Lá se vão quase 28 anos. Lula disputava sua primeira eleição para presidente, em 1989. Começava a crescer nas pesquisas, indicando que poderia chegar ao segundo turno. Sua coordenação de campanha priorizava atividades em bairros populares do Rio. Depois de um comício em Campo Grande semanas antes, chegara a vez de o candidato operário falar para os proletários da Vila Kennedy, também na Zona Oeste.
Jovem e entusiasmado militante do PT, eu estava lá dando uma mão na organização do comício. Tudo tinha a marca do improviso típica dos primeiros anos do PT. Faltava dinheiro para a estrutura do evento, mas sobravam força, energia militante e compromisso político-ideológico com o partido.
Todo mundo fazia de tudo um pouco, de panfletagem no bairro convocando para o comício ao transporte de caixas de som sobre os ombros, passando pela construção do palanque. Dirigentes e militantes de base em mutirão davam conta do recado. A tarefa era facilitada porque entre os ativistas não faltavam eletricistas, marceneiros, técnicos de som, engenheiros, etc.
Mais para o fim da tarde, com os preparativos adiantados e tudo praticamente em ordem, eis que o bravo Espinoza, um gigante de quase depois metros de altura e doçura, dublê de militante de primeira hora do partido e segurança do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, me aborda para uma "missão" : dona Marisa queria tomar uma caipirinha, mas, além de não conhecer o bairro, é claro, precisava ser acompanhada por gente de confiança.
Como tomar umas e outras para mim, desde jovem, nunca foi sacrifício, imediatamente me prontifiquei. Acompanhado pelo meu irmão Luiz e pelo amigo Alieso, lá fomos nós junto com a futura primeira-dama em direção a um dos muitos botecos simpáticos do bairro. Espinoza destacou um outro rapaz que trabalhava na segurança com ele para dar plantão na porta do botequim, para nos alertar em caso da chegada inconveniente da imprensa.
Entre caipirinhas e cervejas, a conversa engrenou de uma forma tal que o próprio Espinoza, de repente, entrou esbaforido bar adentro para nos resgatar, lembrando que o comício estava prestes a começar e o"baiano" estava cobrando a presença de sua "galega" no palanque. Corremos para a praça do comício, onde lideranças do PT e da Frente Brasil Popular já se revezavam nos discursos.
Essa conversa de bar me fez guardar para sempre as melhores das impressões daquela mulher de origem popular, que irradiava simpatia e bom humor, e demonstrava dedicação total à causa da construção do PT. Ali, tantos anos antes de seu marido se tornar presidente da República, ela já dava todos os sinais de que seria seu sustentáculo essencial, como esposa, companheira, conselheira, mãe e avó, para que Lula se transformasse no maior líder de massas do país.
Lembro que ela se dizia um tanto quanto assustada com a rápida ascensão política do Lula, se queixava do pouco tempo que restava para seu convívio com ela e os filhos, mas entendia perfeitamente que aquele era um caminho sem volta e que valia o sacrifício em nome da classe trabalhadora e de um Brasil melhor para todos.
Mal podia imaginar Dona Marisa Letícia da Silva que décadas depois ela tombaria vítima de juízes que não honram suas togas, de procuradores e policiais federais que traem suas funções públicas e de uma imprensa criminosa, que inoculou ódio no organismo da sociedade. Esse consórcio golpista caça seu marido de forma infame, ataca a ela e seus filhos sem tréguas, invade sua casa, viola seu direito à privacidade e à intimidade.
A morte de Dona Marisa não tem nada a ver com fatalidade. Seu aneurisma não estourou por acaso. Ao lado da dor enorme causada pela perda de uma das boas filhas do povo brasileiro, pego, como consolo, carona em uma frase de um artigo do combativo jornalista Leandro Fortes : "na hora certa, daremos o troco."