Ernesto Samper, ex-presidente da Colômbia e secretário-geral da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), critica a judicialização da política e afirma que juízes que estão fazendo “política sem responsabilidade” ameaçam a democracia.
Para ele, é “preocupante juízes que fazem política abertamente”, dizendo que esta conduta tem se repetido em toda a América do Sul.
“Temos visto juízes e promotores que viraram estrelas e se prestam à judicialização da política. Atuam politicamente mas sem responsabilidade política. E de alguma maneira afetam a governabilidade democrática", diz.
Em entrevista para a BBC Brasil, ele analisa o impeachment de Dilma Roussef, a crise na Venezuela e o cenário das relações dos países sul-americanos com a China após a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos.
Da BBC Brasil
'É preocupante juízes fazendo política abertamente', diz secretário-geral da Unasul
Juízes que se tornam "estrelas midiáticas" e que estão fazendo "política sem responsabilidade" colocam em risco a democracia.
A avaliação é do ex-presidente da Colômbia e atual secretário-geral da Unasul (União das Nações Sul-Americanas), Ernesto Samper.
Segundo ele, trata-se de um fenômeno crescente na América do Sul, "que afeta a continuidade democrática e ao qual todos devem estar alertas".
Em entrevista exclusiva à BBC Brasil, Samper disse achar "preocupante juízes que fazem política abertamente".
"Não só no Brasil, mas no resto da região, temos visto juízes e promotores que viraram estrelas e se prestam à judicialização da política. Atuam politicamente mas sem responsabilidade política. E de alguma maneira afetam a governabilidade democrática", diz Samper.
A conversa ocorreu antes do anúncio de um novo acordo de paz entre o governo colombiano e as Farc, que deve ser assinado nesta quinta-feira em Bogotá.
O novo texto substituirá o acordo inicial, que acabou sendo vetado em um plebiscito em outubro. Desta vez, o novo acordo será referendado pelo Congresso %u200 e não em uma nova votação popular.
"Vamos dar a oportunidade a 15 mil guerrilheiros para que consigam, pela via política e pela via da votação democrática o que antes queriam conseguir através das armas", disse Samper, que é do Partido Liberal Colombiano, o mesmo do presidente Juan Manuel Santos.
BBC Brasil: A Unasul nasceu com os ex-presidentes Lula, do Brasil, e Hugo Chávez, da Venezuela. Predominavam na região governos de esquerda. Agora a situação é outra. Na sua opinião, a Unasul poderia perder protagonismo com a nova ideologia regional?
Ernesto Samper: É verdade que existe uma mudança ideológica na região. Mas à medida que essa mudança é gerada por decisões livres dos cidadãos, tomadas em contextos democráticos e em tempo de paz, claro que são válidas. É provável que exista uma mudança de ênfase, mas espero que os aspectos fundamentais sejam mantidos. Pontos como a maior inclusão social, a maior competitividade na área econômica e a maior participação na área política - que são a coluna vertebral da agenda da Unasul. Nos últimos meses, foi possível trabalhar harmonicamente com representantes de todos os países e os grupos de trabalho por esses sistemas. Enquanto as normas democráticas estiverem funcionando, trabalharemos com todos os governos.
BBC Brasil: O sr. falou da importância de que as mudanças ocorram por meio da democracia. A Unasul e o sr. se posicionaram contra o processo de impeachment da ex-presidente Dilma no Brasil. Qual é sua opinião hoje?
Samper: Desde o início e durante todo o desenvolvido do processo político, expressamos nossa preocupação de que fossem respeitados os direitos da presidente Dilma Rousseff tanto a um processo justo quanto à legítima defesa. Também expressamos nossa preocupação de que não havia suficiente demonstração por parte da comissão (parlamentar) sobre delitos cometidos por parte da presidente. Fizemos isso não somente de maneira aberta, mas também conversando com autoridades do Estado brasileiro. A nossa capacidade de interlocução chegou até à decisão do Congresso. Alguns países se pronunciaram contra a decisão (do impeachment), outros se pronunciaram a favor. Minha posição nesse momento, como secretário-geral, é a de que seja preciso avançar mais no tema da legitimidade das novas autoridades, mas é claro que a decisão tomada foi auditada, uma decisão formal.
BBC Brasil: Naquele momento, o sr. disse que o impeachment poderia estabelecer um precedente perigoso para a região. O sr. mantém essa visão? Como vê a situação hoje?
Samper: Expressamos que nos preocupava o avanço de uns poderes fáticos na região, e não quero me referir exclusivamente ao caso do Brasil. Estão aparecendo uma série de poderes representados por grupos econômicos, grupos de comunicação, juízes e promotores que viraram estrelas midiáticas e que se prestam para a judicialização da política, organizações não governamentais de caráter internacional. Todos são atores políticos que estão fazendo política, sem responsabilidade política. E de alguma maneira estão afetando a governabilidade democrática. O que sinalizávamos é que vemos com preocupação a situação que poderia ter se apresentado no Brasil, na Argentina ou mesmo na Colômbia, com o processo de paz e plebiscito, que deve nos deixar em alerta sobre a possível interferência desses poderes na governabilidade democrática.
BBC Brasil: No caso do Brasil, o juiz Sergio Moro lidera a investigação na Lava Jato. O senhor se refere a ele quando fala em juízes?
Samper: Não quero mencionar nomes concretamente. Nosso papel não é fazer juízo de valor. Falo sobre um fenômeno de caráter regional, que é essa clara tentativa de judicializar a política. O que se soma a alguns grupos de comunicação que dão uma espécie de protagonismo midiático a estes atores judiciais. O enfraquecimento dos partidos políticos levou à transferência para a esfera judicial debates que deveriam ocorrer na esfera política. O que também me preocupa é que depois da judicialização da política vem a politização da Justiça. Ou seja, juízes fazendo política abertamente. Acho que cada país deve examinar suas situações e circunstâncias particulares, e tirar suas conclusões.
BBC Brasil: Qual é sua visão sobre o caso da Venezuela?
Samper: Acho que no caso concreto da Venezuela a institucionalidade está funcionando. Existe um presidente eleito democraticamente, existem as instituições, e estamos trabalhando para que haja maior convivência institucional entre a Assembleia (Legislativo) e o Executivo e o Poder Judicial. Não acredito que na Venezuela tenha ocorrido uma ruptura democrática. Acho que a região, neste momento, está curada de golpes militares. Mas podemos ver claramente o enfraquecimento dos sistemas representativos e da capacidade dos partidos de liderar as grandes mudanças e eliminar a profunda desigualdade social. Esses fatores conjugados criam um quadro que ameaça a continuidade democrática.
BBC Brasil: Mas apesar da atual mesa de diálogo, que inclui o senhor e um enviado do papa Francisco, os venezuelanos continuam deixando o país para viver no Brasil, na Argentina ou na Colômbia, tentando uma vida melhor.
Samper: A Venezuela é uma sociedade profundamente polarizada e essa polarização não surgiu agora, vem de muitos anos. Essa situação piorou por causa da crise econômica, em grande parte devido à queda nos preços do petróleo. Diante desse quadro, meios de comunicação e atores internacionais atuam com a clara intenção de radicalizar essa polarização e levar a uma fragmentação política. Consequências perigosas, como a de um colapso social, e de alguma maneira potencializado pela situação política nos levou, na Unasul, a atender a um pedido feito para que fosse aberto um espaço de diálogo, que permitisse que os venezuelanos sentassem a uma mesa para resolverem suas diferenças, sem recorrer à violência, sem recorrer à polarização midiática. E o Papa Francisco, com essa intuição que tem, apoiou abertamente esse processo iniciado pela Unasul. Neste momento, tentamos avançar em propostas concretas como uma solução ao tema dos medicamentos, o abastecimento dos alimentos, o equilíbrio dos poderes. Sempre dentro das questões democráticas.
BBC Brasil: Mas os venezuelanos continuam imigrando para países vizinhos. Existe algum tipo de conversa com Colômbia, Brasil, Argentina para receber os venezuelanos?
Samper: Posso responder pelo caso colombiano, onde a Unasul atuou para que fossem abertas as fronteiras que estiveram fechadas alguns meses. Para evitar as filas de venezuelanos que queriam entrar no território colombiano para fazer compras e que naquele período (de fronteiras fechadas) não podiam. Mas acho que nesse momento é preocupante o problema do abastecimento e do poder de compra dos venezuelanos, que foi diminuindo pelas medidas de ajuste. Na Venezuela, salvo exceções, as pessoas não têm dinheiro porque os salários não alcançam, a inflação está corroendo (o poder de compra). Nossa sugestão é de que existam salários que sejam subsídios que de alguma maneira estejam expressados em uma taxa de câmbio única. Porque assim não serão ajustados segundo a inflação, mas segundo as possibilidades reais de que o país tenha de importar ou exportar. Assim o poder aquisitivo seria mais estável.
BBC Brasil: O presidente Maduro concorda com as sugestões?
Samper: Ele vem dando passos importantes no tema abastecimento. Foram obtidos recursos para se trazer produtos de maior necessidade. Os medicamentos não dependem só de dinheiro, mas também de redes de distribuição e inclusive de luta contra a corrupção que existe em torno dessas redes. Acho que no caso dos subsídios já existe uma equipe brasileira que está, de alguma maneira, assessorando as autoridades econômicas venezuelanas.
BBC Brasil: O senhor acredita que na Colômbia esse novo acordo de paz entre o governo e as Farc vai sair do papel?
Samper: Claro que acredito. O que estamos vendo agora é o final da negociação e o começo da implementação dos acordos. O presidente (Juan Manuel) Santos numa atitude muito democrática, e seguindo os resultados do último plebiscito, quando o 'não' ao acordo de paz ganhou por muito pouco votos, abriu novamente a negociação. Ele ouviu todas as pessoas que queriam expressar suas opiniões e depois sentou com as Farc, introduziu cerca de 60% das propostas que foram sendo sugeridas pelos setores do 'não' e a partir desse momento, voltaram a ser feitos os acordos. E a nossa posição é que os acordos ficaram dessa maneira convalidados porque não existe na constituição da Colômbia nada que obrigue o presidente a chegar a um acordo de paz e a um plebiscito. Ele fez isso como uma concessão a todo o país. E agora virá a implementação. Se a aprovação das reformas constitucionais for mantida, será possível levar adiante as medidas mais urgentes que permitam o desarmamento e desmobilização, a entrega das armas à ONU e depois a integração (dos guerrilheiros) à vida civil. Esse processo fundamental da desmilitarização da guerrilha é que vai começar assim que sejam aprovadas as autorizações básicas necessárias.
BBC Brasil: Agora principalmente é um acordo político.
Samper: Claro, mas existem aspectos dos partidários do 'não' que não poderiam ser levados em conta. As pesquisas mostram claramente que os colombianos que votaram 'não', não fizeram contra a paz e muito menos contra os acordos. Alguns votaram contra o presidente, contra o governo e as próprias Farc, mas os colombianos são a favor da paz. Então, não se pode interpretar que esse foi o voto para voltar à guerra.
BBC Brasil: O senhor acredita que haverá mudanças na relação dos EUA com a América do Sul, com a eleição de Trump?
Samper: Acho que vamos viver uma época muito diferente. Não sei se melhor ou pior, mas estávamos acostumados a governos com os quais tínhamos relações mais cordiais ou não. Governos (dos EUA) que acreditavam na relação envolvendo direitos humanos, meio ambiente, enfim. E outros governos que acreditavam que deveríamos simplesmente incluir nas nossas agendas internacionais a luta contra o terrorismo, contra o comunismo, o tráfico de drogas. Mas agora vamos assistir a um fenômeno inédito em muitos anos. Os problemas domésticos dos Estados Unidos vão virar causas internacionais. As portas para os latinos serão fechadas para dar emprego aos americanos. As possibilidades de investimentos chineses e coreanos serão fechadas para proteger o investimento americano. Serão revisados acordos de livre comércio para proteger a produção nacional dos Estados Unidos. E tudo isso terá sérias repercussões internacionais.
BBC Brasil: Ao mesmo tempo, países como Colômbia, Peru e Chile (Aliança do Pacífico, que inclui o México também) já têm relação intensa com a China; e o Uruguai (que integra o Mercosul) anunciou que fará livre comércio com a China a partir de 2018. Esse cenário de relação da América do Sul com a China pode ser intensificado, a partir da eleição de Trump?
Samper: É claro que de alguma maneira o mundo se está conformando em torno de outros blocos. E existe uma linha asiática, uma linha americana e uma linha europeia muito sintonizada com os Estados Unidos. O que temos que fazer é trabalhar um vínculo Sul-Sul. E para isso esperamos continuar contando com a liderança do Brasil. O Brasil é nosso irmão mais velho em círculos como Brics, na relação com a China, com os países da Ásia e da África.
BBC Brasil: Uma das primeiras viagens de Michel Temer, após o impeachment da ex-presidente Dilma, foi a uma reunião dos Brics. Como o senhor vê a figura de Temer para a região?
Samper: Esperamos que seja mantida a linha geral da política externa do Brasil, incluída a relação com os países da América do Sul. O Brasil é um ator muito importante. E não apenas em termos econômicos, mas também políticos tanto para América Latina quanto para os países do Sul-Sul.
BBC Brasil: O senhor acha que as investigações sobre corrupção no Brasil geram instabilidade ao país e à região?
Samper: Estes movimentos judiciais e escândalos midiáticos produzem sacudidas, preocupação e inquietação, mas são obstáculos que os países têm que superar com criatividade. Uma lição que estamos aprendendo com os fatos que ocorreram na América do Sul nos últimos meses, é que o presidencialismo como uma forma de governo também está fazendo água. E talvez seja o momento de mudar os sistemas políticos e passar a um sistema semiparlamentar, no qual crises possam ser resolvidas facilmente através da dissolução do Congresso, a renúncia do presidente e a convocação de eleições gerais. Essa teria sido, sem dúvida, uma excelente saída para uma crise como foi a crise que o Brasil viveu.
BBC Brasil: O senhor concorda com a visão de que houve um golpe parlamentar no Brasil?
Samper: O que fazemos é analisar os fatos e sugerir correções. Deixo para os políticos ativos essa possibilidade de fazer correções.