Muito se tem falado, desde 2013 e os primeiros desafinos do golpe, que a esquerda tem que “resistir”. Mas, afinal, o que significa isto?
Pensar em resistência é rememorar a figura célebre de Victor Hugo e sua descrição das “barricadas”, na França do século XIX. “Os Miseráveis” é uma ode à resistência. Todos os personagens resistem ao que lhes é imposto, seja pela lei, seja pela sociedade, seja pela sua história. Fantine resiste a morrer sem um sentido, Cosette resiste a viver sem um. Marius resiste a seguir o que sua origem nobre lhe impunha, o pequeno Gavroche é a resistência em si, quando não aceita ser colocado na condição de criança com tanto em jogo.
Mesmo os Thenardier são resistentes. Numa sociedade nobiliárquica eles são sobreviventes com as ferramentas que têm. Éponine, filha dos Thenardier, resiste a ser tomada pela vida materialista e contra a lei dos pais. Javert e Valjean resistem aos seus destinos, os dois se apegando às virtudes próprias. No fim, Victor Hugo mostra que todos, sem exceção, sucumbem à finitude da vida humana. Mas não é por isto que não marcam o tempo presente com sua insubordinação.
Um olhar pela História e vemos resistência em todas as partes. Os escravos negros se recusavam a aprender o português. Tornavam-se inúteis para o capital que lhes tinham comprado. Gandhi liderou um dos maiores movimentos de resistência que se tem notícia. Desobediência civil, boicote a produtos ingleses e visibilidade pelas marchas e pelo pacifismo. Os judeus resistiram às barbáries nazistas. Palestinos resistem às barbáries de Israel. Eles ensinaram como fazer.
Mandela mostrou que resistir não é vencer. Resistir pode não significar sobreviver. Resistir é apenas não aceitar. Não aceitar uma ideia, não aceitar uma ordem, não aceitar uma imposição. Os exemplos de resistência vão desde Cristo até Marighela ou Guevara. Resistir é não ser dobrado. Resistir é uma ação presente. É saber que não há vitória possível contra alguém que se recusa a perder. Resistir é um ato político de máxima liberdade. Por vezes, ele se torna a única coisa que se pode fazer. E, então, é uma escolha fácil. Outras, é apenas uma entre muitas opções. A opção da resistência, entretanto, é aquela que nos mantêm livres. Ainda que fisicamente presos. Nos mantêm vivos ainda que sejamos mortos.
Resistir começa na ideia. Antes da ação física, resistir é não aceitar. No seu íntimo, não se dobrar ao que outros julgam “razão”, “honra” ou “destino”. Resistir nem sempre é gritar não. Resistir é também silêncio. Resistir não requer as ruas cheias, as bandeiras tremulando ou as vidraças quebradas. Resistir é não se resignar.
Não há povo, no mundo, que não saiba resistir. Entre eles, o brasileiro. Resistimos à escravidão, resistimos à pobreza de sociedades rurais, resistimos ao racismo e preconceito das elites, resistimos a um sistema que a todo momento nos tenta matar – seja pelas mãos dos criminosos ou pelas mãos das polícias. Resistimos a ser periferia capitalista, expropriada, explorada até o limite da resistência física. Alguns de nós decidem, até mesmo, não morrer de sede, quando eles deixam faltar água.
A resistência do brasileiro é a luta diária tão bem descrita em “Morte e Vida Severina” ou “Grande Sertão: Veredas”. Há resistência também em “O tempo e o vento”, “O cortiço” e etc. Temos várias estratégias de resistência. Desde a religiosidade até o esforço físico, tudo fazemos para resistir. Uma sociedade que nunca olhou para seus desfavorecidos assiste bestializada a resistência em papelão nas noites frias das ruas brasileiras. A resistência na cola de sapateiro que faz amainar a fome. Não se deixar morrer com pequenos furtos. Alimentar os filhos, com farinha, água e todo amor do mundo. Pedir um remédio ao traficante porque do governo só conhecem a madeira dos cassetetes.
Resistir ao descaso com bacias a estancar goteiras, com os corpos colados para evitar o frio ou queimando os jornais que dizem que está tudo bem, por um pouco de calor. Resistir é ocupar um prédio para ter um teto. Resistir tem um preço, e só quem resiste sabe o quanto é.
O golpe pegou a todos nós. Uns já passam fome, enquanto outros já perderam o emprego. Alguns de nós foram mortos, outros presos. Uns espancados a maioria ofendidos. Nos roubaram o presente, nos tiraram o Futuro e nós dizem que é isto mesmo. Que vai ser e ficar assim.
Eles não aceitam que resistamos. Resistir é um ato do presente. É não aceitar as coisas como estão. Resistir não é mudar. Resistir é individual, a mudança só pode ocorrer coletivamente. Mas não existe mudança sem resistência. A conjugação é simples: Eu resisto, tu resiste eles resistem, nós mudamos, vós perdeis, eles estão perdidos.
Confesso que parece que eles têm tudo. Parece que não há saída. E ao pensar que não há, somos vencidos. Deixamos de resistir. Hoje, eles ganharam quase todas as batalhas. Tomaram as instituições, tomaram as armas e o uso irrestrito da violência. Tomaram de assalto as leis e as transformam ao seu bel prazer. A isto junta-se o que sempre tiveram: o dinheiro a televisão, as fábricas e as terras. Parece que eles têm tudo. Matam a esmo, ferem sem nenhuma razão. Condenam sem motivo e prendem sem assombro.
É neste cenário desgraçado que se tornou o Brasil, na fronteira do fascismo, que temos que resistir. Eles querem nos dizer que está acabado. Que não há chances. Que não deixarão ...
Uns querem nos vender a ideia do “único caminho”. Querem nos dizer que só há uma solução. E está solução parte da aceitação de que perdemos.
Martelam nos jornais e na televisão que está tudo normal e que as instituições estão funcionando. Mentem que o país “melhorou” quando, no fundo, nem eles acreditam. Apontam para o Futuro como se determinado fosse. Querem que você deixe de resistir e aceite o que já fizeram. “Não há saída”, dizem.
O que eles não entenderam é que estão completamente indefesos, pois a escolha é minha. A escolha é sua. Nós dizemos se aceitamos ou não.
Resistir é não aceitar o que nos é imposto. Resistir começa numa ideia.
E ainda que prendam esta ideia, eles estão indefesos contra a nossa decisão de resistir.
Eu não sei do Futuro. Eu não sei se venceremos. Mas sei que se resistirmos juntos, não podemos perder. Não podem nos vencer. Aliás, resistir já é dar-se a vitória. A vitória de que nossos algozes não nos tiveram cativos, não nos tiveram como apoiadores, nem por um minuto ...
E não há cadeia, cassetete ou decisão judicial que possa mudar isto. Eles já perderam, apenas ainda não se deram conta disto. E esta é toda a nossa vantagem.
Nota 1