Após o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Juliana Lino, 21 anos, que garantiu a nota exigida para o curso de Direito na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, se mudou de Salvador para Dourados, a 235 quilômetros da capital, Campo Grande. A cidade é palco de um dos maiores conflitos agrários do país, que opõem cerca de 15 mil indígenas Guarani Kaiowá e fazendeiros. Dourados também sofre com o alto índice de violência contra a mulher, problema comum no estado, que apresenta a maior taxa de registros na Central de Atendimento à Mulher. Esse é o contexto que Juliana apresentou nas atividades do 3º Acampamento Nacional do Levante Popular da Juventude, realizado entre 5 e 9 de setembro, em Belo Horizonte.
O Acampa, como é chamado pelos participantes, é um encontro de formação política que discute a conjuntura nacional e busca a construção do que chamam de projeto popular. Segundo os organizadores, o evento contou com a presença de 7.000 jovens de todos os estados. Na programação, palestras, mesas-redondas, oficinas e apresentações culturais, além de uma diversidade de convidados como o dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) João Pedro Stédile, o ativista estadunidense Eddie Conway, do Panteras Negras, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A presença volumosa é vista como resultado de uma expansão do movimento social jovem em um momento singular da história política brasileira. "A juventude de hoje não viu nenhum momento político como esse. Vivemos um golpe, um período de retirada de direitos", afirma a estudante de Serviço Social Mara Farias, 24 anos, de Natal. Coordenadora nacional e integrante da Frente Territorial, ela acredita que esse é o melhor momento para organizar o povo. "Eu quero que o jovem tenha o sentimento de mudança radical da sociedade, que esteja nas ruas lutando pelo Fora Temer e por qualquer direito que seja retirado do povo brasileiro."
ntercâmbio de experiências para pensar os próximos passos do movimento foi a tônica do encontro. "Tem muita gente que está em processo de formação e ainda precisa identificar o caminho, se identificar como agente", diz Juliana. Coordenadora nacional e integrante da Frente Estudantil, ela trabalha para expandir a discussão da questão feminista em Dourados. Como estudante, quer popularizar o tema, e quem sabe trabalhar na Defensoria Pública. A baiana respira o movimento até nas horas de lazer. "A gente vai sempre onde acha massa, conforme o que a gente acredita politicamente", diz. Entre os locais que gosta de frequentar estão teatros e saraus. "Eu adoro, inclusive escrevo e recito poesia."
Construir para fora
O Levante Popular da Juventude é um movimento que passou a agrupar jovens em todo o Brasil a partir da constatação de que a juventude seria a futura protagonista das lutas por direitos no país. De diversas organizações, como Consulta Popular, MST, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), surgiu o embrião do Levante, no Rio Grande do Sul.
A nacionalização do debate era uma demanda cada vez mais forte, até que em 2012 aconteceu o 1º Acampa, em Santa Cruz do Sul (RS), com a presença de 1.500 jovens de 17 estados. O evento consolidou o movimento nacionalmente e lançou as bases para a formação das células nas universidades, escolas, comunidades e no campo. Ainda naquele ano, o Levante ganhou a atenção da mídia com a realização de "escrachos" em diversas cidades do país para denunciar torturadores da ditadura e exigir maior poder de ação da Comissão Nacional da Verdade.
Dois anos mais tarde ocorreu o 2º Acampa, em Cotia (SP), com 3 mil participantes. A passeata realizada durante o acampamento lançou campanha por uma Constituinte exclusiva para reformar o sistema político. "Só através de uma Constituinte popular vamos poder mudar as estruturas eleitorais", afirma Mara. Os acampados voltaram para suas cidades com a tarefa de organizar as bases para a realização de um plebiscito. Este ano, o tema mais abordado foi o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Os gritos de "Fora Temer" e "governo golpista" ecoavam o tempo todo pelo ginásio do Mineirinho. O ato no último dia do evento, 9 de setembro, teve escracho na porta da Rede Globo Minas e terminou com uma passeata.
Principal evento do Levante, o Acampa é marcado pela troca de ideias e pela explosão de eventos culturais. É em seus estados, porém, que os militantes buscam pôr os planos em prática. O elo entre pensamento político e ação é o que mais atrai os jovens. "A diferença do Levante para outros movimentos de juventude é o sentido de construir com o povo, colocar para fora, fazer trabalho de base, e não só fazer ações de fortalecimento interno", opina Mara Faria. Ela conheceu o movimento a partir do conselho comunitário do bairro Felipe Camarão, onde mora, na capital potiguar, e quis construir o Levante no local, com o qual tem forte relação.
"Sou de ficar em casa. Gosto de ler, assistir filmes ou sair no meu bairro para encontrar os amigos. O lazer em Natal é muito privatizado e eu não tenho tanta grana para sair em uma cidade onde tudo tem que ser pago", diz. Ao juntar rotina e militância, ela e outros jovens que atuam no Felipe Camarão promoveram a atividade Juventude Organizada contra as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), surgida do diagnóstico de um posto de saúde de que 90% das pessoas com incidência de sífilis na capital eram adolescentes do bairro.
Uma escola logo cedeu o espaço para que fossem realizadas exposições e rodas de conversa ao longo de quatro semanas, com assuntos desde o amor até a questão do sexo e das DST. "No último dia os próprios jovens organizaram uma feira de promoção da saúde, com vacinação, distribuição de camisinha, roda de conversa, apresentação de teatro e dança", diz Mara. Alguns passaram a atuar no Levante, com o desejo de multiplicar a ação em outros espaços. O movimento já promoveu feiras, atendimentos de saúde e revitalização de parquinhos. Quase sempre buscando associar ações com parte de uma luta política.
"Por exemplo, se a atividade for em uma praça que não tem luz, pode ser construída uma ação de luta pela iluminação da praça", exemplifica Mara.
Sem acordo
A parcela da juventude que o movimento busca organizar é aquela que sofre mais diretamente com as injustiças sociais: jovens que estudam em escolas privadas e públicas e não se sentem contemplados pela educação que recebem, que vivem no campo e carecem de acesso a políticas públicas, que moram em bairros, favelas e comunidades e não têm direitos respeitados. São também negras e negros, gays, lésbicas, transexuais e setores que lutam para afirmar sua identidade.
O sentimento que os une é indignação. "O Levante representa uma juventude que não se sente contemplada pela política atual, e que também não se sente contemplada pela juventude dos partidos atuais", afirma o estudante de Direito David Liboreo, 23 anos, de Aracaju, que acompanhou a repercussão dos escrachos aos torturadores da ditadura e procurou o movimento na capital sergipana, em 2012. Quando era secundarista, David participou de grêmios estudantis, mas diz que nunca chegaram a pensar em ações para além da escola.
Seu interesse no Levante, como coordenador nacional da Frente Estudantil, é a construção de uma pauta que concilie os anseios da juventude do Brasil com a possibilidade de atuar em função deles. "Eu fico 24 horas ligado. Meus finais de semana são quase todos preenchidos com agenda do movimento", conta. David busca estar com a família e os amigos, mas admite que, muitas vezes, o espaço de relaxamento é o espaço do próprio movimento. "Ir a um acampamento do MST, por exemplo, inspira, dá fôlego. Muita gente que é militante tende a recarregar suas energias nos espaços místicos do movimento", explica.
Para trabalhar as pautas da juventude, o Levante se organiza em três frentes. A Frente Territorial atua nos bairros e favelas, a Frente Camponesa trabalha com pessoas que moram no campo, quilombolas e indígenas, e a Frente Estudantil organiza estudantes das escolas secundaristas e das universidades públicas e privadas. "A base de organização do movimento é a célula, que atua por territórios. Pode ser dentro de uma universidade, de um bairro, de um assentamento", explica a estudante de Letras Luiza Troccoli, 25 anos, de São Paulo. Depois das células há as coordenações municipal, estadual e a nacional.
Luiza explica que dentro da organização há ainda os grupos sobre gênero, raça e diversidade sexual, além de coletivos de finanças e comunicação, formação e agitação e propaganda, todos em níveis municipal, estadual e nacional. A lógica hoje é muito mais complexa que a de quando Luiza era secundarista e militava no grêmio da escola e no Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente. Dentro da universidade, sua participação se voltou para a pauta feminista. "Comecei a participar de um núcleo da Marcha Mundial das Mulheres que tinha na USP, antes de me envolver com o Levante", diz. Hoje, Luiza é da coordenação da Frente Estudantil. "Quando seu trabalho é construir um projeto de sociedade, você enxerga isso em tudo. As contradições estão presentes inclusive nos momentos livres e de divertimento, mas a gente tem de separar as coisas para não pirar." Ela considera indispensável ir ao cinema, ao teatro entre uma atividade e outra e "uma cervejinha" com amigos depois das reuniões.
Outro sentimento que une os integrantes do movimento é o de mudança. "As pessoas ligadas ao Levante veem um horizonte de transformação no país. A gente sabe que é uma organização com potencial para isso", afirma o estudante de Ciências Sociais Walisson Rodrigues, 25 anos, de Porto Velho. Walisson participava do MAB em Rondônia e foi indicado para construir o movimento na sua cidade, em 2014. Ele afirma que existe uma dinâmica diferente na vida dos jovens que são e que não são militantes. Alguns de seus amigos resistem a estar no movimento, mas outros começaram a se aproximar e se inserir nos processos. "Tem os dois lados. Quando as pessoas começam a ter contato com a organização se apaixonam e se aproximam."
Coordenador nacional da Frente Camponesa, ele afirma hoje compreender melhor a diversidade do país, especialmente da juventude. Para Walisson, quem está no Levante quer uma coisa: a revolução. "A gente só vai conquistar direitos de fato se tiver um processo de transformação da nossa sociedade. Se a gente entrar em acordo com essa burguesia, que é ligada diretamente ao capital internacional, só temos a perder."
Construção coletiva
As ações visam a organizar a juventude em torno do Projeto Popular para o Brasil. "É um projeto que não surgiu com o Levante. A gente bebe o acúmulo de outros movimentos, principalmente os da via campesina", acrescenta Luiza. O projeto parte da ideia de que a classe trabalhadora deve atuar na construção dessa nova sociedade. De caráter nacionalista, ele se contrapõe ao neoliberalismo. "Acreditamos que o povo deve estar no poder, pois é o povo que produz, com seu suor, toda a riqueza de nossa nação e deve decidir com soberania sobre os rumos do país. Isso só será possível quando destruirmos o sistema capitalista e a sua face mais dura, o imperialismo." O trecho está na carta compromisso do 3º Acampa.
Apesar do entendimento comum sobre o Projeto Popular para o Brasil, não há nenhum documento fechado com pontos que o compõem ou expondo objetivamente suas diretrizes. A justificativa é a de que se trata de um projeto em construção. "Não adianta apresentar para o povo e chamar para compor", argumenta Luiza. Entre as propostas pensadas está a ampliação das cotas raciais e sociais nas universidades, a garantia de acesso a creches e a gratuidade do serviço de transporte para a juventude.
Além de pontos ainda em construção, o Levante propõe pautas abrangentes, capazes de retratar a diversidade da juventude no Brasil. "Militância é se propor a mudar algo. Quando você se torna militante, você compreende que não consegue fazer isso sozinho, precisa de mais gente com você, então o sacrifício se torna maior. Quanto mais gente do seu lado, mais difícil ficam as relações e mais você vai ter de mudar, compreender as realidades existentes e fazer uma luta conjunta", diz Walisson.
Os jovens buscam agir no seu dia a dia da forma como gostariam que a sociedade fosse organizada. Alguns exemplos dessa visão estiveram presentes no 3º Acampa, como a Ciranda Infantil, espaço criado para cuidar das crianças e garantir que as mães possam participar dos espaços políticos, e a divisão das demais tarefas para manter a casa em ordem. "Aqui é a gente que faz tudo. A gente cuida da limpeza, da nossa segurança, da nossa alimentação, das nossas crianças. É nós por nós. Isso aqui é sobre a nossa emancipação", afirma Juliana.