“O ministro Luís Roberto Barroso manifestou-se, ontem – como se fosse o maior absurdo – , contra o cumprimento da determinação constitucional de que um parlamentar só possa ser preso (e pode, em flagrante) sem autorização do Poder Legislativo.
Já seja um paradoxo um “guardião da Constituição” levanta-se contra o que está expresso nela, há mais.
Na cantilena do fim do fim da prerrogativa de foro – que malandramente é chamado de foro privilegiado – esconde-se uma demagogia que visa manietar qualquer governo que este país venha a a ter e que, eventualmente, represente a vontade popular.
Quer uma prova?
Sem privilégio de foro, qualquer juiz de comarca – milhares em todo o país – pode acolher queixa ou denúncia pessoal – cível ou criminal – contra o Presidente da República, ministros de Estado, senadores, deputados.
Não escrevo para fazer demagogia fácil, “democratista”. A mim importa ajudar a refletir e escapar do ensurdecedor canhoneio do “senso comum”, que não é outra coisa que o trovejar da mídia.
Não numa ação contra ato que ele pratique, decreto que emita, não. Isso pode ser feito, não há reserva de foro. É de ação pessoal que se fala. Qualquer grupo pode se organizar, por exemplo, para apresentar queixas idênticas em diversos pontos do país, por malandragem.
Duvida? Procure saber como fizeram os senhores juízes do Paraná, submetendo os jornalistas que denunciaram a farra dos auxílios-moradia a uma maratona massacrante de audiências impetrando ações em municípios remotos do interior do estado..
Juízes, vejam, juízes.
Agora pense o quanto é de holofotes e mídia para um delegado de Cambirilândia, um promotor de Jassinuaba do Norte e um juiz de Tranquilópolis do Sul com a oportunidade de decretar, sem pé nem cabeça, uma busca e apreensão dentro do Planalto. Pois precisou de pé ou de cabeça para a dona juíza lá de Paulínia para mandar invadir o apartamento do filho do Lula (ou o meu, ou o seu) porque algum anônimo denunciou um “movimento” que só poderia significar tráfico de drogas e armas, simplesmente porque quis.
O privilégio de foro não é uma proteção ao homem – tanto que cessa quando deixa o cargo – mas à função.
Agora, se o doutor Barroso fala sinceramente quando defende a extinção do foro privilegiado, deveria dirigir suas baterias contra o artigo 102 que diz que cabe privativamente ao STF julgar seus próprios Ministros.
Sim, isto mesmo: até mesmo se um ministro tomar umas e outras e atropelar alguém, vai ser julgado apenas por seus pares, pela sua “tchurma”, não por outro poder, como membros do Executivo e do Legislativo.
E como seu cargo é vitalício e o exercício, com a chamada “PEC da Bengala”, vai até os 75 anos, é privilégio para a vida inteira.
Para os outros é bom, não é, Dr. Barroso? Veja que beleza para um juiz de comarca mandar prender o Presidente do Supremo. Ou, mais na moda, coloca-lo sob “recolhimento domiciliar noturno”…
O desvio do foro privilegiado é sua distorção política, que assistimos há muitos anos, desde que o “mensalão tucano” foi para as calendas, enquanto seguia o chamado mensalão petista.
O ódio, a histeria e a simplificação barata costumam ser, em política e em todas as coisas, os piores conselheiros. Fazem-nos apoiar autoritarismos que, na aparência, são moralizadores mas que, legitimado, logo se voltam contra as forças populares, como armas para destruir a representação popular.
A origem do privilégio de foro moderno, como temos aqui – e que separa pessoa da função vem da Constituição Americana de 1787, só admitia a função ou do cargo para determinar o foro de julgamento e não mais os privilégios pessoais, em virtude da classe na qual provinham as pessoas.
A imunidade parlamentar moderna é ainda mais antiga, da Revolução Gloriosa, que pôe fim ao absolutismo monárquico da Inglaterra e o Bill of Rights, que estabelecia aos representantes eleitos a proteção de dois princípios: a freedom of speach (liberdade da palavra) e a freedom from arrest (imunidade à prisão arbitrária).
Seu sentido é, portanto, absolutamente progressista e democrático, retirando poder do Rei, até então o grande juiz, contra o qual nada se podia.
Nada mais de “L’Etat c’est moi”, que o ministro Celso de Mello traduziu ontem polo “a Constituição é o que o Supremo diz que é”.
Vencer uma eleição para presidente é possível, já o vimos. Vencer uma eleição parlamentar, ainda que mais difícil, não é. Mas ter ao lado do povo um poder judiciário, formado por – salvo exceções – uma elite mais capaz em concursos que em princípios, sem espírito público e com apetites insaciáveis de projeção e poder, cioso do bem-estar público e que dispõe de um poder quase ilimitado, é virtualmente impossível.
Quem quiser saber o que significa deixar que os personagens dos poderes caiam às mãos de qualquer juiz, olhe para Sérgio Moro.
E olhem como a direita nem precisa se precaver, porque “não vem ao caso” e, se vier, desqualifica o juiz com o apoio da mídia.
Vão entregar a democracia brasileira – ou o que resta dela – na mão de transtornados, furiosos, descontrolados, Simãos Bacamarte que, ao contrário do personagem machadiano, não conseguem afinal perceber que a loucura está neles próprios.