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Xadrez da tacada final do golpe da Constituinte

Dez 19, 2016

Por Luis Nassif, no GGN                                                                                              

 

Capítulo 1 – o sentimento de salve o Brasil
No Brasil real, meu amigo Vinicius, de 16 anos, criou um grupo no WhatsApp com o título “Salvar nosso Brasil”. O histórico trabalhista Almino Afonso, no meio da conversa deixa escapar um “precisamos salvar nosso país”. Minha tia Clélia reza todo dia para Deus salvar o Brasil, embora não saiba exatamente como e de quem. O jurista Celso Antônio Bandeira de Mello diz, no meio do almoço, que precisamos salvar o Brasil. Pelo Twitter, o governador maranhense Flávio Dino repete a mesma expressão.

Testemunhei todos esses apelos em menos de meio dia. Em todos os pontos do país há um sentimento difuso de que o Brasil derrete, se desmancha, em um suicídio lento e ritual. E a angústia de querer e nada poder fazer, porque o destino do Brasil não está nas mãos do Brasil real, mas de uma realidade virtual montada em Brasília.

Capítulo 2 – o Brasilguai da estufa Brasília
Em um reino distante chamado Brasilguai, nos limites entre um Brasil que já era e simulando um Paraguai que já foi, a realidade é envolta em manchetes feéricas e em redes sociais onde borbulham babas de ira e sangue, compondo o cenário em que as mais altas autoridades disputam os clicks da turba e as dobras do poder.

É o pessoal da corte, do país improdutivo que vive em uma estufa onde são cultivadas as intrigas, os jogos de lisonja e de poder, um mundo invertebrado, em que as carreiras são construídas por artimanhas, puxadas de tapete e de saco, palco de cenas desse nível:

· A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) brada: “Onde um juiz é destratado, eu também sou” (https://goo.gl/rC9FJd). Recebe 1.450 cliques no Facebook.

· O Procurador Geral da República adapta o brado: “Atacar um procurador é atacar todo o Ministério Público”, e corre a se informar sobre a quantidade de cliques que a frase irá merecer.

· O decano, que não é de ferro, aproveita e se exibe em um self em um shopping da moda, sabendo que o discurso anticorrupção é o creme de leite que, com sua densidade, disfarça qualquer massa de má consistência.

· Não se sabe se o presidente do Senado aproveitou o mote e bradou: “Quem ataca um senador, ataca o Senado”. Se não gritou, pensou. Se pensou e não realizou, perdeu o direito aos clicks.

· E, como a realidade virtual não está sujeita às limitações enfadonhas da realidade, o Ministro da Justiça declara seu modesto plano de ação: erradicar toda a maconha do continente. A julgar pelos selfies que tirou no Paraguai, desbastando uma a uma as mudas de cannabis. Repetindo o que disse a Comissão de Ética da Presidência: "cala-te, Magda!".

É esse simulacro de país virtual que comanda o Brasil real, um país que poucos anos atrás ambicionava o status de nação moderna. É lá, que se desenrola essa ópera que não é bufa, por trágica, cujos próximos capítulos descreveremos a seguir.

Capítulo 3 – um apanhado do momento atual
No Brasilguai, ora são denúncias contra Michel Temer, ora loas a um simulacro de pacote econômico, ora o Procurador Geral investe contra o presidente do Senado, ora o Ministro do Supremo contra a Lava Jato; o PGR e o Ministro se acusam mutuamente do objetivo comum de blindar o presidenciável tucano, enquanto associações de juízes e de procuradores pressionam o Congresso e procuradores e juízes cometem “estudantadas”, mostrando menos maturidade que os secundaristas do Brasil real.

Enfim, um retrato claro da balbúrdia institucional que se instalou no país improdutivo, aquele que não gera riquezas, mas consome o futuro e deixou de cumprir com sua responsabilidade constitucional.

Para não perder o fio da narrativa, o leitor deve se fixar apenas no roteiro principal, que consiste no desmonte do Estado. Idas e vindas são apenas variações em torno do tema principal. Aí se dará conta de que o que era intuído há alguns meses, hoje em dia é ação consumada e ostensiva, mostrando a coerência da narrativa central:

· O jogo político da Lava Jato em benefício do PSDB. Mais de dois anos de operação e nenhuma exceção sequer para confirmar a regra.

· O desmonte do Estado.

· O desmonte de garantias individuais, sociais e ambientais com o avanço do estado de exceção.

· A porteira aberta para os negócios do Congresso. Deputados preparam a volta do jogo, ruralistas liquidam com regras ambientais, o senador Romário avança uma trapaça com APAEs e Sociedades Pestalozzi, o governo ameaça rever as reservas indígenas.

Essa imoralidade ampla e irrestrita é aceita pelo polo condutor do golpe como uma espécie de dano colateral inevitável para se alcançar os objetivos finais: o desmonte total do Estado nacional, das políticas sociais e dos modelos de atuação proativa do Estado, substituindo a ação política pelo modelo tecnocrático-jurídico globalizante, já identificado em várias obras acadêmicas.

Antes de avançar neste Xadrez, aliás, é útil a leitura sobre as estratégias em torno do chamado “capitalismo de desastre”. Trata-se da fórmula já incorporada às estratégias globais, conforme você poderá conferir aqui (https://goo.gl/5NmavZ) e no ”Xadrez da Teoria do Choque e do Capitalismo de Desastre” (https://goo.gl/V4XdVZ)).

A partir daí, fica mais fácil entender a tacada final do golpe: a tentativa de Constituinte exclusiva com a atual composição do Congresso.

Capítulo 4 – O golpe final da Constituinte
Em um Congresso integrado por trânsfugas, fisiológicos, conservadores e preconceituosos de toda espécie, não há maior ameaça aos setores populares e modernizantes que o deputado carioca Miro Teixeira e sua proposta de Constituinte (https://goo.gl/xsvtfp).

Miro é um Cristóvão Buarque profissional. Hoje, é o principal homem da Globo no Congresso.

Discreto, só interfere no jogo em momentos decisivos, como foi na CPMI de Carlinhos Cachoeira, quando a mídia, especialmente a revista Veja, entrou na linha de fogo.

Sua proposta de uma Constituinte com os atuais integrantes do Congresso é, de longe, a maior ameaça aos direitos sociais desde que o golpe foi desfechado.

A pretexto de discutir a reforma política, o fator Miro Teixeira se impõe com essa tese esdrúxula de uma Constituinte com o Congresso atual.

O parágrafo 2 do artigo 101 define o que não poderá ser deliberado, de tal maneira que abre espaço para transformar o pior Congresso da história em poder constituinte (https://goo.gl/yMNMg0). O tal parágrafo diz que a Assembleia nacional Constituinte deliberará “preferencialmente” sobre reforma política. Não é exclusivamente: é preferencialmente. E veda apenas as propostas abolindo I- o Estado democrático de Direito II- a separação dos Poderes; III- o voto direto, secreto, universal e periódico; IV- a forma federativa de Estado V- os direitos e garantias individuais e VI- o pluralismo político.

Ou seja, não avançando até esse limite, tudo pode.

Tendo a demolição do Estado de bem-estar como peça central, entram-se nas variáveis, a principal das quais é o destino do governo Michel Temer.

Capítulo 5 – as peças do jogo principal
Como o processo atual é essencialmente dinâmico, vamos, primeiro, a uma avaliação do estágio atual dos principais personagens, para entender o papel de cada um no jogo:

Núcleo duro

O núcleo duro continua integrado pela Globo e o mercado. O Ministério Público Federal, através do PGR, e o PSDB tornaram-se meros caudatários. O endosso da opinião pública à Lava Jato é pontual e tem prazo de validade, como em todo processo catártico.

A Globo implementou um discurso único para seus comentaristas, de ataque continuado ao sistema político e de exaltação permanente à Lava Jato. Joga com Michel Temer, mas aguarda sua queda. Manobra com a Lava Jato para queimar Renan Calheiros e manter Lula sob fogo cerrado, enquanto prepara o próximo tempo do jogo.

A PGR e o Judiciário

A cada movimento vai ficando claro que o PGR não possui dimensão política para atuar como organizador do golpe. Teve papel decisivo no golpe, sim, conforme antecipado pelo GGN. Mas é um mero seguidor de script desenvolvido por instâncias profissionais.

Com a narrativa midiática-ideológica vitoriosa, construindo a figura do inimigo interno (PT-Lula) e apresentando a fórmula salvadora (o desmonte do Estado), cria-se o movimento de manada e os fatos acabam se sucedendo por inércia: Ministros do STF intimidados ou deslumbrados, procuradores e juízes de inquéritos paralelos procurando mostrar serviço e a escalada rápida do estado de exceção, com juízes arremetendo contra qualquer coisa que cheire esquerda. Vide tentativa de cassar os direitos políticos do senador Lindbergh, imediatamente após ele ter enfrentado o juiz Sérgio Moro, porque havia o logotipo da prefeitura em um saco de leite distribuído.

O PSDB

Não tem mais protagonismo algum. Assumiu a condição de terceirizado do mercado, e é o que resta do quadro partidário. Por esse papel supletivo, é poupado: do lado da mídia, registrando as menções dos delatores, mas não insistindo na repercussão; do lado do Supremo e do PGR, postergando os resultados dos inquéritos.

Por exemplo, o Ministro Gilmar Mendes e o Procurador Janot, não se bicam, mas estão na mesma missão de poupar o PSDB. Quando um dos dois atua em benefício do PSDB, o outro se sente aliviado e aproveita para espicaçar o adversário-parceiro.

Ao mesmo tempo em que preserva o PSDB, Janot investe pesadamente contra o presidente do Senado Renan Calheiros e estimula perseguição implacável a Lula, concentrando inquéritos e denúncias divulgados em momentos estratégicos, como agora, diluindo um pouco as delações da Odebrecht.

As forças políticas

Não se ataca Renan por seu histórico, mas por ser o general maior da resistência do Senado aos esbirros do MPF e do Judiciário. Na verdade, o bastão político está entregue, hoje em dia, ao comando solitário de Renan no Senado, e à liderança de Lula no Brasil real. O apoio de Renan à PEC 55 foi estratégico, para manter o Senado no jogo. Mas não infunde confiança no comando do golpe, que sabe que Renan tem voo próprio.

É por aí que se entende a sequência de ataques aos dois polos.

Michel Temer, o breve

Um a um o golpe vai decepando cada braço político de Temer. Eliseu Padilha e Moreira Franco estão com os dias contados. Romero Jucá será o próximo alvo do MPF. Aguarda-se apenas o autor da bala de prata: se as delações da Odebrecht ou de Eduardo Cunha.

Consumada, restarão dois destinos inglórios para Temer:

1. O impeachment através do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

2. A interdição, com o PSDB assumindo o controle do governo e mantendo um presidente decorativo.

Tivesse dimensão política mínima, se poderia esperar uma saída honrosa, tipo comandar uma tentativa de salvação nacional através da convocação de lideranças de todos os poderes e partidos. O momento demanda saídas assim. Mas Temer jamais deixará de ser um mero mercador das pequenas demandas fisiológicas.

Assim, se entrará na próxima tentativa do golpe sem ninguém que possa exercer o papel de algodão entre cristais.

Capítulo 6 – a desestabilização econômica
Para que a proposta da Constituinte seja aceita, e os princípios defendidos pela Globo-Miro empurrados goela abaixo do Congresso, há a necessidade de sucessivos choques que criem um estado de desorientação tornando os parlamentares receptivos a propostas salvadoras de seus mandatos.

Mas no meio do caminho tem uma baita crise econômica, trazendo ampla desorganização econômica, social e política, podendo se desdobrar em várias alternativas.

Como Temer está enfrentando a borrasca?

A ofensiva neoliberal esbarrou em um problema lógico.

Precisa contar com a desordem geral, a falta de perspectiva para apresentar as propostas salvadoras, que consistem na redução radical do papel do Estado. Aliás, precisa aproveitar o estado de desorientação geral para ser bem sucedida.

No entanto, só se conseguirá sair da crise com uma intervenção decidida do Estado, através dos investimentos públicos e de um amplo envolvimento dos bancos públicos comandando o processo geral de renegociação dos passivos de empresas e pessoas físicas.

O jogo consiste em ir até às últimas instâncias com o desmonte, através da implementação de medidas irreversíveis. Mas como administrar a crise, sem criar um caos de tal ordem que abra espaço para aventureiros?

O pacote contra a crise anunciado por Michel Temer é de um ridículo, que nem a pós-verdade da mídia conseguiu disfarçar. Fizeram a xepa, abrindo as gavetas da Fazenda e do Planejamento e retirando de lá propostas irrelevantes.

Qual o sentido de apresentar como grande saída contra a recessão a diferenciação de preços para compras à vista e por cartão, ou a redução em um ponto da multa do FGTS (https://goo.gl/PCkoL3)?

Só a paixão repentina do Estadão por Temer para encontrar alguma eficácia nesse pacote e tratar essa bobagem como “uma boa surpresa” (https://goo.gl/9eIklw), algo que nem a Globo ousou endossar.

Considerações parciais
Esses são os dados do momento.

Por outro lado, o agravamento da crise produzirá um sentimento cada vez maior de urgência para a busca de saídas. Dependendo das circunstâncias, poderá levar ao entendimento ou ao endurecimento final do regime.

O grande problema desses personagens fakes do Brasilguai é a incapacidade total de entender o dinamismo dos processos sociais, políticos e econômicos. Assim como a parte mais superficial do mercado financeiro, esses personagens projetam o futuro a partir dos dados do presente, sem nenhuma sofisticação analítica para perceber a dinâmica dos processos.

Vamos a alguns exercícios simples de futurologia

1. Ministério Público e Judiciário
Daqui a alguns anos o mundo político estará pacificado. Seja qual for o partido no poder, ou mesmo uma ditadura, a reação será o embate com o MPF e o Judiciário, pela simples razão de que nenhum sistema político conseguirá funcionar minimamente com a margem de arbítrio conquistada pelo MPF, Tribunal de Contas e outras instituições do funcionalismo público. Em caso de ambiente democrático, não haverá o embate direto, mas o estrangulamento orçamentário gradativo e as restrições aos salários e vencimentos da categoria. Será o fim da era dos concurseiros. Em caso de ditadura, basta bater a bota para colocar os bravos para correr.

2. Ascensão social
O que ocorrerá com essa multidão que ascendeu socialmente, que conquistou comida na mesa e filhos nas universidades? Aceitará passivamente o recuo para as profundezas da miséria? É evidente que não, o que acarretará distúrbios populares cada vez mais intensos.

3. A Lava Jato
Na Itália, quando a opinião pública se deu conta do estrago produzido na economia pelas Mãos Limpas, a operação morreu. A destruição da economia formal abriu espaço para um crescimento sem paralelo da máfia, que hoje domina perto de 30% da economia italiana. O que ocorrerá com o aprofundamento da crise, quando cair a ficha que não foi a corrupção, mas o álibi da corrupção fornecendo os instrumentos para uma destruição consciente e antinacional da economia pelo MPF?

4. Os movimentos sociais
Na era Lula-Dilma os movimentos sociais foram institucionalizados. Passaram a acreditar no jogo democrático, nas ações visando legalizar terras devolutas e a pressionar por políticas públicas. O que ocorrerá com eles se passarem a ser reprimidos pela Polícia Militar e pelas Forças Armadas?

5. As Forças Armadas
No momento, comportam-se profissionalmente. O modelo de confronto, no entanto, demandará cada vez mais sua intervenção. Como reagirão os militares se novamente colocados como guardiões do regime, em um jogo em que os principais atores civis e públicos estão envolvidos em suspeitas de corrupção ou pensando exclusivamente em seus interesses corporativistas? Continuarão aceitando as ordens passivamente?

Enfim, são perguntas óbvias e grandes desafios analíticos para personagens públicos absolutamente medíocres, a pior geração de burocratas em um país em que a burocracia pública, em outros tempos, se constituía no principal instrumento de modernização. Apenas do papel didático da crise se poderá esperar alguma surpresa. E temo não ser surpresa boa.

 

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