição política.
Esse medo foi reforçado no fim de semana passado, quando Kaczynski, o líder do partido governista, foi questionado por um repórter se ele ainda confiava no ministro da Defesa do governo em relação a um míssil russo que caiu na Polônia em dezembro. "Sou forçado... a vê-lo como um representante do Kremlin", respondeu ele ao jornalista. "Porque só o Kremlin quer que esse homem deixe de ser ministro da Defesa Nacional."
A ONG Repórteres Sem Fronteiras expressou preocupação de que a comissão possa ser usada para "fazer uma caça às bruxas contra jornalistas" e "servir como uma nova arma para esse tipo de ataque, em que se põe em dúvida a probidade dos jornalistas para tentar manchar sua reputação".
jps (AP, AFP, DW, ots)