O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva promoveu uma conversa pública com os ex-presidentes José Pepe Mujica, do Uruguai, e Dilma Rousseff. Sentados no centro da Praça Internacional, que marca a fronteira entre a cidade uruguaia de Rivera e Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, os três foram acompanhados pelo ex-presidente do Equador, Rafael Correa.
O local tinha ainda presentes dois ex-governadores gaúchos, Olívio Dutra e Tarso Genro, e vários parlamentares. Estudantes, agricultores, trabalhadores locais e de outras cidades enchiam a praça. As conquistas sociais e econômicas alcançadas pelos governos da região e os ataques sofridos, sobretudo no Brasil e na Argentina, foram assuntos do encontro.
Mujica, que hoje ocupa uma cadeira no Senado e compõe a base do governo da Frente Ampla no Congresso, conseguiu eleger seu sucessor Tabaré Vázquez em 2014. No mesmo ano, Dilma Rousseff foi reeleita com voto de 54 milhões de brasileiros. No Uruguai, o governo da Frente Ampla é atacado por todos os lados, mas resiste em condições de defender as políticas públicas que criou. No Equador, Correa também elegeu seu sucessor em 2017 – mas acabou rompendo com seu ex-correligionário Lenin Moreno, presidente que promove uma liberalização da economia. No Brasil, no entanto, Dilma foi destituída por um golpe jurídico parlamentar 20 meses depois de tomar posse e o país é onde a marcha do retrocesso, de forma arbitrária, anda mais acelerada.
O uruguaio lamenta que parte dos governos sul-americanos esteja obcecada por um ajuste econômico desprovido de sensibilidade social. "Não se pergunta como está o povo. Esse é um problema. Tem que ter estabilidade econômica, mas tem que se preocupar em distribuir renda. A grande pergunta é: as pessoas estarão mais felizes?"
O cenário atual aumentou o ódio de classes no Brasil, diz Mujica. Para ele, Lula é a liderança nacional capaz de pacificar o país. "Não creio que o embate e o choque contínuo sejam bons para qualquer sociedade. Isso significa aprender a tolerar e negociar tudo que for necessário. O principal é que possamos viver com tranquilidade. Esse parece o desafio de toda a América Latina. Não acredito que se possa avançar com ódio. Com ódio se retrocede", disse, defendendo o direito de Lula disputar a eleição em outubro.
Lula afirma que o atual momento político da América Latina tem a influência dos Estados Unidos. "Na América do Sul, criamos um jeito de fazer política que incomodou. Eles não estavam habituados com que a América tomasse suas decisões econômicas, construir o Mercosul. Fizemos uma política para compartilhar a riqueza que produzíamos. Foi um momento bom para todo mundo, incluindo o Uruguai e Brasil", assinalou.
Dilma observa que a crise econômica e social só cresceu depois do golpe de 2016. "Nós deixamos claro que era um golpe, e ele mostra sua face. Os golpistas aprovaram uma agenda que tinha sido derrotada quatro vezes seguidas. E deu errado. Eles não têm candidatos para continuá-la. Além disso, criaram um monstro: a extrema-direita, que não tinha voto, nem voz. O golpe se auto derrotou."
Mujica pondera que a derrota da esquerda na América Latina é também resultado de seus erros. Ele alerta que se não houver uma firme unidade, dificilmente voltará ao poder tão cedo. "Se brigamos por igualdade, temos o dever de viver como vive a maioria do povo e não como vive a minoria privilegiada. Os partidos de esquerda devem cuidar enormemente da conduta e da vida das pessoas que representamos." E destacou a necessidade de se formarem novas lideranças. "É preciso construir novos lutadores sociais."
O senador uruguaio avalia que os governos progressistas poderiam ter feito mais – tal como Lula reconheceu, na quarta-feira (14), em Salvador, que seus governos ficaram aquém das necessidades do Brasil. "Na próxima vez, teremos que nos juntar porque eles nos querem divididos, atomizados, porque assim somos mais fracos. Temos de entender nossas diferenças e colocar por cima das diferenças as políticas comuns. É a única maneira de ser forte no mundo que vem por aí."
O debate é apenas a segunda parada da caravana de Lula pela região sul do Brasil – que pela manhã visitou o campus da Universidade Federal do Pampa, em Bagé (RS). A bateria de viagens tem eventos programados em pelo menos 19 cidades e passará por Santa Catarina e Paraná, onde termina com um ato público no próximo dia 28, em Curitiba.
A professora aposentada Laura Buzo, de 68 anos, foi à Praça Internacional. Natural do Departamento de Cerro Largo, vizinho a Rivera, ela estava acompanhada da compatriota Mirta dos Santos, agricultora aposentada, de 75 anos, que há oito anos mora "do lado brasileiro. "Essa praça nasceu no mesmo ano que eu, 1943", compara Mirta. A presença de ambas dá um sentido literal à região chamada Fronteira da Paz.
"Falo espanhol com os brasileiros e todos me compreendem. A vida de fronteira é maravilhosa, só não tem conversa quando jogam Brasil e Uruguai. De resto, somos irmãos. Em minha casa, meu marido é brasileiro e meus filhos uruguaios e brasileiros. São cidadãos naturais dos dois países, votam nos dois. Não voto no Brasil, mas gosto de Lula", diz Mirta, eleitora da Frente Ampla e conhecedora das dificuldades do atual governo.
"Estamos com um grande problema de pessoas contra a Frente Ampla. Muita gente contra. A Frente fez muito pelos camponeses que não tinham um bom salário, não tinham férias, trabalhavam por comida", afirmou, relatando que a oposição tenta colar a dificuldade econômica aos investimentos sociais.
Laura, que foi presa política em 1973 por quatro anos, durante a ditadura, lembra que chegou a acompanhar a primeira versão da Caravana da Cidadania, em 1993. "Lutamos muito por ele. A luta dele é nossa luta, é a luta da América Latina. Não é só pelo Brasil, é por todos. Lutam por quem não é privilegiado. É a luta da maioria de nós. Temos que nos unir. Pobre tem de se juntar", defende.
E reforça o pensamento de Mujica. "Em nossa Frente Ampla, tem muita coisa que falta cumprir. Sem dinheiro, muita coisa não dá para fazer. E é nessa luta que temos que apostar, de seguir construindo o que nos falta. Sem dúvidas, Mujica fez uma boa administração. Nestas épocas de crise que se golpeiam por todos os lados, a Frente está sendo atacada em um ponto que atinge gente que sim, tem muita necessidade, que são os camponeses, que tem dificuldades econômicas", reconhece. "Mas quem está protestando contra a Frente são os grandes, os que sempre ganharam e não repartiram a torta enquanto ela crescia. E estão se aproveitando da situação para atacar a Frente."
Ela destaca como inovação o fato de as empregadas domésticas terem seus direitos regulados em lei. "A empregada também ganhou lei de amparo e o salário mínimo cresceu." E lá, como no Brasil, uma parte da classe média não se conforma com isso.
Ainda que os governos progressistas não tenham conseguido implementar todas as mudanças prometidas, a microempreendedora Carmem Maria Rodrigues da Rosa, 51 anos, exalta os avanços. "Para a classe pobre, Lula trouxe faculdade. Eu mesmo tenho um filho que faz faculdade em Caxias do Sul. Ele ajudou muito os pobres", disse Carmem, que trabalha com salgadinhos e bolos para festas. Ela estava na Praça Internacional com a família.
O marido, Flávio Madeira Chavez, 69 anos é técnico em radiologia. "Tudo o que Lula fez para os mais pobres, as faculdades, o Luz para Todos, tudo isso motivou a gente a continuar pensando no que ele fez. Se errou, quem não erra? Ninguém provou nada contra ele, nem contra a Dilma. Então, pensamos que ele ainda pode voltar. Nós, em família estamos aqui para assistir ao nosso presidente."
A filha Francine Daiane da Rosa, 19 anos, e as netas Natasha, 4 anos, e Keury, 1, completam a reunião. "É um orgulho trazer a família para mostrar o que é a verdade, o que é ter o Lula em Livramento. Se os ricos não precisam ter, os pobres têm, graças ao Lula."
O reconhecimento, do que se alcançou e do que falta, no entanto, não basta para se enfrentar a forte onda de retrocessos, como observa o ex-governador Olívio Dutra. "É muito importante que sublinhemos que tudo está em risco com golpes acontecendo na ideia neoliberal de Estado mínimo para a população e Estado máximo para alguns setores privilegiados. É preciso lutar intensamente para recuperar a democracia nos nossos países e aperfeiçoá-las."