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'Café alterou curso da história e fomentou ideias do iluminismo', diz pesquisador

Jul 19, 2023

Por André Biernath, na BBC News Brasil, em Londres                                                                                 

 

Café é consumido pela humanidade há pelo menos 15 séculos -  Foto: Getty Imagens

Todos os dias, mais de 2 bilhões de xícaras e copos de café são ingeridos em todo o mundo.

Isso significa que, nos poucos minutos que você demorar para ler este texto, ao redor de 10 milhões de pessoas terão tomado uma bebida dessas, segundo os dados de associações do setor.

Isso faz da cafeína, uma das substâncias presentes no café, a droga psicoativa mais consumida em todo o planeta.

Mas como o interesse pelo fruto de um arbusto originário da Etiópia ganhou o mundo — e, segundo alguns autores e pesquisadores, influenciou até as ideias que deram origem ao iluminismo e ao capitalismo?

E, afinal, o costume de ingerir a bebida faz bem ou mal à saúde?

Diz a lenda que um pastor que morava na região da atual Etiópia, no leste da África, observou que suas cabras pareciam ficar mais alegres e ativas depois que consumiam o fruto do cafeeiro.

A partir disso, os indivíduos que habitavam o local passaram a ingerir diretamente os grãos macerados — alguns relatos apontam também para o hábito ancestral de fazer chá a partir das folhas dessa planta.

De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), os primeiros registros escritos sobre esses costumes cafeeiros originários vêm do Iêmen, a partir do século 6 d.C.

"Os árabes dominaram rapidamente a técnica de plantio e preparação do café. As plantas foram denominadas Kaweh e sua bebida recebeu o nome de Kahwah ou Cahue, que significa ‘força’ em árabe", descreve a ABIC.

Nesse período, 15 séculos atrás, as partes da planta eram usadas com fins medicinais, e monges também passaram a consumi-la para manter a atenção em rezas e vigílias noturnas.

Mas o café como conhecemos hoje — torrado e moído — só foi desenvolvido a partir do século 14.

Nas décadas seguintes, o hábito de tomar a bebida como um rito de sociabilidade conquistou partes da Europa e do Oriente Médio, a começar pela Turquia, onde surgiram as primeiras cafeterias do mundo.

Poetas, filósofos, escritores e outros intelectuais foram os adeptos de primeira hora da prática — o que, aliás, nos leva ao próximo assunto.

O berço do pensamento moderno

A história da popularização do café fez com que alguns autores creditassem à bebida o desenvolvimento de importantes ideias que moldaram o mundo pelos séculos seguintes.

O filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, por exemplo, destaca o papel das cafeterias na Inglaterra e na Alemanha durante os séculos 17 e 18 como os locais em que ocorria a comunicação, na forma de conversas e publicações.

Na visão dele, esses estabelecimentos se tornaram "centros da crítica", onde a opinião pública era criada e registrada, resume um texto da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Já o escritor americano Michael Pollan, autor de Sob o Efeito de Plantas (Editora Intrínseca) defende que o consumo de café serviu de combustível para novas ideias, como o iluminismo — o movimento do século 18 que defendia o uso da razão no lugar da fé para entender e resolver os principais problemas da nossa sociedade.

"Existem fortes motivos para acreditar que a cafeína contribuiu para o iluminismo, a ‘Era das Luzes’ e a Revolução Industrial, que exigiam um pensamento focado e linear", diz ele, em vídeo publicado pela revista americana Wired.

"Antes do café chegar à Europa, as pessoas estavam bêbadas ou inebriadas a maior parte do dia. Tomavam bebidas alcoólicas até no café da manhã. E indivíduos alcoolizados não vão ser racionais, lineares no pensamento ou com energia", continua ele.

Com a popularização do café a partir do século 17, porém, as coisas mudaram.

"Em Londres, existiam cafeterias dedicadas à literatura, onde escritores e poetas se congregavam. Outras eram específicas para o mercado de ações, ou as ciências…", lista Pollan.

Em entrevista à BBC News Brasil, o professor de antropologia Ted Fischer, da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, concorda com essa relação histórica entre a bebida e as ideias iluministas.

"O café alterou o curso da História e fomentou ideias do iluminismo e do capitalismo", diz o pesquisador, que dirige o Instituto de Estudos sobre o Café na universidade americana.

"Não me parece um mero acidente que as ideias sobre democracia, racionalidade, empirismo, ciência e capitalismo vieram num momento em que o consumo dele se popularizou. Essa droga, que amplia a percepção e a concentração, definitivamente fez parte do contexto que desembocou no capitalismo", complementa.

Falando em capitalismo, Fischer chama a atenção para como a demanda por café alterou o curso da história de vários países, incluindo a do próprio Brasil.

"De um lado, temos em 1888 a abolição da escravatura e a ampliação da produção cafeicultora no Brasil. Do outro, alguns industriais na Europa começaram a oferecer café aos funcionários, além de vender o produto por um preço mais baixo", destaca.

"E isso não era algo altruísta da parte dos donos das fábricas. Eles queriam aumentar a produtividade dos funcionários. Ou seja, temos o consumo de café ligado à produção capitalista, que levou ao aumento do cultivo em locais como Brasil e Guatemala", completa o pesquisador.

Efeitos do café no corpo

Em linhas gerais, especialistas e agências de saúde apontam que o hábito de tomar café com moderação é seguro e pode até trazer benefícios.

Mas como a bebida age no corpo? Em resumo, ela demora ao redor de 45 minutos para "viajar" pelo sistema digestivo, ser absorvida, cair na corrente sanguínea e agir no sistema nervoso.

A cafeína, uma das principais substâncias do café e de outros produtos, tem uma estrutura química semelhante à adenosina, um composto produzido pelo próprio organismo que leva às sensações de relaxamento e dormência (entre outras funções).

Isso faz com que a molécula do café se encaixe em receptores localizados na superfície das células nervosas, impedindo a ação da tal adenosina.

"A cafeína tem a habilidade de bloquear esses receptores e, com isso, gerar um efeito psicoestimulante. Ou seja, ele surte uma ação contrária à adenosina e dá a sensação de estar desperto e focado", explica a nutricionista Marilyn Cornelis, professora da Escola de Medicina da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos.

Os estudos de farmacologia calculam que essa sensação de foco e atenção obtida com a cafeína dura entre 15 minutos e duas horas.

E, como mencionado mais acima, essa substância psicoativa está presente não apenas no café, mas também em outras dezenas de espécies vegetais, como o guaraná, o cacau, a erva mate e o chá verde. A cafeína aparece ainda em produtos industrializados, como refrigerantes, energéticos e remédios.

O que muda aqui é a concentração: segundo uma tabela da Clínica Mayo, dos Estados Unidos, uma xícara de expresso carrega 64 miligramas de cafeína, enquanto o chá verde traz 28 miligramas, por exemplo.

E a saúde?

Mas será que essas alterações no organismo não geram repercussões negativas à saúde? Tudo depende da quantidade consumida, garantem os especialistas.

De acordo com a Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória dos Estados Unidos, adultos saudáveis podem tomar até 400 miligramas de cafeína por dia com segurança — o equivalente a cerca de cinco xícaras de espresso.

O café é desaconselhado para crianças ou adolescentes pela falta de estudos específicos sobre o efeito da substância nessas faixas etárias. Já para as gestantes, a recomendação é conversar com o médico antes do consumo, pois algumas mulheres ficam sensíveis à cafeína durante esse período.

Para adultos saudáveis, ultrapassar o limite de 400 mg pode gerar alguns sintomas desagradáveis, como insônia, nervosismo, ansiedade, taquicardia, incômodos estomacais, náusea e dor de cabeça.

Já episódios de overdose de cafeína são mais raros e estão relacionados ao abuso de remédios ou energéticos. Ainda segundo a FDA, eles ocorrem quando a ingestão ultrapassa 1.200 mg por dia — o equivalente a tomar mais de 18 xícaras de expresso em poucas horas.

Além das questões de segurança, estudos epidemiológicos e experimentais publicados nos últimos dez anos passaram a observar efeitos positivos do consumo regular (e moderado) de café.

"Tomar entre duas e cinco xícaras por dia está relacionado a uma redução do risco de mortalidade, mas também de diabetes, doenças cardiovasculares e até alguns tipos de câncer", lista o farmacêutico Mathias Henn, que faz pesquisas na Universidade Harvard, nos EUA, e na Universidade de Navarra, na Espanha.

"Também temos estudos sobre cafeína e redução no risco de doença de Parkinson", acrescenta ele.

Que fique claro: esses trabalhos avaliaram especificamente o consumo de café. A cafeína que aparece em outras versões, como em refrigerantes, energéticos ou chocolates, pode não trazer o mesmo efeito. Além disso, esses produtos possuem dosagens diferentes (maiores ou menores) e muitas vezes carregam uma quantidade excessiva de açúcar — que, na contramão, está relacionado a uma série de problemas de saúde.

E vale lembrar que o café não traz apenas a cafeína. Há uma série de outras substâncias ali, como é o caso do ácido clorogênico, um antioxidante.

Para Cornelis, o acúmulo de conhecimento sobre os pontos positivos da bebida fez com que especialistas passassem a enxergá-la com bons olhos.

"Em 2015, pela primeira vez, as Diretrizes Americanas de Nutrição indicaram que, com relação às evidências disponíveis naquele momento, o consumo de até cinco xícaras de café por dia era algo seguro e possivelmente benéfico", lembra ela.

Mas a nutricionista lembra que o hábito de tomar café vai muito além dos efeitos psicoestimulantes da cafeína ou da tentativa de proteger a saúde.

"O consumo do café está relacionado ao ambiente comunitário, às pausas no trabalho para interagir, às oportunidades de desenvolver relacionamentos e aproveitar uma boa atmosfera social", acredita ela.

"E esse tipo de ambiente é ainda mais bem-vindo agora, depois de todas as questões de isolamento que tivemos com a pandemia de covid-19", conclui Cornelis.

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