Fernando Haddad cumpre o último mês à frente da prefeitura de São Paulo. Sua administração acaba de receber mais dois prêmios internacionais por conta de políticas inovadoras, um deles oferecido pela fundação do republicano Michael Bloomberg, ex-prefeito de Nova York celebrado pela direita.
Apesar da derrota no primeiro turno das eleições municipais, Haddad aparenta mais amargura com a situação do Brasil do que com o revés sofrido em outubro passado. Em uma luminosa tarde de primavera, o prefeito olha pela janela antes de discorrer sobre o País e o mundo e fazer um balanço de sua gestão. Antes "cético", defende agora a antecipação das eleições presidenciais. "A saída para a crise não está prevista na Constituição."
Como o senhor definiria o momento atual do Brasil?
Está caracterizada uma crise institucional. Todos os elementos estão aí, a começar pela inovação do Congresso de afastar a presidenta sem crime de responsabilidade. Tratou-se de uma intervenção do Legislativo sem previsão constitucional. A situação é grave. Faltam liderança e desprendimento, em uma hora tão aguda, para colocar o Brasil acima dos interesses facciosos que se impõem pelo curso dos acontecimentos.
Qual a saída?
A grande dúvida é se o governo atual reúne condições para atravessar 2017 e 2018, até as eleições gerais previstas. Se alguém na política estiver no aguardo da virada do ano à espera de eleições indiretas, dará um segundo tiro no pé.
Por quê?
Uma eleição indireta, com este Congresso e por conta dos possíveis desdobramentos das investigações contra parlamentares, não terá legitimidade. Estamos em uma situação realmente delicada. A saída não está prevista na Constituição. O ambiente foi criado pela guerra civil fria que se estabeleceu no País.
O senhor acha possível essa guerra civil fria evoluir para uma convulsão social?
Tudo pode acontecer. O povão não foi para as ruas protestar, ainda aguarda os acontecimentos.
Irá em algum momento?
Acho possível. De forma desorganizada, infelizmente, caótica e violenta. Faltam canais de superação da crise. Os estados enfrentam enormes dificuldades financeiras, as empresas estão endividadas e são obrigadas a demitir.
Existiria alguma liderança capaz de conduzir um arranjo institucional?
É cada vez menor a margem para o surgimento de uma liderança. E, como disse, a pior opção seria uma eleição indireta de um presidente.
O melhor seria antecipar as eleições presidenciais?
Eu era cético, mas hoje não vejo alternativa. Qual seria a opção? Um regime de força? Há quem peça a volta da ditadura, mas a gente conhece o resultado. Nenhum país saiu de uma crise por esse caminho. A solução é radicalizar a democracia.
Qual o papel da esquerda neste momento?
Quem tem compromisso com o Brasil precisa abrir-se para o diálogo. O País necessita de uma pauta de superação da crise. Clara, transparente, generosa. No caso da esquerda, sou a favor da realização de prévias para a escolha de um candidato. Ela resultaria em um processo de troca de experiências para a construção de uma plataforma comum. Não adiantaria voltar ao poder sem clareza do que fazer.
É viável uma frente de esquerda?
Depende da disposição para ouvir. A tendência geral neste momento é de fragmentação, em proveito de interesses de grupos. A esquerda precisa dar um contraexemplo: aglutinar, estimular um campo comum no qual cidadãos solidários, democráticos e republicanos possam defender um projeto nacional.
Por que o senhor acredita que assistiremos, em 2018, a uma disputa entre a direita e a extrema-direita?
A situação mundial é de desencanto com a globalização. Os trabalhadores europeus e americanos não estão satisfeitos com a distribuição de renda. A globalização vendeu-se como uma socialização do bem-estar, mas promoveu a concentração da riqueza.
Há uma retomada dos discursos xenófobos, nacionalistas, intolerantes. Esse clima planetário reflete-se no Brasil. Fiz um alerta, na verdade. Se nada for feito para aglutinar as forças progressistas, a tendência é de que o diálogo se dê entre a direita e a extrema-direita.
O senhor cogitaria em assumir a presidência do PT?
Agradeço a lembrança de companheiros do partido, mas não tenho perfil de dirigente partidário. E esse perfil é essencial para conduzir o processo de renovação do PT. A legenda precisa de alguém que dialogue não só com a militância, mas com a sociedade.
A prefeitura de São Paulo acaba de ganhar mais dois prêmios internacionais, reconhecimento de políticas inovadoras adotadas por sua administração. Por que o senhor faz mais sucesso fora do que na cidade?
Todos os prefeitos petistas de grandes cidades tiveram dificuldade nas últimas eleições. Não fui o único. Atravessamos uma quadra histórica extremamente desfavorável. Enfrentei a inconveniência de ter na disputa duas ex-prefeitas do PT, Luiza Erundina e Marta Suplicy, em uma campanha mais curta.
Ficou complicado explicar para os eleitores o motivo de termos essas três candidaturas. E ainda havia o antipetismo, estimulado pelas crises política, econômicas e ética. Não bastasse, desde o primeiro dia do meu mandato, houve um alinhamento visível da mídia tradicional contra o nosso projeto, uma postura sistemática de desconstrução das políticas, mesmo as mais avançadas.
Quais?
Reestruturamos totalmente as finanças da cidade. Conseguimos o investment grade, o selo de bom pagador. Teve jornal que nem deu a notícia. Revisamos a legislação urbanística e submetemos a especulação imobiliária a regras modernas, elogiadas no mundo.
Falo do plano diretor, da lei de zoneamento, das operações urbanas, do código de obras. Investimos 17 bilhões de reais, apesar da crise. Vamos deixar um volume respeitável de obras licitadas e licenciadas. Hospitais, CEUs, piscinões. Mas isso tudo foi omitido. Quem determina a pauta de discussão na cidade não é o poder público.
Mas a periferia não escapa da influência desses meios de comunicação?
Ao contrário. A população mais afetada pela radiodifusão vive nas periferias. Muitas emissoras de rádio e tevê tinham candidato próprio.
O senhor tem disposição de concorrer em outras eleições?
Sim. Não desanimo, por uma simples razão: temos o melhor projeto para São Paulo e para o Brasil. Amo este País. Não preciso necessariamente ser cabeça de chapa. Se tiver fé no projeto, o abraçarei. Quando Lula assumiu a Presidência da República, fui para Brasília em um cargo de terceiro escalão. Trabalhei com entusiasmo, virei ministro. Disputei uma eleição e virei prefeito.
O senhor imaginava que poderíamos chegar a este ponto? O Brasil parecia ter encontrado um caminho e, de repente, tudo se perdeu.
Desde 2006, tenho testemunhas, expus reiteradamente a minha preocupação com o crescimento de certo ressentimento no País. Os ricos terem ficado mais ricos e os pobres menos pobres gerou nas classes médias tradicionais um sentimento de não pertencimento ao projeto em curso. Como se seus privilégios históricos tivessem sido comprimidos.
Via um caldo de cultura que poderia, como foi, ser instrumentalizado por quem combatia o projeto do PT. Parece existir no DNA da classe média e das elites um determinado comportamento: só se admite o progresso geral se as distâncias relativas forem mantidas.
Casa-grande e senzala, como diz Mino Carta.
Sim, por aí. Está no imaginário.
O trágico é que o PT foi derrotado pela bandeira do combate à corrupção, tão cara ao partido no passado.
Entendo a indignação com a corrupção. Modestamente, o trabalho de combate à corrupção na prefeitura de São Paulo foi exemplar. Recuperamos mais de meio bilhão de reais desviados dos cofres públicos, uma enormidade para uma cidade. Só desconfio da indignação seletiva. Talvez a moralidade, a ética, não seja o que move realmente esses cidadãos.
Seria o antipetismo?
Sempre achei que interessaria à elite esclarecida ter um partido como o PT, de centro-esquerda com viés trabalhista. Ele adensa o centro, é democrático, estimula a modernização capitalista por conta de sua agenda. Não compreendo esse esforço para salgar o solo por onde o PT passou. Por que a destruição desse campo traria algum benefício e não o retrocesso, inclusive para as classes proprietárias?