Ministro nos governos Lula e Dilma – deixou o cargo definitivamente em outubro de 2015 –, Carlos Eduardo Gabas concorda com a necessidade de atualização das regras da Previdência Social, mas critica a proposta do governo Temer, como diz, na forma e no conteúdo. "Na forma, porque mandam um pacote de maldades sem conversar com ninguém", afirma, referindo-se à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 287, apresentada no início da semana e encaminhada ao Congresso, onde já teve parecer favorável do relator na Comissão de Constituição e Justiça, deputado Alceu Moreira (PMDB-RS) – conforme ele mesmo adiantou, autodenominando-se "the flash", pela agilidade no parecer.
E no conteúdo porque não existe um "descontrole" de despesa. "O que há é uma queda brutal de arrecadação. Você não pode, por um problema de arrecadação, tirar direitos. O remédio é crescimento econômico", diz Gabas. Para ele, as PECs 287 e 55, de congelamento de gastos primários por 20 anos, representam o pagamento do governo Temer para quem ajudou a bancar o golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff.
Gabas observa que "coincidentemente, ou não", a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional divulgou terça-feira (6) um relatório destacando R$ 1,8 trilhão em dívidas a serem cobradas. "Um número até pequeno de contribuintes, cerca de 13 mil, entre empresas e pessoas físicas. Não se fez nenhum esforço até agora para cobrar esse dinheiro, e por um outro lado você está tratando de retirar direitos, que é uma medida permanente que afeta especialmente o trabalhador mais pobre", afirma o ex-ministro.
"Uma quantia pequena ganha o teto, que é R$ 5.189. A média dos benefícios pagos pela Previdência é de R$ 1.500, R$ 1.600. Então, estamos falando de uma parcela pobre da sociedade. Mais de dois terços do conjunto de benefícios, cerca de 34 milhões, é de um salário mínimo", observa. Assim, o governo elabora medidas que, na visão de Gabas, contempla o ponto de vista econômico, com matriz na Fazenda – que, conta, sempre pressionou por reformas –, prejudicando trabalhadores de menor renda. Para ele, por meio do diálogo, sem imposição ou "toque de caixa", era possível encontrar alternativas de financiamento, preservando direitos.
A reforma é necessária, então?
Quando eu falo necessária é de um desafio que a gente enfrenta, que é a transição demográfica. Estamos vivendo mais e envelhecendo. Claro que de alguma maneira precisamos atualizar essas regras. A presidenta, percebendo a necessidade, editou um decreto que convocou o Fórum Nacional do Trabalho e da Previdência Social (oficialmente, Fórum de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e Previdência Social). Não é só Previdência. O mercado de trabalho influencia a Previdência, tanto nas aposentadorias quanto na sua arrecadação, principalmente. Então, você não pode tratar como uma coisa isolada.
No início deste ano, ainda na gestão Dilma, o governo pretendia encaminhar um conjunto de propostas...
O governo não pretendia encaminhar. Nós vínhamos debatendo, e quem pressionava muito para encaminhar uma proposta, com debate ou sem debate, como sempre, era o Ministério da Fazenda. Joaquim Levy queria muito que mandasse uma proposta para o Congresso. Nós resistimos, a presidenta resistiu, porque entendeu que não era possível fazer uma mexida que alcança grande parte da sociedade, especialmente os mais pobres, sem fazer um debate. Qual é a conta, quem vai pagar a conta. Primeiro, tínhamos de discutir a cobrança das dívidas, o fim das renúncias – a Previdência paga muita conta que não é dela. Aí, depois disso, debater com os trabalhadores quais regras deveriam ser atualizadas. Isso com muita tranquilidade, sem toque de caixa, sem essa pressa toda, que na verdade é para atender ao mercado. A PEC 55, a PEC do fim do mundo, mais a PEC da Previdência, é o pagamento do governo Temer ao golpe, a quem patrocinou o golpe, é uma continuidade dele. Nós dizíamos que, com o golpe, quem vai perder é o trabalhador. Não era à toa. Taí a resposta para o que dissemos lá atrás. É o compromisso desse governo com as elites, que não querem pagar imposto, que sonegam, que são devedores, mas para resolver o problema de caixa atinge o trabalhador.
A equiparação entre homem e mulher é um dos pontos críticos dessa proposta?
Esse é um deles. Você não pode igualar dessa maneira o tempo de contribuição e idade de mulheres e homens. Nós não temos uma sociedade igual. Vamos dar um exemplo: uma mulher que tiver 44 anos e tenha começado a trabalhar aos 15, está com 29 anos de trabalho, falta um para se aposentar. Ela vai de trabalhar mais 16 anos. Isso é cruel. E mais ainda: a maldade não é só contra as mulheres. Se você observar, a nova regra prevê aposentadoria só aos 65 anos de idade. Tem de ter 25 de contribuição. Mas ela mexe no cálculo da aposentadoria. Não é mais 100% do valor da média, é 51% mais um 1% a cada ano trabalhado e contribuído. Significa dizer que o trabalhador, para ter 100%, para ter sua aposentadoria integral, vai ter de trabalhar até os 65 anos e ter no mínimo 49 anos de contribuição. Isso nenhum país do mundo tem, é muito maior que a média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). É botar na conta do trabalhador uma responsabilidade que não é dele, é da crise econômica.
E os outros itens?
Outro ponto que também é bastante cruel são os trabalhadores rurais. A medida que eles propõem praticamente acaba com a Previdência rural. O segurado especial, são pequenos agricultores, propriedades de até quatro módulos fiscais, são responsáveis por mais de 70% da produção de alimentos do país. Isso, por si só, já é uma contribuição imensa à sociedade, mas não para por aí. Eles contribuem, sim, com a Previdência Social, não é só com a produção de alimentos. A maioria dos alimentos vem da pequena propriedade. A Constituição previu uma política de proteção ao homem do campo. Ao estabelecer a igualdade de idade – hoje o homem do campo, segurado especial, se aposenta aos 60 anos o homem, aos 55 anos a mulher –, foi todo mundo para 65. E mais, ele vai ser obrigado a contribuir mensalmente, igual aos trabalhadores urbanos. Agora, você imagina se isso é viável. Você vai para o sertão do país, tem um camponês lá trabalhando a terra, ele para o trabalho dele para ir determinado dia do mês recolher uma guia da Previdência Social no banco. Primeiro, ele nem sabe o que é, nem vai saber. Segundo, não tem dinheiro para fazer isso. A contribuição dele se dava na medida em que ele comercializava a produção, ou se não diretamente por ele por substituição tributária, quem comprava a produção dele pagava no meio da comercialização. Isso não vai valer mais. Ele vai ser obrigado a contribuir todo mês, ou não vai se aposentar. Por isso que, na minha avaliação, é o fim da aposentadoria rural.
Outro aspecto é o BPC/Loas (Benefício da Prestação Continuada da Lei Orgânica da Assistência Social), que é pago a idosos e deficientes, pobres. Hoje é pago aos 65, eles elevam para 70 anos. Isso vai dificultar muito a vida de quem já sofre. E um outro aspecto: todas as aposentadorias e pensões passam a pagar contribuição à Previdência. Para quem já é aposentado, já é uma redução de salário. E (a proposta) desvincula tanto BPC/Loas quanto as pensões do salário mínimo. Uma senhora que é casada com um aposentado, que recebe salário mínimo, fica viúva, vai receber metade do salário mínimo. Hoje, com a regra atual, não é possível, ninguém ganha menos que um salário mínimo. Eles tiraram essa previsão legal e pode ter benefício menor. Então, ataca, afronta, os direitos do trabalhador. É uma medida que tenta resolver uma crise econômica às custas do trabalhador.
A perda de perspectiva de se aposentar com a nova regra não podem fazer com que as pessoas percam a esperança e passem para o setor privado, piorando ainda mais o sistema público?
De alguma maneira, isso pode acontecer. Mas o fato é que o cidadão pobre não tem alternativa, ele não vai pagar previdência privada. O que ele pode fazer é deixar de pagar, o contribuinte individual, aquele que é responsável pelo seu recolhimento. Mas a maioria é trabalhador, desconta em folha, não tem como fugir disso. Por isso que a solução para ele é lutar, tentar garantir seus direitos, não sair para outro modelo, porque ele não pode.
Há uma PEC agora em tramitação. Como esse debate pode ser feito para evitar uma desconstrução do sistema? Porque o governo apresenta como fato consumado e inevitável.
O governo apresenta como consumado porque, entre aspas, tem maioria no Congresso. Acho improvável, e impossível até, que as centrais sindicais não venham a se manifestar contra essa proposta. Tem de ir para dentro do Congresso Nacional e pressionar. Uma coisa é você ter maioria para aprovar medidas, outra é ter para retirar direitos. O nosso principal argumento é que não existe um descontrole nas despesas. Se você pegar gráfico das despesas nos últimos anos, claro que tem um crescimento vegetativo, mas só isso. De 2014 para 2015, inclusive, caiu. Existe uma queda de arrecadação que você não pode atribuir ao trabalhador. Na nossa avaliação, a saída para o equilíbrio da Previdência e para o mercado de trabalho é retomada do crescimento, o Brasil precisa ter mais emprego, mais renda. E não se faz isso com a PEC 55, a PEC da maldade, congelando investimento, inclusive na saúde e na educação. É absurdo. O governo tem de ser indutor do crescimento. Da forma como estão propondo, eles vão patrocinar a recessão, e quem ganha com isso é o rentista, quem tem dinheiro aplicado em banco e vive de juros, e não podemos voltar a esse patamar atrasado da economia brasileira.
É justo, ou correto, falar em déficit da Previdência, considerando que é uma política também, um modelo de financiamento...?
Você pode falar em déficit, mas não pode misturar as coisas que não são misturáveis. Se você pegar a Previdência urbana, está estruturada na contribuição da empresa sobre folha de salários, você pega a despesa com aposentados, pensionistas, benefícios urbanos, e a receita, isso ao longo dos últimos anos vinha dando superávit, chegou a dar R$ 20 bilhões de superávit/ano. Então, você compara urbano com urbano. Hoje, ela está deficitária. O que normalmente se faz, maldosamente, é misturar o rural, que não tem folha de salário. Você não pode comparar à Previdência urbana, que arrecada em cima de uma base, de uma massa salarial, que tem uma contribuição. O rural é sobre a forma de ampliação da produção, então não foi feito, com essa arrecadação, para ser superavitário. Por isso o legislador incluiu, no conceito de seguridade social, arrecadação da Cofins e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. O que acontece é que a Fazenda nunca atribui essa arrecadação ao orçamento da seguridade ou da Previdência, por isso que falta dinheiro.
A idade mínima é outra maldade dessa PEC?
Você estabelecer uma idade mínima pura e simples, como eles fizeram, ela nem é 65, ela é móvel. Cada vez que a expectativa de sobrevida medida pelo IBGE atingir um ano a mais, a idade mínima sobe um ano também. Para você ter uma ideia, nos últimos 10, 12 anos, essa expectativa de sobrevida subiu 4,6 anos. Então, significa dizer que nos próximos anos 65 vai virar 66, 67, assim por diante. Isso é cruel com o trabalhador que começa cedo. Quem começou aos 14, 15 anos, vai trabalhar mais de 50 anos para poder ter direito ao benefícios. É uma medida muito dura com os trabalhadores que têm menor qualificação, menor renda. São os postos de trabalho que exigem mais fisicamente, têm um desgaste de sua saúde maior ao longo dos anos de trabalho.
A Fazenda, ainda nos governos anteriores, era favorável a uma idade mínima.
A Fazenda sempre, em todos os aspectos da reforma, defendeu uma visão econômica. Por isso que nós tínhamos o Ministério da Previdência, como uma política central, tanto no governo da presidente como no governo do presidente Lula, em que não se discutia previdência sem o ministro da Previdência. A gente debatia internamente, e vencemos em todas as vezes. Nunca se fez um pacote de maldades desse, tirando direitos dos trabalhadores em detrimento da proteção previdenciária. Ocorre que o governo atual primeiro acabou com o Ministério da Previdência, fez essa política no Ministério da Fazenda, por isso o conjunto de maldades tão grande.
Como o sr. falou, é preciso considerar que existe de fato uma mudança demográfica no país, isso muda a proporção entre contribuintes e aposentados...
Esse é nosso desafio.
É preciso mexer, então, mas o que pode ser feito?
Precisa atualizar regras, é verdade. Não necessariamente você tem de fazer de maneira unilateral e com um saco de maldades tão grande. Se você debater com os atores do processo, que são os empresários, os trabalhadores, os aposentados, o próprio governo, pode encontrar alternativas de fontes de financiamento, de funcionamento, de fim de isenção, que ajude a equilibrar sem retirar direitos.