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O cânon 1024 do Código de Direito Canônico, conjunto de leis que regem o funcionamento da Igreja Católica, é claro: “só um varão batizado pode receber validamente a ordenação sagrada”. O artigo está no cerne dos itens que vão do número 1008 ao número 1053 e organizam as regras para o recebimento do sacramento da ordem, ou seja, aqueles aptos a exercer as funções sacerdotais dentro do catolicismo.
Não há nada no horizonte da Santa Sé que indique uma mudança, embora o papa Francisco conviva com pressões de alguns setores mais progressistas da Igreja que entendem que a presença feminina deve ser maior do que a atual, inclusive com a possibilidade de que elas ocupem postos na hierarquia do altar — e, de quebra, supram a carência de padres em regiões onde faltam religiosos ordenados.
No fim do ano passado, o tema voltou à tona com a publicação do livro El Pastor: Desafíos, Razones y Reflexiones Sobre su Pontificado (O Pastor, na edição brasileira), em que o papa deu entrevista aos jornalistas Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti, que assinam a autoria da obra.
Nele, Francisco comenta que a questão de saber se mulheres na Igreja primitiva chegaram a ter posições mais elevadas “não é irrelevante, porque as ordens sagradas são reservadas aos homens”.
O papa conta que formou comissões em 2016 e em 2020 para analisar mais a fundo essa questão. Quando os jornalistas perguntam diretamente se ele é contrário ao sacerdócio feminino, Francisco sai pela tangente. “Acho que a essência da Igreja seria minada se considerássemos apenas o ministério sacerdotal, ou seja, a via ministerial”. Para o papa, o papel das mulheres seria o de “espelhar a noiva de Jesus”, que seria a própria Igreja.
“O fato de a mulher não ter acesso à vida ministerial não é uma privação, pois seu lugar é ainda muito mais importante. Acredito que erramos em nossa catequese ao explicar essas coisas e, em última análise, recorremos a um critério administrativo que não funciona a longo prazo”, argumenta o pontífice.
“Por outro lado, sobre o carisma das mulheres, digo muito claramente que, por minha experiência pessoal, elas têm uma grande intuição eclesial”, prossegue.
Há uma pressão de algumas frentes. Pelo menos desde 2002 há um movimento de “mulheres padres” com grande visibilidade enfrentando o Vaticano. Naquele ano, sete delas foram ordenadas, em cerimônia nunca reconhecida pela Santa Sé, a bordo de um cruzeiro no rio Danúbio. Na Alemanha, o debate se intensificou nos últimos quatro anos, com um grupo de bispos progressistas encampando a causa.
No Sínodo para a Amazônia, encontro de bispos realizado em 2019 no Vaticano, a ideia do diaconato feminino foi abordada, mas acabou, no relatório final, relegada a um segundo plano. O diaconato é uma espécie de primeiro nível na ordenação — diáconos permanentes podem ser casados, mas aqueles que um dia se tornarão padres, ou seja, celibatários, também passam por esse estágio.
Mundo masculino
Obra de 1796, de Tommaso Piroli, representa o nascimento de Cristo e modo centrado no femininoCRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO
Legenda da foto,Mulheres perderam espaço hierárquico à medida que o cristianismo se tornou Igreja
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Para especialistas em história do cristianismo, essa impossibilidade hoje vista como teológica e institucional é decorrente do contexto de como acabou sendo construída a religião cristã — nesse sentido, nos primeiros séculos depois da morte de Jesus.
“Sacerdócio [feminino] oficialmente ordenado creio que não existiu. Porém, mais uma vez, é preciso voltar à distinção entre o movimento Jesus e o cristianismo institucionalizado”, afirma à BBC News Brasil a freira, filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, religiosa da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
Ou seja: é preciso distinguir como se organizava aquele protocristianismo com Jesus vivo — ou logo após a sua morte — em que havia uma certa horizontalidade, com homens e mulheres ocupando postos semelhantes, e o cristianismo que começou a se institucionalizar como religião em um contexto dominado por homens, comandado por homens e a serviço de homens.
Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes diz à BBC News Brasil que até mesmo os relatos da época podem ter sofrido um “apagamento” intencional da presença feminina.
“Ao longo do tempo, as mulheres foram sendo apagadas, o que revela uma tradição androcêntrica, machistas e misógina que acompanhou a história da Igreja”, analisa ele.
“Foi feita uma opção ao longo da trajetória da Igreja que via na mulher uma inferioridade moral, representada por exemplo na figura de Eva [do livro do Gênesis], vista como a responsável pelo pecado, pelo mal do mundo. Sua contraposição é a figura de Maria [a mãe de Jesus], apresentada como um símbolo de uma esposa obediente, colocada no seu ‘devido lugar’, obedecendo e cumprindo seu papel.”
Maria, mãe de Jesus, em obra de Sassoferrato, século 17CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO
Legenda da foto,'A tradição da Igreja foi construída no apagamento do feminino, na construção de arquétipos de mulheres subservientes', diz especialista
Na verdade não foi um contexto único, mas a soma de alguns em que a misoginia era preponderante. A princípio, a própria organização judaica, da qual o cristianismo descende diretamente. No judaísmo a voz masculina também está acima dos papéis femininos.
Mas se Jesus, em vida, parecia transgredir essa norma, pela forma como ele tendia a incluir mulheres em seu grupo e também por passagens bíblicas em que ele interage com elas, é preciso lembrar que a base da Igreja, nos primeiros séculos, foi construída a partir de ideias deixadas pela filosofia grega e, claro, pelo status quo da Roma Antiga, principalmente quando o cristianismo deixa de ser perseguido e passa a ser considerado a fé oficial do império.
“O ambiente refletia uma visão antropológica dualista, androcêntrica. O mundo antigo tomava como referência o modelo masculino, em que o homem era visto como o sexo eminente. Todo o discurso girava em torno disso. Os principais cargos eram ocupados por homens. E a tradição deixava isso claro, também a partir de como o judaísmo se organizou”, pontua Moraes.
“O movimento de Jesus sem Jesus [ou seja, após a morte dele] começa a ganhar contornos que dialogam com o Império Romano”, completa à BBC News Brasil o historiador André Leonardo Chevitarese, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Assume-se percepções que não estavam previstas lá atrás, com Jesus. Portanto, a hierarquização.”
Ele aponta que, num primeiro momento, “passa a existir um corpo de sábios”, em detrimento dos leigos, “com divisões muito claras e nítidas entre homens e mulheres”. “Havia uma distinção entre quem podia falar e quem devia ou vir. E elas vão ficar à margem, de forma que perdurou por séculos.”
Uma condição importante precisa ser acrescentada a esse caldo: o fato de que se trata de um período histórico em que pouquíssimos eram alfabetizados. “E quem estava produzindo a literatura e a documentação, os documentos públicos e governamentais, eram basicamente homens. Isto explica o protagonismo masculino no interior desses textos [que hoje constam da Bíblia]”, explica o historiador. “Os homens são apresentados como os portadores das falas, enquanto as mulheres aparecem de maneira secundária, sempre em posições subalternas.”
“O letramento era masculino”, define.
De movimento a religião
Quando o cristianismo passou a estar organizado como uma religião, em um processo que vai do século 2º ao 5º, “as mulheres estavam absolutamente excluídas dos altares”, frisa Chevitarese.
“Elas jamais foram pensadas, lidas, concebidas para serem sacerdotisas. Este processo de hierarquização [da Igreja] ocorreu a partir de um intenso diálogo com as estruturas imperiais romanas, culminando com a Igreja Católica sendo o Império Romano e o Império Romano sendo essa Igreja Católica”, diz.
“Creio que é importante ter presente que na maioria das culturas humanas o fenômeno das hierarquias de gênero existiu. Em algumas se acentuou mais do que em outras. O mundo doméstico e o mundo da sociedade das muitas atividades profissionais, em alguns grupos sofreu uma assimilação à filosofias idealistas, como por exemplo o platonismo, que colocavam o trabalho doméstico como um nível baixíssimo na escala da classificação dos serviços humanos. Por isso em geral eram os escravos, homens e mulheres, que faziam o trabalho doméstico, a limpeza, a cozinha, etc.”, comenta Gebara.
“Acho importante igualmente distinguir o cristianismo do movimento Jesus. O movimento Jesus nasce dentro do judaísmo e foi uma espécie de volta à tradição ético-profética. Jesus de Nazaré não era cristão, era judeu. O cristianismo vai se afirmar através do Império Romano notadamente a partir de Constantino e Teodosio. Nessa perspectiva jamais perdeu seu caráter institucional imperial, salvo as pequenas exceções ao longo da história”, conclui a teóloga.
Antes dessa institucionalização, as reuniões dos primeiros cristãos não tinham a figura do sacerdote. Mas, como pontua à BBC News Brasil o teólogo e filósofo Pedro Lima Vasconcellos, professor na Universidade Federal de Alagoas e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica, os encontros dessas comunidades tinham uma presidência.
“Em um primeiro tempo, essa distinção de gênero não era algo decisivo”, afirma ele. Ou seja: mulheres podiam estar à frente. “Mas, no decorrer do processo [de formação da Igreja], cada vez mais o protagonismo na presidência dos rituais foi sendo confiado a homens. E grupos que insistissem na manutenção do protagonismo feminino tendiam a ser vistos com maus olhos, colocados de escanteio, excluídos de uma comunidade e de uma rede de comunidades mais ampla.”
Em outras palavras, passaram a ser tratados como seitas, como grupos heréticos. Não como a religião que se organizava e ganhava poder e status social.
No artigo o acadêmico ‘O Sacramento da Ordem na Legislação Canônica’, publicado em 2013 pela Revista de Cultura Teológica, o teólogo Denilson Geraldo, hoje bispo auxiliar de Brasília, lembra que a discussão sobre o sacerdócio feminino foi trazida pelo papa João Paulo 2º (1920-2005) em uma carta apostólica na qual ele afirmou que “para eliminar toda dúvida sobre uma questão de grande importância, que está na divina constituição da Igreja, […] declaro que a Igreja não tem em nenhum modo a faculdade de conferir às mulheres a ordenação sacerdotal e que esta afirmação deve ser tida em modo definitivo para todos os fiéis da Igreja”.
“A Congregação para a Doutrina da Fé [em outubro de 1995] precisou a afirmação papal de que a doutrina segundo a qual a Igreja não tem a faculdade de conferir ordenação sacerdotal às mulheres deve ser considerada pertencente ao depósito da fé”, escreve Geraldo. “A exclusão das mulheres para a ordenação presbiterial e episcopal é considerada de modo certo, irrevogável e de direito divino, por isso é para todos os fiéis.”
Sobre o mesmo tema, a congregação ainda determinou a pena de excomunhão “seja àquele que tenha tentado conferir a ordem sagrada a uma mulher, seja à própria mulher que tenha tentado receber a ordem sagrada”.
Geraldo pontua que “do ponto de vista teológico e existencial é considerável aprofundar a figura paterna do sacerdote”.
Tomás de Aquino e a 'inferioridade' feminina
Mas se as mulheres perderam espaço hierárquico à medida que o cristianismo se tornou Igreja, isso não significa que a discussão sobre o papel secundário delas tenha ficado adormecido por todos esses séculos. Uma pista sobre isso está nos textos deixados por Tomás de Aquino (1225-1274), frade que se tornou um dos mais importantes teólogos e filósofos do catolicismo.
Em pleno século 13 ele se debruçou sobre a questão. De forma desfavorável às mulheres, diga-se. Em sua ‘Suma Teológica’, na questão de número 99 do livro 1º, Aquino as conceitua como seres inferiores, partindo do princípio de que “a fêmea é um macho falho, nascida como que contra a intenção da natureza”.
“A mulher chama-se macho falho por ser contra a intenção da natureza particular”, acrescenta, comentando que “a geração da mulher se dá, não só por deficiência da virtude ativa ou pela indisposição da matéria, como refere a objeção, mas também, às vezes, por algum acidente extrínseco”.
Na questão 177, o teólogo afirma que “as graças dadas por Deus cada um as aplica diversamente segundo a diversidade das condições”. “Por isso, as mulheres, que receberam a graça da sabedoria ou da ciência, podem aplicá-la ensinando particularmente, mas não em público”, define.
Ele também pontua que a palavra pode ter “dois usos”. “Um privado, quando falamos familiarmente a um ou a poucos. E, então, as mulheres podem receber a graça da palavra”, defende. “Outro público, quando a palavra é dirigida a toda a Igreja. E isto não é permitido à mulher.”
Moraes explica que Tomás de Aquino tinha essa visão porque seguia o modelo aristotélico. “Para Aristóteles [filósofo grego que viveu entre 384 a.C. e 322 a.C.], a mulher é um homem falho porque ela vem para o mundo sem o falo. Portanto, seria um homem que falhou, um homem com uma limitação”, contextualiza. “Aquino vai nessa direção porque era defensor das ideias de Aristóteles. E isso mostra como o corpo feminino era tratado não só dentro da Igreja mas dentro de uma tradição filosófica também.”
“Essa posição de Aquino reflete coisas maiores. A tradição da Igreja foi construída no apagamento do feminino, na construção de arquétipos de mulheres subservientes. Se Eva nos fez pecar, Maria obedeceu, então é o modelo”, analisa Moraes.
Em conversa com a BBC News Brasil, o frade dominicano, jornalista e escritor Frei Betto, conhecido por sua postura social progressista, diz que “o único grande equívoco de São Tomás foi adotar a visão misógina da filosofia grega e considerar a mulher um ser inferior ao homem, inclusive no uso da razão”.
“E isso ainda hoje reverbera na misoginia da Igreja Católica, que ainda impede as mulhers de acesso ao sacerdócio e a outras escalas hierárquicas”, critica ele.
Tomás de Aquino também ecoava o entendimento religioso de seu tempo, é verdade. Precursor do Direito Canônico, o Decreto de Graciano, escrito pelo monge e jurista de mesmo nome entre 1140 e 1142, também se ocupou do assunto.
“O texto reforça a ideia desse machismo, afirmando que a imagem de Deus está no homem, criado único e origem de todos os outros homens”, diz Moraes. “É por isso que a mulher não teria sido feita à imagem de Deus, mas sim tirada do homem.”
“No fim das contas, ali se tinha o modelo masculino prevalecendo. Então caberia à mulher o espaço reservado. E esse fundamento jurídico deu ao homem autoridade e serviu durante muito tempo para justificar a subordinação feminina nos campos familiar, civil e religioso”, diz o teólogo.