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Com o controle da Câmara, Senado e da Suprema Corte, Donald Trump assumirá a presidência dos Estados Unidos com poderes inéditos. E montado em estudos que colocam sob ameaça até o modelo histórico de organização do Estado. Fala-se em mudanças nas agências reguladoras, em novas regras para o funcionalismo público e até em interferência no FED (o Banco Central norte-americano).
Ainda é cedo para saber até onde a sociedade norte-americana permitirá esse avanço do trumpismo.
Mas não há dúvidas sobre sua política comercial e externa.
Para entendê-la, a figura-chave é Peter Navarro. É um economista que teve papel central na política comercial de Trump, na condição de diretor do Conselho Nacional de Comércio da Casa Branca e, depois, diretor do Escritório de Polícia Comercial e Industrial.
Suas duas obras mais conhecidas são “Morte pela China” e “Tigre Agachado: O que o Militarismo da China Significa para o Mundo”, com críticas pesadas contra as políticas industrial e comercial da China.
Suas principais propostas são a desglobalização e a fabricação interna da maior parte dos produtos, para se livrar das cadeias globais de produção. Foi um dos autores do trabalho “2025 Mandate for Leadership”, preparado pela Heritage Foundation em 2023, com propostas políticas para um futuro governo conservador.
O primeiro parágrafo do capítulo 26 do trabalho é significativo:
“Os Estados Unidos da América são a superpotência dominante do mundo e continuam sendo o arsenal mundial de democracia. Para manter esse posicionamento global — e, assim, proteger melhor a pátria e nossas próprias instituições democráticas — é fundamental que os Estados Unidos fortaleçam sua base industrial de fabricação e defesa ao mesmo tempo em que aumentam a confiabilidade e a resiliência de sua dispersão global e das cadeias de suprimentos. Isso necessariamente exigirá a terceirização de uma parcela significativa da produção atualmente terceirizada por corporações multinacionais americanas”.
O primeiro alvo é a Regra da Nação Mais Favorecida (MFN) da Organização Mundial do Comércio (OMC). De acordo com essa regra, um país-membro da OMC deve conceder a todos os outros membros o mesmo tratamento preferencial que concede ao seu “parceiro mais favorecido”. Isso significa que se um país reduz tarifas ou elimina restrições comerciais para um parceiro, ele deve estender essas mesmas condições a todos os outros países membros da OMC, com algumas exceções. “No entanto, os membros da OMC podem cobrar tarifas mais altas se aplicarem essas tarifas não recíprocas a todos os países”, diz ele no trabalho. Segundo ele, os prejudicados são fazendeiros, fabricantes e trabalhadores americanos.
A ideologia vem a seguir, quando aponta as ameaças do Partido Comunista da China.
“Esse desafio está enraizado na agressão econômica contínua do PCC, que começa com ferramentas de política comercial mercantilistas e protecionistas, como tarifas, barreiras não tarifárias, dumping, falsificação e pirataria, e manipulação de moeda. No entanto, a agressão econômica da China comunista também se estende a um conjunto intrincado de políticas industriais e políticas de transferência de tecnologia que distorceram dramaticamente a arena do comércio internacional”.
Navarro considera que os EUA são os maiores perdedores comerciais do mundo, indo contra o consenso geral de que o livre comércio ajudou na expansão global da manufatura do país.
No seu paper, ele diz que China representa uma “ameaça existencial” aos Estados Unidos. E a proposta é a completa desvinculação comercial e econômico em relação à China. “como a primeira melhor resposta dos Estados Unidos à agressão implacável da China ou continuar os esforços para negociar com um país autoritário e ditadura brutal com uma reputação bem estabelecida por não cumprir quaisquer acordos”.
Segue-se uma descrição minucioso dos métodos utilizados pela China nos últimos 20 anos, para ascender à sua posição de superpotência. Fala em “armadilha da dívida”, oferecendo financiamento substancial a países em desenvolvimento em troca de sua disposição de hipotecar seus recursos naturais e permitir que a China comunista tenha acesso a seus mercados. Ou seja, uma estratégia de parceria é transformada em jogada diabólica. “O efeito prático desse modelo de armadilha da dívida é dar à China comunista uma vantagem competitiva internacional que decorre de seu acesso preferencial a commodities de custo relativamente mais baixo necessárias no processo de fabricação”.
Vai além. Acusa a China de pirataria em relação às patentes, de espionagem, de trocar o acesso ao seu mercado pela transferência de tecnologia, de enviar milhares de estudantes para os Estados Unidos, apropriando-se do conhecimento acadêmico do país. “Todos os anos, mais de 300.000 cidadãos chineses comunistas frequentam universidades dos EUA ou são contratados em laboratórios nacionais, centros de inovação, incubadoras e think tanks dos EUA. Para colocar isso em perspectiva, de acordo com o Ministério da Educação chinês, apenas 20.000 cidadãos americanos estavam estudando no exterior em universidades chinesas no continente em 2018”.
Em suma, a China é acusada de ter-se apropriado legitimamente das oportunidades de parceria oferecidas pelos Estados Unidos. Quando se transformou no chão de fábrica do mundo, a China passou a fabricar equipamentos de alta tecnologia de empresas norte-americanas, como a Apple, assimilando seu conhecimento tecnológico.
Diz o trabalho: “Os setores estratégicos visados pela espionagem econômica chinesa comunista incluem eletrônicos, telecomunicações, robótica, serviços de dados, produtos farmacêuticos e telefonia móvel”.
Outra esperteza chinesa foi fugir das leis de controle das exportações dos EUA – em geral de tecnologias com aplicações militares. A China driblou as restrições com as chamadas tecnologias de “uso duplo”, que tem aplicações militar e civil.
É curiosa a maneira como o trabalho se refere às estratégias chinesas: “Uma vez que uma empresa dos EUA ou estrangeira é coagida a entrar em uma joint venture com um parceiro chinês, a porta está aberta para a transferência de tecnologia e PI. Da mesma forma, uma China comunista implacavelmente coercitiva forçou os detentores de patentes e tecnologias americanas a aceitar taxas de royalties abaixo do mercado em licenciamento e outras formas de compensação abaixo do mercado por suas tecnologias — e o governo americano fez pouco ou nada a respeito”.
Esquece-se de dizer que todos esses acordos foram firmados espontaneamente por parceiros interessados em vantagens proporcionadas pela China – principalmente o acesso ao seu imenso mercado.
A partir daí, as sugestões sobre como tratar com a China. A primeira posição é que a China não é confiável em nenhuma hipótese. Ou seja, não se deve tentar nem negociar.
Depois, relaciona o que considera vetores da agressão econômica da China comunista, entre as quais, roubo físico e cibernético de tecnologia e propriedade intelectual, regulações coercitivas e intrusivas, coerção econômica, coleta de informações etc
As propostas são draconianas:
Expandir as tarifas para todos os produtos chineses e aumentar as taxas tarifárias para níveis que bloqueiem os produtos “made in China”.
Incentivos fiscais e financeiros para empresas americanas que substituam as importações chinesas.
Proibição de empresas chinesas de participar de licitação em contratos de compras governamentais.
Proibir o uso de drones fabricados pela China no espaço aéreo americano.
Proibir todos os aplicativos de mídia social chineses, como TikTok e WeChat.
Proibir todos os investimentos chineses em indústrias de alta tecnologia.
Proibir fundos de pensão americanos de investir em ações da China comunista.
Retirar das bolsas ações de empresas da China.
Proibir a utilização de câmaras de compensação de Hong Kong como pontos de trânsito de investimentos da China continental para os Estados Unidos.
Proibir a inclusão de títulos soberanos chineses nas carteiras de investidores dos EUA.
Reduzir sistematicamente e, eventualmente, eliminar qualquer dependência dos EUA em relação às cadeias de suprimentos da China comunista que possam ser usadas para ameaçar a segurança nacional, como medicamentos, chips de silício, minerais de terras raras, placas-mãe de computadores, monitores de tela plana e componentes militares.
Sancionar quaisquer empresas, incluindo empresas americanas como a Apple, que facilitem o uso das capacidades de vigilância e censura do Grande Firewall pela China Comunista.
Ordenar ao Departamento de Segurança Interna (DHS) e ao Departamento de Justiça para contratar empresas de inteligência artificial de propriedade e operadas pelos EUA que sejam capazes de detectar, identificar e interromper as operações de mídia social e os fluxos de financiamento de grupos nacionais e influenciadores do PCC usando informações públicas como uma medida ofensiva rapidamente disponível.
Certamente países que estreitarem as relações com a China, como o Brasil, serão alvos de represálias. A recente “denúncia” dos EUA em relação à compra de aviões Gripen é um pequeno ensaio de como atua a geopolítica norte-americana.
Será um ingrediente a mais para ser toureado por Lula, somando-se aos problemas com o Congresso e com a Faria Lima.