A maioria dos funcionários do Itamaraty, em todos os escalões da carreira – do cargo de Terceiro-secretário ao de Embaixador de 1ª Classe – é educada segundo a tradição que entende que o Ministério das Relações Exteriores é um órgão de Estado, não de governo.
De acordo com essa tradição, o Itamaraty seria uma instituição imune às injunções políticas do governo de turno, porque seria um órgão permanente e regular de representação e de defesa dos interesses do Estado brasileiro no exterior.
Essa distopia institucional ajuda entender a lógica do ex-chanceler da Presidente Dilma, que fez a transmissão de cargo ao chanceler usurpador José Serra. Mauro Vieira foi o único ex-ministro do governo legítimo, em toda Esplanada dos Ministérios, que transmitiu o cargo ao sucessor ilegítimo nomeado pelo presidente usurpador Michel Temer.
O cargo de Ministro não pertencia ao embaixador, e sim à Presidente eleita por 54.501.318 votos para dirigir o Brasil no plano doméstico e no intercâmbio mundial. Por isso, o ex-chanceler não poderia dispor do cargo [que não lhe pertencia] como dispôs, sobretudo no contexto de ruptura constitucional com a farsa do impeachment.
É notório que o Itamaraty desempenha função essencial de Estado na relação com Estados estrangeiros e na execução da política externa. Essa essencialidade, todavia, não é superior e, menos ainda, mais relevante que a essencialidade de outras atribuições permanentes de Estado como a Justiça, Fazenda, Planejamento, Saúde, Educação, Cultura, Igualdade Social e outros ministérios que respondem por responsabilidades essenciais de Estado e de governo.
Instalado no comando do Itamaraty, o chanceler usurpador José Serra passou a dirigir a instituição com punho de aço. A obediência instantânea da diplomacia às medidas truculentas de desmonte da política externa confronta a ilusão de independência e autonomia do Itamaraty em relação aos governos instalados – sejam eles legítimos ou ilegítimos.
Logo nos primeiros dias, Serra distribuiu circular a todos os postos diplomáticos do Brasil no exterior com instruções para a defesa do golpe, e foi prontamente atendido pela diplomacia.
O representante do Brasil em Washington, outro ex-chanceler do governo legítimo da Presidente Dilma [embaixador Luiz Alberto Figueiredo], foi mais realista que o rei, e remeteu uma carta patética aos congressistas dos EUA para defender o golpe – acabou ridicularizado e desacreditado.
Desde o primeiro instante no cargo, Serra abriu uma guerra ideológica sem trégua contra a Venezuela. Ele opera os interesses dos EUA para a região: sabota o MERCOSUL e a integração regional e isola a potência petroleira do Caribe.
O governo golpista do Brasil patifa as regras do MERCOSUL e viola o direito internacional para impedir a Venezuela assumir a presidência pro tempore do bloco. Tal como fazem no Brasil, agem politicamente para aplicar um golpe também no MERCOSUL.
Alegam que a Venezuela, efetivada como membro pleno do MERCOSUL em 2012, ainda não incorporou ao seu ordenamento jurídico interno centenas de normas comunitárias. Mas esta também é a realidade dos demais países, que tampouco incorporaram todas as normas comunitárias, apesar de integrarem o MERCOSUL desde sua fundação, há 25 anos.
Na falta de fundamento jurídico no ataque à Venezuela, Serra partiu então para a tentativa de comprar o apoio do Uruguai à iniciativa golpista no bloco, proposta que foi denunciada e rechaçada pelo governo da Frente Ampla – outro vexame sem precedentes na diplomacia brasileira.
Os antecedentes históricos desfavorecem os ingênuos que acreditam que o Itamaraty é uma instituição só de Estado, e não de governo. Durante a ditadura civil-militar instalada com o golpe de 1964, o Itamaraty foi uma correia de transmissão do regime. A conexão da diplomacia com a Operação Condor é, de longe, a evidência macabra de que a diplomacia de terror no Cone Sul obedeceu a políticas de governos, e não a valores e princípios de Estado.
Na bonita obra O punho e a renda, o embaixador Edgard Telles Ribeiro navega entre a historiografia e a ficção para ilustrar, na figura do personagem-diplomata Max, como funcionou a engrenagem da diplomacia de terror que conectava os trogloditas de Brasília, Santiago do Chile, Montevidéu, Assunção e Buenos Aires. Tudo sob a coordenação e supervisão norte-americana.
Serra transforma o Itamaraty num bunker golpista. Se o corpo diplomático não se insurgir contra essa realidade, pouco estará fazendo para evitar que a história registre que o Itamaraty se associou ao golpe de Estado de 2016.