Peça 0 – a título de prefácio
Adapto o exemplo abaixo de um modelo de Júlio Sameiro, visando aplicar os chamados princípios de Kant (http://migre.me/vynAu)
Um procurador descobre um malfeito de uma autoridade.
Quais as três decisões possíveis?
a)Não fez nada, porque a autoridade, além de muito influente, era do seu time.
b)Apurou rigorosamente o crime para ganhar reputação ou por outras formas de interesse.
c)Apurou o crime pelo fato de ser sua função apurar crimes.
Das três opções, a única moralmente legítima é a C. E é a menos utilizada pelo Ministério Público Federal, desde que passou a disputar o protagonismo político e a se envolver em pactos de sangue com a velha mídia.
Na A, ele segue seus interesses pessoais, no caso ligados aos grupos de interesses blindados. É o caso da inação do Procurador Geral da República (PGR) e da Lava Jato com políticos do PSDB.
Na B, ele apura rigorosamente, mas obedecendo a propósitos partidários (eliminar o PT), ou então para atender a interesses estratégicos da corporação – a ofensiva contra o presidente do Senado, Renan Calheiros, dias depois de ele anunciar medidas contra os salários que ultrapassam os tetos e votar o Projeto de Lei contra abusos de autoridade.
Apenas a alternativa C é moralmente legítima.
O fato é que o Estado de Exceção defendido por Luís Roberto Barroso, o iluminista de Monsaraz, abre espaço para todo tipo de jogada. Cria-se a figura do inimigo e, por baixo da guerra santa, há guerras comerciais, disputas partidárias, interesses corporativos e até confronto entre organizações criminosas. Tudo escondido debaixo do manto da luta contra a corrupção.
O caso Garotinho, até agora, é o exemplo mais flagrante do que acontece quando se derrubam os limites legais à atuação dos agentes públicos.
Peça 1 – Garotinho é utilizado para diminuir o efeito-Cabral
A prisão com estardalhaço dos ex-governadores do Rio de Janeiro Anthony Garotinho e Sérgio Cabral são ingredientes típicos da Alternativa B.
O Ministério Público Federal necessitava de um fato político de impacto para pressionar senadores a acatar integralmente as tais 10 Medidas contra a Corrupção, impedi-los de votar o Projeto de Lei contra Abuso de Autoridades e investigar os vencimentos acima do teto no serviço público.
Soltam, então, a bomba Sérgio Cabral Filho, que vinha sendo maturada há tempos.
Mas, aí, abririam um flanco contra a Globo.
O ex-governador Garotinho ameaçava divulgar um dossiê contra autoridades do Estado envolvidas no esquema de Cabral, assim que o adversário fosse preso. Dentre elas, o ex-futuro presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Luiz Zveiter, estreitamente ligado à Globo (http://migre.me/vynPH).
Zveiter controla um amplo espectro de relações no TJRJ. Ao lado da esposa de Sérgio Cabral, Adriana Ancelmo, teve papel central para convencer o governo Lula a indicar Luiz Fux para o STF (Supremo Tribunal Federal). Em retribuição, Fux tem procurado matar no peito as ações contra Zveiter (http://migre.me/vynSB).
Dias atrás, uma não-ação da presidente Carmen Lúcia, claramente alinhada com a Globo, e do corregedor José Otávio de Noronha, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), livrou Zveiter de um Processo Administrativo Disciplinar (http://migre.me/vynYA)
Como impedir, então, que Garotinho levasse à frente seu intento e denunciasse os esquemas em vigor na Justiça carioca, deixando em maus lençóis seu parceiro, a Globo?
A maneira encontrada foi simultaneamente prender Garotinho para dividir o foco das atenções e colocar mais gás na pressão sobre o Congresso.
Peça 2 - Os antecedentes
Garotinho é acusado de crime eleitoral. Em nenhuma hipótese se justificariam interceptações telefônicas e, menos ainda, prisão preventiva. O estardalhaço montado visou mais do que isso, o seu assassinato político.
Não se pense que Garotinho seja figura ilibada.
No inquérito, é acusado de utilizar politicamente o programa Cheque Cidadão nas últimas eleições. O programa tinha 11 mil inscritos, entrando após avaliação e estava fechado há tempos por limitações financeiras. Segundo as denúncias, Garotinha teria inflado com mais 18 mil beneficiários, indicados pelos candidatos a vereador. E teria ameaçado testemunhas.
No despacho, o juiz Glaucenir Silva de Oliveira acusa Garotinho de se valer dos meios de comunicação – seu Blog e o jornal Diário, de Campos – "para causar temor e insegurança jurídica perante os munícipes e gerando também a descredibilidade da população nos ditames da lei e no trabalho da Justiça Eleitoral”.
Recorre à estratégia da Lava Jato de desqualificar qualquer crítica como obstáculo às investigações. Aliás, imita a Lava Jato até na menção ao discurso de Roosevelt sobre a corrupção: “Conforme discursou o presidente Franklin Roosevelt, ao Congresso Americano no dia 7 de dezembro de 1903, não existe crime mais sério que a corrupção”.
Naquele ano, Franklin Delano Roosevelt tinha 21 anos e nem pensava em ser presidente. Quem disse isso foi Theodore Roosevelt.
Peça 3 – os abusos
Como se pode conferir no despacho do juiz, Garotinho não é propriamente flor que se cheire. Em episódios anteriores, inclusive, foi acusado de se aliar ao delegado Paulo Cassiano – seu atual verdugo – para manipular eleições da cidade de Santa João da Barra.
Mas o juiz, os procuradores e os delegados da Polícia Federal atropelaram o Código Penal e as leis que definem os abusos de autoridade. Montaram um espetáculo midiático indesculpável na prisão de Garotinho e de Sérgio Cabral.
Armaram uma operação de guerra, avisaram a imprensa e promoveram um ato de vingança, ordenando o envio de ambos para o Presídio de Bangu, expondo-os ao achincalhe da população. Cabral foi exibido com cabelo raspado e roupa de presidiário.
Mas, como diz o Ministro Barroso, comendador da Ordem de Cosme Velho, o momento exige mais exceção e menos direitos.
Não partiu de Barroso, o iluminista do Projac, a condenação daquele espetáculo circense. Mas de uma jovem advogada, Maria Eduarda Freire Alves (http://migre.me/vy9ni) com muito mais maturidade e respeito pelos direitos, que comparou com as cenas do Coliseu romano e anunciou que ela não compartilharia daquele espetáculo. Professor de centenas de alunos, Barroso não conseguiu manter acesa a chama da democracia, que jovens como Maria Eduarda carregam no peito.
Peça 3 - O problema cardíaco
Toda a operação destinada a desumanizar Garotinho e transformá-lo em Inimigo Público Número Um esbarrou, contudo, em uma crise cardíaca não prevista que acometeu Garotinho e o levou ao Hospital Souza Aguiar.
Mesmo assim, o juiz Glaucenir atropelou recomendações médicas e ordenou que fosse literalmente arrastado para o hospital do presídio. Qual a razão para tamanha radicalização?
Comportou-se da mesma maneira impiedosa do juiz Ademar de Vasconcellos, ao impedir que José Genoino, em crise cardíaca, após uma cirurgia de alto risco, pudesse receber tratamento médico adequado (http://migre.me/vyf7j). A vida de Genoíno foi salva por uma moça corajosa, supervisora dos presídios do Distrito Federal.
O episódio de Garotinho na maca, coberto por um lençol, lutando contra a remoção, chocou até a opinião pública contrária a ele.
De repente, toda a construção jurídico-midiática, de desumanização do inimigo, de tirá-lo da condição de indivíduo, com direitos, foi por água abaixo. Por falta de reflexo da cobertura, todos os holofotes acabaram se concentrando na cena de Garotinho sendo arrastado para a ambulância. Meramente porque não houve tempo para as chefias se darem conta do estrago que a cena traria para a operação.
E aí entra em cena nem se diga a falta de humanidade, mas a falta de esperteza desse espírito animalesco que rege os atos dos justiceiros: o juiz Glaucenir tratou de ampliar a imagem de martírio ordenando que, mesmo com crise cardíaca, Garotinho fosse transportado para Bangu.
De nada adiantaram os riscos à saúde e os riscos de vida – como ex-Secretário de Segurança, Garotinho tem inúmeros adversários no presídio, colocando sua vida em risco. Praticou-se, ali, um ato de vingança e, pensava-se, um assassinato político, enquanto jornais como O Globo e o Estadão celebravam a humilhação imposta a Garotinho.
No Estadão, fizeram um levantamento dos melhores memes criados em cima da cena degradante de Garotinho sendo transportado para uma ambulância e a família chorando (http://migre.me/vygqk). A Rede Globo difundiu a imagem em seus telejornais. Deu-se carne fresca a uma opinião pública doente.
As imagens foram tão chocantes que, no lado saudável da opinião pública, criou uma onda de indignação que superou a pós-verdade da Globo. Menos Luís Roberto Barroso, o renascentista da Globonews, para quem o direito penal do inimigo é a maneira de transportar o país para o novo século.
Peça 4 - a nova desconstrução
Houve então a necessidade premente de nova desconstrução da imagem de Garotinho, para retirar-lhe o ar de vítima.
No plano familiar, o colunista Artur Xexeo – há muitos anos especializado em desmoralizar pessoas, especialmente mulheres, que ousem criticar seu empregador – cometeu um artigo covarde explorando o desespero da filha de Garotinho (http://migre.me/vyo8Y). E a força-tarefa colocou em prática um conjunto de expedientes midiáticos, que compõem uma espécie de manual tácito da contrainformação, para se prevalecer do apoio da mídia.
Estratégia 1 – amplie as suspeitas sobre o réu.
O juiz Glaucenir informa que recebeu uma proposta de suborno de Garotinho e seu filho, entre R$ 1,5 milhão e R$ 5 milhões. No tribunal utilizado para a denúncia – a mídia – não aparece nenhuma prova da suposta tentativa. Nem se explica a razão do juiz ter mantido a informação em sigilo por mais de um mês, nem o fato de não ter dado voz de prisão ao subornador.
Estratégia 2 – coloque sob suspeita qualquer autoridade que possa se contrapor às arbitrariedades cometidas.
O juiz Glaucenir tratou de criminalizar a denúncia de Garotinho à corregedoria da Polícia Federal e colocar sob suspeita o corregedor, baseado em grampos, nos quais Garotinho meramente menciona que conversou com o corregedor ((http://migre.me/vyfiu)). Quem reforça as suspeitas é o delegado Paulo Cassiano, sobre quem se falará mais abaixo.
Essa estratégia, aliás, foi aplicada pela Lava Jato, quando os delegados – chefiados por Igor Romário – passaram a ser alvo de investigação devido às denúncias de grampo na cela em que se encontrava o doleiro Alberto Yousseff. Imediatamente procuradores saltaram em defesa dos delegados, denunciando os colegas de terem pago o Estadão para a publicação do dossiê dando conta das campanhas do grupo por Aécio Neves, no Facebook.
Através do Fantástico, a Força-Tarefa e a Globo fizeram o mesmo com a Ministra Luciana Lossio, que ordenou a transferência de Garotinho para prisão domiciliar. Matéria do Estadão tratou com suspeição o fato de Garotinho manter contato com ela, para alertá-la sobre os abusos (http://migre.me/vyfpw). Esse mesmo modelo de se valer de grampos ou delações e criminalizar contatos entre inimigos e juízes foi largamente utilizado pela Lava Jato para intimidar magistrados.
Nem isso sensibilizou o Ministro Barroso, a linha Maginot da democracia, que foi colocado para correr com os primeiros ataques desqualificadores que recebeu dos blogs de Veja.
Estratégia 3 – crie uma ameaça para fortalecer a imagem de heroísmo da Força Tarefa.
O procurador que chefiava a operação, Sidney Madruga, solicitou medidas de emergência contra ameaças que pairavam sobre o grupo (http://migre.me/vyfsg). A manchete do Globo informava que “prisão de Garotinho gera pedido de segurança a promotores e juízes”. Vai-se garimpar a informação e fica-se sabendo que um procurador recebeu um telefonema anônimo e não sabia informar qual a motivação. Apenas isso.
No dia seguinte, confirma-se a angioplastia em Garotinho, para a implantação de stents.
Peça 4 – os personagens do caso Garotinho
Mas a parte melhor da história é agora. Vamos conferir quem são os personagens que mereceram cobertura total do Ministério Público Federal e da Rede Globo.
O quebra-cabeças será montado em torno de Tucuns, um mega-escândalo de 15 anos atrás.
Personagem 1 – o advogado Arakem Rosa.
Foi acusado de ter se apropriado e negociado uma área de reserva ambiental na praia de Tucuns ((http://migre.me/vygPt), no que foi considerado o maior escândalo imobiliário de Búzios, um escândalo graúdo, de disputa de terras, uma área de 5,6 milhões de m2, que acabou promovendo remoção e punição de vários juízes e procuradores.
Personagem 2 – Paulo César Barcelos Cassiano.
Pai do delegado Paulo Cassiano, principal algoz de Garotinho, Paulo César foi nomeado interventor na Santa Casa de Misericórdia de Campos, depois que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinou o afastamento do provedor Benedito Marques dos Santos Filho (http://migre.me/vyhKa).
Personagem 3 – Promotor Leandro Manhães
Na qualidade de promotor de Justiça de Tutela Coletiva de Campos, coube a Leandro Manhães entrar com a ação cautelar que levou à intervenção na Santa Casa (http://migre.me/vyhTj), na gestão Rosinha Garotinho na prefeitura. Leandro era um dos proprietários de terrenos no projeto imobiliário de Araken Rosa.
Personagem 4 – juiz Ralf Manhães
Intervém quando Rosinha, com base na opinião de outro procurador, ameaça retomar a Santa Casa. Além de ameaçar os membros do MP, Manhães ordena à prefeitura que libere R$ 3 milhões para a Santa Casa (http://migre.me/vyi5T). Não se sabe o nível de parentesco com o promotor Leandro Manhães.
Personagem 5 – delegado Paulo Cassiano
Delegado da Polícia Federal, é um delegado polêmico. Evangélico, exibicionista, em 2014 acusou a Universidade Federal de Santa Catarina de ser “um antro de maconheiros” (http://migre.me/vygxf).
Já mandou para a cadeia dois prefeitos do interior, em São Francisco de Itabapoana e São João da Barra, ambas no Rio de Janeiro. Nos dois casos, foi acusado de partidarismo político.
Em 2012, a poucos dias das eleições, chegou a propor a prisão preventiva da prefeita Carla Machado, de São João da Barra, na Operação Machadada. O juiz Leonardo Antonelli indeferiu. No mesmo dia, Cassiano ordenou a prisão em flagrante de Carla na véspera das eleições, claramente com a intenção de influenciar o eleitorado.
Não apenas isso, como divulgou vídeos da prefeita (http://migre.me/vyiUu) a poucos dias das eleições.
Acusada de comprar votos, mais tarde a prefeita representou contra Paulo Cassiano junto à corregedoria da Polícia Federal e conseguiu seu afastamento da PF de Campos.
Na ocasião, Carla Machado acusou-o de trabalhar a serviço de Garotinho. Na época da convenção do PMDB local, Cassiano estacionou viaturas da Polícia Federal em frente o almoxarifado da Secretaria da Saúde, sem mandado judicial, criando um estardalhaço na cidade, segundo relatou Carla em sua página no Facebook (http://migre.me/vyiFt).
Tempos depois, um técnico de Campos confessou que tinha grampeado a prefeita em conluio com o delegado Cassiano (http://migre.me/vyiRu). Apesar da flagrante ilegalidade e de ter atropelado diversos capítulos da lei que dispõe sobre crimes de abuso de autoridades, nada de mais relevante aconteceu com Cassiano.
Nas últimas eleições, foi acusado por Garotinho de telefonar pessoalmente para eleitores de Campos, pedindo votos para o candidato do PPS a prefeito, Rafael Diniz, eleito. Pelo WhatsApp comandou uma tal “corrente do bem” em favor de Diniz.
Personagem 6 – Fabiana Rosa.
Filha de Arakem Rosa na época do escândalo em São João da Barra, era Secretária da Saúde do município e foi acusada pelo delegado Cassiano de distribuir remédios com prazo de validade vencido.
Tempos depois, o pai de Cassiano, Paulo César Barcellos Cassiano, assume a interventoria na Santa Casa de MIserircórdia e leva Fabiana como auditora. Em seguida, ela é nomeada Secretária da Saúde da gestão de Rafael Diniz, o prefeito apoiado pelo delegado Cassiano.
Personagem 7 – o juiz Glaucenir
Há um conjunto de fatos obscuros, descritos no post “Os mistérios da prisão de Garotinho” (http://migre.me/vydPY).
Conforme GGN já revelou, o juiz Glaucenir tem um histórico de truculência. Há o caso da Guarda Municipal de trânsito que foi indiciada por ele, após multa-lo (http://migre.me/vyg0U).
Antes disso, Glaucenir foi conduzido a uma delegacia em Vitória, acusado de ter sacado a arma em uma boate, contra o namorado de uma moça que teria sido incomodada por ele. Valeu-se da posição de juiz para manter a arma e o inquérito em sigilo (http://migre.me/vydAw).
Assumiu há um mês o caso.
Peça 5 – as guerras de quadrilhas em um país sem lei
Há muito ainda a investigar nessas operações.
Delegados, procuradores, juízes são agentes do Estado. A maneira de controlar seus poderes é a obediência rigorosa às leis.
Quando o próprio Ministro Luís Barroso, plenipotenciário magistrado do Jardim Botânico, defende o Estado de Exceção, significa o país abdicar de qualquer forma de controle sobre os agentes públicos.
Dali para frente, tudo pode acontecer, especialmente quando se monta a parceria com cartéis de mídia. Perde-se o filtro, da mesma maneira que as empresas quando passam a recorrer ao Caixa 2 e perdem o controle da contabilidade oficial.
A tibieza do Procurador Geral Rodrigo Janot, a cumplicidade dos Ministros do STF com o arbítrio – especialmente Carmen Lúcia e Luís Roberto Barroso -, a irresponsabilidade da mídia instauraram um faroeste em todo o país, do qual será muito difícil sair.