Uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo e divulgada no fim de março foi muito discutida nas redes sociais e serviu para interpretações diversas na mídia tradicional. Intitulado Percepções e Valores Políticos na Periferia de São Paulo, o levantamento qualitativo foi baseado em entrevistas em profundidade e grupos focais, revelando um pouco da forma de pensar de moradores da periferia paulistana.
A partir da divulgação do estudo, veículos comerciais se apressaram em dizer que "a periferia é de direita", que ali estava demonstrado o "fracasso do projeto do lulopetismo" ou que o estudo questionava o discurso embasado na dicotomia "ricos contra pobres". O fato é que essa polarização política, demonstrada pela própria mídia tradicional, não faz parte do imaginário da periferia. Trata-se de uma realidade bem mais complexa do que sugerem os títulos assertivos e conclusões precipitadas.
O professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), cientista político e economista William Nozaki, que fez parte da equipe que elaborou a pesquisa, analisa alguns aspectos do estudo e aponta para os riscos que a polarização atual traz. "Na periferia de São Paulo, já temos um déficit de equipamentos e serviços públicos, quando você soma a esse déficit um clima político muito polarizado e sinaliza mais uma autopreservação da classe política do que a construção de um projeto de sociedade, as pessoas se afastam", avalia. Confira a entrevista com William Nozaki.
A pesquisa indica que moradores da periferia estão identificados com alguns valores liberais como lógica de competição, mérito e individualismo. Por outro lado, reconhecem o papel do Estado no desenvolvimento de algumas políticas públicas, ou seja, não são pessoas que professam nem o liberalismo econômico clássico, nem o neoliberalismo. Como definir esse tipo de orientação identificada no estudo?
No momento antes da crise, quando houve a ampliação do mercado de trabalho e do mercado de consumo, as pessoas passaram a ser incluídas e a experimentar um pouco o que era ter cidadania, ainda que por meio do consumo, de uma maneira intensa e, para alguns desses setores, inédita. No momento em que temos a reversão do ciclo econômico, essas pessoas passam a sentir o impacto desse recuo. Isso vai criando um ambiente marcado por valores ambíguos e paradoxais. No fundo, esse grupo social, como experimentou a cidadania e o consumo, passou a ter a autoestima elevada, auto respeito, passou a desejar o direito de construir a própria biografia de maneira autônoma.
Isso cria uma noção de individualidade diferente da que existia até aquele momento, porque as pessoas passam a se entender como cidadãos. E como cidadãos passam a se ver como indivíduos que querem ter a chance, a oportunidade, de construir a própria vida. Isso cria uma abertura para a inoculação de valores marcados pela presença do empreendedorismo, da competição, mas não no sentido neoliberal, e sim no sentido de ter o direito de construir a própria trajetória de vida. Passa mais por aí do que por uma lógica de competição exacerbada, ou de vitória da livre concorrência de mercado. É mais a construção de uma noção moderna de indivíduo.
Existe uma crítica recorrente em relação ao que se convencionou chamar "inclusão pelo consumo", de que ela não veio acompanhada de um empoderamento político ou de uma maior conscientização. Como você vê essa questão?
Acho que tem dois fatores conjugados, uma inclusão no mercado formal de trabalho e uma inclusão no mercado de consumo. Há que se diferenciar o que é o consumo do que é o consumismo. Quando a gente conversa com essas pessoas, elas acessaram o mercado de consumo para comprar bens duráveis, essencialmente eletroeletrônicos e eletrodomésticos. Isso me parece que está muito mais ligado ao desejo de melhora na qualidade de vida e bem-estar do que propriamente a um consumismo exacerbado. Quando classificamos essas pessoas de consumistas, de maneira equivocada, isso diz mais sobre a classe média que está olhando para elas do que sobre o que elas próprias estão pensando. Na verdade, essas pessoas acessaram um mercado que a classe média já desfruta desde que foi estruturado, mas que agora passa a acolher uma fatia da população que antes não era o seu público.
É como se parte da classe média pensasse que tem uma relação de consumo muito diferente desse segmento que ascendeu. E não tem...
É muito difícil você classificar como "consumista" uma dona de casa que fez um crediário para comprar uma máquina de lavar. A gente encontrou exemplos muito curiosos na pesquisa, e teve uma mulher que me chamou muito a atenção. Ela trabalha, tinha dificuldade para encontrar alguém que cuidasse da filha e assinou a TV a cabo com uma parte de recursos do Bolsa Família, porque era o único jeito de ela conseguir manter a filha em casa, deixando a TV ligada o dia inteiro no Cartoon Network. Uma forma que ela encontrou para lidar com um problema relacionado à falta de creches. Não dá para classificar isso como consumismo. Na verdade, as pessoas estão tentando buscar alternativas para organizar sua vida e, evidentemente, em uma sociedade de mercado, essas alternativas vão passar pelo trabalho e pelo consumo.
Falando ainda dessa diferença entre segmentos socioeconômicos, existe uma intensa polarização político-ideológica, que se reflete nas redes sociais, em especial, mas aparece também em outros ambientes, em setores da classe média. Já na periferia esse elemento está ausente, de acordo com os resultados da pesquisa. Porque ocorre esse distanciamento entre segmentos sociais?
Isso tem a ver com a maneira como a classe média tem medo de compartilhar seus espaços com pessoas, que muitas delas tratam como indesejáveis, nas filas dos bancos, nos corredores de shoppings, nos terminais de aeroportos. Isso causou um desconforto porque a classe média perdeu seu monopólio de privilégios e passou a ter que conviver com outro público com o qual não estava acostumada. Agora, esse grupo que passou a frequentar esses espaços, essas camadas populares que acessam espaços antes não frequentados por elas, enxergam com muita desconfiança a polarização na arena político-institucional, e isso vai criando um afastamento cada vez maior desse setor das instituições políticas. Na periferia de São Paulo, já temos um déficit de equipamentos e serviços públicos, quando você soma a esse déficit um clima político muito polarizado e sinaliza mais uma autopreservação da classe política do que a construção de um projeto de sociedade, as pessoas se afastam.
E isso é um risco.
Sim. E minha impressão é que quanto mais intensa fica a polarização no cenário político brasileiro, mais distante a política institucional fica do tecido social. Os entrevistados não conseguem se enxergar refletidos nas discussões que estão sendo feitas pelos políticos brasileiros.
Em relação ao tema da corrupção, que permeia o debate político brasileiro e está dentro desse contexto de polarização. Essa questão é vista de forma diferente na periferia ou é um ponto de contato em comum com a camada média?
No caso da periferia, é curioso observar que ela foi impactada pelo modo com que o debate sobre corrupção foi feito no Brasil, pela maneira como a grande imprensa vem tratando este problema, de forma parcial e seletiva. Isso tudo vai alimentando essa desconfiança e criando esse afastamento em relação à vida política, mas é curioso observar que nessa camada da população, quando eles enxergam políticas públicas, equipamentos e serviço concretos nos bairros, isso é mais determinante para a formação da opinião deles do que o debate feito pela mídia sobre corrupção, por exemplo. Quando a vida real mostra que a política é efetiva, isso é muito mais significativo que o debate tal como acontece na grande imprensa. Mas claro que essas pessoas também são impactadas, assim como a classe média.
Como existem necessidade mais prementes para quem mora na periferia, essas políticas impactam de forma diferente.
Exatamente. E essas necessidades mais prementes, como você diz, também despertam elementos curiosos que muitas vezes as pessoas vocalizam em uma fala, em um discurso, mas a prática é outra. Vou dar um exemplo concreto. Casos de famílias evangélicas que, por conta da religião, tem um discurso de maior resistência ao público LGBT, mas havia situações onde essas senhoras evangélicas não tinham onde deixar os filhos, e o vizinho gay ficava com as crianças. Então a necessidade concreta cria vínculos de solidariedade que muitas vezes nos parecem contraditórios com aquilo que é dito, mas a realidade é a prova dos nove.
Essa necessidade concreta é também um dos fatores que explica a força das igrejas neopentecostais na periferia?
Sim. E aí tem dois vetores que chamam a atenção. O primeiro é a presença da teologia da prosperidade, que em certa medida estimula uma lógica mais individual em termos de visão de mundo, mais permeável pela lógica da acumulação, mas ao mesmo tempo essas pessoas não podem ser tratadas como evangélicos alienados que sofreram lavagem cerebral por parte de pastores mal-intencionados. É mais complexo do que isso.
Na verdade, existe um enraizamento das igrejas evangélicas e neopentecostais muito grande nos bairros mais pobres da cidade, uma capilaridade muito intensa. A própria dinâmica da realização do culto sofreu mudanças que fazem com que os cultos evangélicos sejam para eles mais acolhedores do que outros. Algumas igrejas passaram a se organizar em forma de células, as próprias casas das pessoas servem como espaço para realização de cultos, isso vai criando uma série de vínculos e de proximidade entre elas e a igreja, fazendo com que ela seja ao mesmo tempo acolhedora e prestadora de serviços que o Estado não pode suprir.
Ouvimos muitos relatos de pessoas dizendo que gostavam de ir à igreja porque foi ali que o filho aprendeu a tocar guitarra, a irmã aprendeu a cantar no coral, onde se descobriram amigos, namorados e namoradas... A igreja tem um papel organizativo, mais do que teológico, fundamental para a construção desses laços. E no fundo a igreja neopentecostal, nesse sentido, ocupou um espaço que nos anos 1980 era o espaço das comunidades eclesiais de base, na verdade, a lógica é muito parecida. Fiz até um exercício de comparar o estudo que o Eder Sader faz nos anos 1980, sobre a periferia de São Paulo, publicado no livro "Quando novos personagens entraram em cena", e tem uma parte que fala das comunidades eclesiais de base. Os relatos que ele transcreve no livro são muito próximos dos relatos dos neopentecostais que entrevistamos na periferia. No fundo, a igreja está suprindo uma carência de serviços e afeto que nenhuma outra instituição supre. Como ela está presente de fato, isso cria laços e vínculos muito sólidos.
Ainda mais quando se tem falta de equipamentos públicos na periferia.
Em muitos lugares onde não se tem equipamentos culturais ou um déficit muito grande nessa área, a agenda de encontros de jovens nas igrejas é o que vai suprir isso.
Existe uma questão de reconhecimento e identidade também, não? Muitas vezes o pastor é da própria comunidade, não alguém que veio de fora.
Existe uma rotatividade muito grande entre as igrejas, e aquelas que têm mais sucesso em fixar os fiéis são justamente aquelas onde os pastores fazem parte do bairro, estão presentes na comunidade, são laços reais construídos cotidianamente. E é muito curioso porque eles têm uma leitura de nós, da esquerda, como pessoas que os enxergam de maneira pejorativa, eles têm ciência disso. Isso ficou muito claro na pesquisa em uma bateria de perguntas específicas sobre o dízimo. Tem uma parcela da esquerda que faz uma leitura superficial e que vê o pagamento do dízimo como o resultado da "lavagem cerebral" que o pastor fez no fiel. E é muito curioso porque na construção dos discursos deles, muitas vezes dizem o seguinte: "eu prefiro pagar os 10% de dízimo e da oferta da igreja, que vai ter a escolinha pro meu filho, o coral pra deixar minha filha, do que deixar o imposto pro Estado, que não vai me oferecer serviços e equipamentos adequados. Estabelece uma conexão mercantil entre imposto e dízimo, existe um cálculo racional nisso.
O importante de fazer pesquisas como essa é dar voz para compreender as pessoas com as quais deixamos de lidar cotidianamente. E essas pessoas também têm opinião sobre nós, organizam sua visão de mundo para dar sentido a sua trajetória de vida. E fazem isso não de maneira alienada ou fetichizada pura e simplesmente, existe uma racionalidade. Muitas vezes não é aquela que a esquerda gostaria, mas existe uma racionalidade presente ali.
Parece que a esquerda perdeu um pouco desse contato com a periferia e quando parte dos militantes tenta organizar comitês ou outros tipos de coletivos ali muitas vezes exercem um papel semelhante quase ao de um catequizador.
Tem alguns militantes de esquerda que se comportam de maneira mais doutrinária do que os pastores que eles criticam.
Outro dado interessante que é como os pesquisados enxergam a si mesmos e como veem os patrões, sob uma ótica não da lógica da exploração, mas como se ambos estivessem no "mesmo barco". A que você atribui isso?
A gente sabe que as pessoas se ocupam da sua subsistência, de suas necessidades cotidianas e por conta disso tendem a enxergar o empregador, o patrão, o gerente, o diretor do lugar onde trabalham como parte de um processo de inclusão no mercado de trabalho, de construção da cidadania. Ainda que haja contradições entre os interesses de patrões e empregados, há uma sensibilidade por parte deles que faz com que eles enxerguem mais uma relação de necessidade e complementaridade do que de oposição. Isso porque as pessoas precisam sobreviver.
Não é uma opção ideológica.
Não, é uma necessidade concreta que acaba sendo externalizada desta forma. É importante ressaltar o fato de que no caso da periferia de São Paulo, aparece uma proeminência mais intensa dessa dinâmica do empreendedorismo e do mérito, que também vai alimentando essa aproximação da visão que ele tem de si e do patrão como pares, enfrentando desafios parecidos. Mas temos a impressão que isso é mais notório por se tratar da periferia de São Paulo, não pode ser imediatamente generalizado para as periferias de outras cidades. Há uma dinâmica muito forte da construção de cidade, da maneira como as pessoas têm relação com o território, o trabalho, e como internalizaram essa lógica de que São Paulo é a cidade das oportunidades, do esforço, e isso também se mistura na visão que elas constroem de si mesmas e dos outros.
E também existe uma aparente contradição já que, ao mesmo tempo em que enxergam o patrão como parceiro, as pessoas querem ser empreendedoras, ser "seu próprio patrão".
Muitos desejam abrir o seu negócio, externalizaram na pesquisa que gostariam de trabalhar por conta própria ou preferiam ser autônomos, e isso está ligado a um desejo de construção de si próprio mas também a uma carência da presença do Estado nessas regiões porque quando a gente começa a olhar com mais fineza para as justificativas que as pessoas dão pra isso, são muito legítimas. Eles dizem o seguinte: quero montar o meu próprio negócio pra ficar mais perto de casa, porque o lugar em que eu trabalho exige que pegue dois, três ônibus e isso me custa três, quatro, cinco horas por dia. Quero ter meu próprio negócio porque quero levar meus filhos comigo, porque não tenho onde deixar quando saio pra trabalhar. São questões práticas, um desejo de autonomia por trás desse empreendedorismo.
O mesmo tipo de questão prática que muitas vezes leva uma pessoa que mora na periferia a querer comprar um carro e encurtar a distância da casa para o trabalho, ou fazer o trajeto de forma mais confortável.
Criticar um cidadão que mora em Parelheiros, no Campo Limpo, em Santo Amaro e que trabalha no centro, e deseja comprar um carro... Como criticá-lo por isso? É difícil.
E como essa visão da relação patrão/empregado afeta a organização da luta social na periferia?
Para responder a essa pergunta precisamos considerar o momento em que foi feita a pesquisa. Nós fomos a campo em dezembro e janeiro, e visualizamos um momento onde a preocupação com a crise econômica era muito evidente. Essa preocupação estreita algumas relações de solidariedade. Os empregados ouvem o tempo todo ameaças de redução salarial, de demissão, mudança no contrato de trabalho, e vai sendo criado um clima de insegurança e uma solidariedade com o patrão, que está reclamando da crise por conta dos altos impostos, da ineficiência do governo, e isso vai sendo incorporado no discurso dos empregados.
Entre culpar o patrão e o governo pela crise...
Culpa-se o governo. Sobretudo nesse ambiente que estamos experimentando no Brasil de criminalização da política e dos políticos. Quando se juntam essas duas forças, a criminalização e a judicialização da política e a crise econômica, vai-se criando um cenário muito propício para estimular essa visão de mundo.
E dentro dessa discussão a pesquisa mostra também figuras antagônicas como Lula e João Doria sendo admiradas como self-made man. Os políticos ditos "novos" podem explorar esse tipo de imagem?
Não só pode como a última eleição municipal nos deu um exemplo concreto disso com a vitória de Doria no primeiro turno, com a construção de um discurso falso, sintetizado no mote da campanha, que era o "João Trabalhador". Essa ideia de ascensão social pelo esforço pessoal e pelo mérito ganha muita força a partir do momento em que essas pessoas passam a se enxergar como indivíduos que desejam autonomia. Por isso elas aproximam figuras tão díspares como Lula e Doria.
O Doria porque conseguiu, numa campanha eleitoral, construir uma falsa imagem de que era um empreendedor, não um herdeiro como de fato é, da família Costa Doria, donatária de capitanias hereditárias na Bahia. Mas essa construção da ideia do João Trabalhador se aproxima da trajetória do próprio Lula, que era um operário que se tornou presidente da República. Por isso inclusive as pessoas têm dificuldade de entender porque, mesmo apanhando e sendo criticado, o ex-presidente ainda mantém um capital político e eleitoral muito significativo. A biografia dele é de sucesso, um operário que virou presidente. Independente do projeto político que ele apresente, das posições que ele tem, encarna um exemplo de ascensão social e de sucesso, isso é muito importante para as pessoas.
Pela pesquisa, podemos inferir uma influência da mídia tradicional entre as pessoas da periferia ou isso não é tão palpável.
A gente percebe, a influência da mídia tradicional é muito significativa, nós ouvimos muitos relatos sobre como as pessoas, quando encontram notícias nas redes sociais das quais desconfiam, apostam na Globo e na Record como fiel da balança para averiguar se é verdade ou não. Essa mídia tem uma presença muito forte ainda.
Mas, como disse antes, essa presença é hegemônica não é blindada. Existem frestas para combater o discurso da grande mídia que passam pela presença concreta de políticas públicas no território. Quando eles enxergam os equipamentos e serviços funcionando, isso vale mais do que o que é dito pela mídia. Mas ela ainda forma opinião e é responsável por inocular, na visão de mundo dessas pessoas, a dinâmica de que o Estado brasileiro é ineficiente, de que os políticos são criminosos, e que os poderes precisam ser judicializados.
Um ponto do levantamento diz respeito à importância do conceito de família para as pessoas que moram na periferia paulistana. Como isso interfere na formação dos laços sociais e no próprio pensamento político delas?
Primeiro, é importante observar que, como essas pessoas vivem em uma situação de muita dificuldade e muito risco, a família é sempre o esteio para se ter um mínimo de segurança e poder organizar a trajetória de vida. A segunda coisa importante a se observar é que a noção de família que essa camada da população tem é mais dilatada, não é no sentido parental-consanguíneo, mas no sentido ampliado que inclui os vizinhos, os amigos, pessoas que ajudam a enfrentar os desafios do cotidiano. Isso passa a ser um elemento muito forte na construção da visão de mundo deles e cria um afastamento em relação às formulações mais tradicionais de esquerda porque eles tendem a perceber a esquerda como aquele conjunto de pessoas que não respeita a religião, a família, nem a trajetória de ascensão individual. Isso impacta a maneira como se enxerga a política.
Mas também tem uma rejeição a valores da direita, quando se pensa no liberalismo clássico, no neoliberalismo, ou mesmo, como diz a pesquisa, a valores do espectro conservador, como a homofobia presente no discurso de alguns pastores, por exemplo.
A realidade concreta faz com que eles precisem viver em contato com essas pessoas. Quando fizemos as entrevistas, era muito comum os evangélicos dizerem "se você me perguntar se gay é ‘de Deus’, vou dizer que não. Mas meu vizinho é gay e temos uma ótima relação, ele me ajuda a cuidar das crianças, da casa, então eu aceito". E as pessoas constroem a justificativa de aceitação na própria Bíblia, aceitam porque a solidariedade é um valor cristão. Andam em uma linha tênue entre uma visão de mundo mais tradicional e outra mais acolhedora.