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Dilaceramento tático e crise estratégica

Ago 17, 2017

Por Ion Andrade, no GGN                                                                                                             

 

O cenário incerto do curto prazo vem submetendo a esquerda a um jogo de tensões que torna difícil optar por uma alternativa unitária para enfrentar o governo ilegítimo. Vão e vêm as propostas de Fora Temer e Diretas Já e de Anulação do Impeachment e Volta Dilma. Porém o que parece despudoradamente consolidar-se é a permanência de Temer até 2018, o que nos obriga a um exaustivo enfrentamento do governo zumbi, indiferente às ruas, alimentados quase que unicamente pela hipótese Lula.
Esse cenário de incertezas contribui também para a permanência de Temer fato que vai nos levando para a quarta fase do luto como o vê Elisabeth Kubler-Ross, a depressão. Aos interessados, há muita coisa sobre as fases do luto de Elisabeth Kubler-Ross na internet.

Nessa fase depressiva, o grosso da elaboração da esquerda vem se concentrando em dois temas principais: a atualização quotidiana das péssimas notícias advindas do golpe, associada a uma análise verdadeiramente apocalíptica sobre o Brasil e a crítica aberta e ou sob manto de análise da ausência do povo da grande arena cívica das ruas. Depreende-se desse nosso depressivo momento, em suma, a verdade (objetiva) de que as coisas vão de mal a pior em todas as áreas, o que se vê agravado pelo fato de que o principal interessado, o nosso povo, parece estar, conforme a melhor opinião da esquerda, francamente desinteressado de tudo o que arruína o que de mais sagrado há.

A esse dilaceramento tático que se soma ao luto em sua fase depressiva e que nos acomete a todos, nos acrescentamos uma crise estratégica. Essa crise estratégica já havia mostrado o rosto desde o fim do primeiro governo Dilma quando discutíamos fartamente a incapacidade do governo de dar o ”passo seguinte” às políticas de enfrentamento da miséria e das desigualdades com algo inovador, algo que fosse capaz novamente de produzir coesão política de amplos setores da sociedade e repor as engrenagens em marcha rumo a um novo ciclo de politização, bem estar e participação social.

Esse estrangulamento estratégico, não superado, atingiu o seu paroxismo nas jornadas de junho de 2013 que emergiram como um insondável mal-estar, uma mescla de aspirações legítimas do povo e de degenerações fascistas, a esfinge mítica do totalitarismo, metade gente, metade fera, semente do Estado arbitral fascista. Com um “decifra-me, ou te devoro”.

Como remediar a crise estratégica sem modelos de transição ao socialismo e ouvindo os cantos de sereia do país de classe média de Mercadante?

Da cartola então surgiu, não a primeira flor de uma nova era, mas a última e bonita flor do Lulismo, o necessário, embora tardio, Programa Mais Médicos.

Esse tardio programa encerra, com chave de ouro, as políticas de combate à pobreza e à desigualdade, desempenhando um papel crucial de garantia de acesso à atenção básica. Assim caracterizado, entretanto, uma vez implantado pôde mostrar que a pergunta sobre o que fazer nessa segunda fase continuava sem resposta.

Surpreendentemente, enquanto vivíamos nós entalados com essa indigestão teórica que nos fez incapaz de partir para um arremate do Projeto de Sociedade em gestação; o nosso povo continuava mergulhado na pobreza, talvez não mais a mesma pobreza na renda, mas a pobreza do país violento, horroroso para os pobres e sem perspectivas: o pão nosso das maiorias.

Não fizemos a revolução nas periferias, como clamou a Carta de Natal dos movimentos sociais, não tivemos nesse cenário estratégico para nós um PAC que atualizasse a vida dessas comunidades trazendo-as ao menos para o século XX. Esse abandono do Projeto de Sociedade nas periferias em função de uma emancipação pela renda e pelo estudo, fortaleceu naturalmente valores meritocráticos nessas comunidades, afinal, vamos entender, é humano, é melhor pensar que o sucesso material é mérito próprio de uma vida de lutas, sacrifícios e dificuldades, do que um fenômeno econômico, que arrastou 40 milhões.

A agenda estratégica do século XX, na qual o povo brasileiro foi vitorioso, porque saiu d’”O Menino morto” de Portinari, para o SUS, foi a da Sobrevivência, que Lula tão bem soube interpretar, ao arrepio de uma certa esquerda que considerava matar a fome despolitizador. A do século XXI será a da emancipação política, da dignidade, da vida interior, da cultura, da estética e de tudo que dá sentido à sobrevivência e à vida. Deverá dar alcance e sentido às lutas pela sobrevivência que marcaram o século XX. É esse processo que produzirá em massa o surgimento de uma cidadania ativa e consciente, (a classe para si) capaz de estabilizar a democracia e permitir que continue avançando. Se apenas por solidariedade já se justificaria,, emancipar as periferias significa posicionar o povo de forma forte e numerosa no cenário dos enfrentamentos que dependerão do seu insubstituível protagonismo.

O último artigo de José Dirceu, (clique aqui para ler) importante aliás, faz uma análise de conjuntura amarrada a um horizonte estratégico próximo, 2018. Ele pauta a volta ao poder e a eleição de Lula. Essa importante reflexão que sai do oito depressivo (tudo está péssimo e o povo não faz nada) e é propositiva, não cai na armadilha do curto prazo, pois enuncia tangencialmente os horizontes mais longos, mas não detalha. Entretanto, a questão que nos falta responder de forma aprofundada, é o quê e como fazer esse “depois” do longo prazo.

Precisamos portanto de uma agenda orgânica para o longo prazo, necessidade que não perde importância sequer na hipótese otimista de sermos vitoriosos no horizonte tático. Mesmo que elejamos Lula, (e ainda mais se não o elegermos), continuamos a ter imensa necessidade de uma agenda de médio e longo prazos que possamos construir ao longo do tempo num esforço coletivo do nível nacional ao municipal, nas periferias e zonas rurais e que rompa com a ditadura do curto prazo que está enlouquecendo e entristecendo a toda a esquerda e fazendo-a por impaciência afastar-se ainda mais do povo.

Recentemente a Frente Povo Sem Medo propôs uma discussão coletiva nacional em torno de temas estratégicos para o Projeto de País (clique aqui para ver). Independentemente do fato de que no horizonte tático diversos componentes dessa frente talvez não venham a apoiar Lula no primeiro turno, a metodologia da discussão coletiva de problemas complexos, que demandarão tempo e lutas para encontrar solução inova no sentido de calibrar a bússola para os grandes nortes consensuais que haveremos de definir.

Temos que passar para a quinta fase do luto de Elisabeth Kubler-Ross. A que permite enfrentar a perda com serenidade.

Nos empenhemos para eleger Lula, vamos fazer o nosso melhor para protegê-lo da sanha fascista. Mas vamos entender que Lula está no arco do curto prazo. Mesmo com ele precisamos saber para onde vamos.

Mas o arco do longo prazo funciona como o norte de uma bússola. Uma estrela que parece fixa. A ela chegaremos por múltiplos caminhos e devemos entender, sejam quais forem as circunstâncias.

A ideia da revolução das periferias, da superação da dicotomia Casa Grande & Senzala, de trazer o povo à contemporaneidade e de politizá-lo pode ser construída em cada prefeitura ganha para essa causa, em cada associação de moradores, em cada escola e em cada sindicato.

Precisamos de um projeto que nos permita construir noite e dia, de verão a verão.

Não nos iludamos, essa luta é secular.

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