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Sobre Lula e o amesquinhamento das obrigações internacionais

Ago 18, 2018

Por Eugênio Aragão, no GGN                                                                                                        

 

As instituições do estado brasileiro sempre tiveram uma relação de amor e ódio com o direito internacional. Por um lado, aaristo-burocracia que as povoa adora viajar para o exterior, se gaba de lá ser ouvida em palestrinhas a justificarem a prática de tirar casquinha do serviço público, à base de diárias em dólar e passagens em classe executiva. Adora falar de seus passeios em Portugal, na França ou na Itália; citaautores jurisconsultos desses países com uma saudade que não consegue definir, misturada com complexo de inferioridade e enche a boca para entremear seus rasos discursos com palavras ou frases de efeito em francês, inglês ou alemão. Sente-se importante quando assume algum protagonismo em cooperação internacional. Regozija-se com elogios vindos de fora. Realiza-se nos favores prestados a autoridades estrangeiras. Nisso, chega a ser sabuja.

Por outro lado, detesta ser chamada à responsabilidade. Enquanto o direito internacional servir para justificar passeios a serviço, seminários sem fim regados a coffee-breaks, enfeite em currículos profissionais e status privilegiado na carreira, ele é festejado como solução para os problemas nacionais. Quando, porém, órgãos de monitoramento de tratados expõem a pouca seriedade de nosso trato com compromissos assumidos, nossos aristo-burocratas se irritam com aquilo que sentem ser uma ousadia, um topete ou um desaforo, batendo na tecla de nossa soberania e de nossos interesses nacionais.

O judiciário brasileiro é bem assim. Principalmente sua cúpula. Desdenha profundamente a responsabilidade internacional do estado brasileiro. Não se sente nem um pouco vinculada às obrigações internacionais. Estas são um problema a se jogar no colo do Itamaraty, mas, jamais poderão condicionar ou direcionar seu modo de decidir. De certa forma, vê em sua sacrossanta independência de“poder constitucional” uma espécie de soberania pós-westfaliana, com ilimitada competência de guerra. Desrespeitaas instâncias internacionais e pronto. Ninguém pode com essa intangível cúpula judiciária. Foi assim com sua declaração de constitucionalidade da lei da anistia para torturadores e assassinos da ditadura; foi assim com a visita da relatora especial sobre execuções sumárias, Asma Jahangir, que, por fazer críticas ao descompromisso de juízes com direitos humanos, teve recusada audiência com o presidente do STF; ainda é assim com a cooperação com o Tribunal Penal Internacional, tida como à margem da Constituição – epor aí vai.

Esse repúdio elitista e prepotente a “pressões externas”, contudo, nos torna insignificantes nos foros internacionais. Somos uns anões pouco levados a sério. Não entendemos que o respeito de outras Nações advém da capacidade de nosso estado demonstrar com persistência sua boa fé no cumprimento da palavra empenhada.

A Constituição brasileira, em seu art. 4°, ao arrolar princípios que devem reger as relações internacionais mantidas pelo país, se furta do mais importante cânone do direito das nações, a tal boa fé no adimplemento das obrigações assumidas com outros estados, conhecido, também, por princípio do “pacta sunt servanda”. Talvez isso seja uma demonstração de como o Brasil enxerga no seu discurso jurídico internacional mero exercício deretórica. É comum tornarmos parte de um tratado que venha a nos impor obrigação de legislar como seu objeto mais relevante e empurrarmos essa tarefa com a barriga por anos a fio. Assim foi com a Convenção da ONU contra s tortura de 1984, ratificada pelo país em 1989. Somente em 1997, oito anos depois, nós demos ao trabalho de colocar em vigor a Lei n° 9.455, que tipifica o crime de tortura. No caso do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional de 1998, ratificado em 2002, até hoje não foi editada a lei sobre a cooperação com essa corte. Enquanto isso, o Brasil não tem como cumprir um sem número de obrigações ali assumidas. Fica o dito pelo não dito.

Faço essas observações a propósito da advertência de órgão da ONU que, nesta semana, o governo brasileiro tornou pública através de sua missão permanente em Genebra, para que o direito de Lula participar das eleições presidenciais seja respeitado. Pelo documento, solicita-se “ao estado-parte que tome todas as medidas necessárias para garantir que [Lula] goze de e exerça seus direitos políticos enquanto em prisão, como candidato às eleições presidenciais de 2018, incluindo o acesso apropriado à mídia e aos membros de seu partido político; assim como que não se impeça que concorra às eleições presidenciais de 2018, até que os recursos pendentes para revisão de sua condenação tenham sido completados em procedimentos judiciais justos e a condenação tenha se tornado definitiva”. A advertência foi feita no bojo de um procedimento que tramita no Comitê de Direitos Humanos do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) de 1966, a respeito de violações sofridas por Lula em diversos de seus direitos no curso da persecução penal contra si promovida no judiciário pátrio.

O Brasil se tornou parte desse tratado em 1992, comprometendo-se a respeitar e fazer respeitar os direitos ali reconhecidos. Para acompanhar o progresso dos estados-partes na implementação das obrigações assumidas, o PIDCP conta com um órgão de monitoramento, que é o Comitê de Direitos Humanos que advertiu o governo brasileiro. Por força de dispositivo do tratado, o Comitê pode receber petições individuais tratando da violação de direitos pelos estados-partes. Esse mecanismo existe porque o estado-parte concorda soberanamente com ele, adere às cláusulas que estabelecem sua competência.

Ao advertir o governo brasileiro, o Comitê exerceu prerrogativa que o Brasil livre e espontaneamente lhe reconheceu ao ratificar o tratado e ao expressamente admitir o recurso a petições individuais. Ninguém, pois, está indevidamente se intrometendo nos assuntos domésticos do país. Ninguém está exercendo pressão ilegítima sobre nossas instituições. O Comitê faz aquilo que o estado brasileiro lhe outorgou soberanamente fazer.

É claro que nenhum estado adere a um mecanismo desses achando que só vale para “os outros”. Ao ratificar o pacto com previsão de se permitir que indivíduos vítimas de violações de direitos possam acorrer ao Comitê, é curial que a parte deve admitir a possibilidade de ser cobrada por eventual não cumprimento de obrigações.

Note-se que o PIDCP foi assinado e ratificado pelo executivo dentro de sua atribuição constitucional de manter relações com estados estrangeiros e organizações internacionais. Mas foi também aprovado pelo legislativo, o que lhe confere status de norma interna, vinculante para todos os órgãos do estado - executivo, judiciário e o próprio legislativo.

O PIDCP é lei em sentido amplo ou, mais precisamente, é norma com vigência supralegal, na jurisprudência dominante do STF. Vale mais do que lei ordinária e complementar, por força do art. 5°, § 2°, da Constituição, segundo o qual “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Vale por isso, o pacto, mais do que a lei das eleições, a lei das inelegibilidades ou a lei de execução penal. E o intérprete maior de suas disposições é o Comitê de Direitos Humanos ali expressamente previsto.

O Brasil concordou com tudo isso e reconheceu, nesse esforço de amoldar nossa prática estatal a estândares internacionais de direitos humanos, os direitos expressos no art. 25 do PIDCP, segundo o qual

“Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas:

a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos;

b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores;

c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país”.
É interpretação corrente do Comitê de Direitos Humanos que esses direitos têm vigência, também, para pessoas que respondem a processo penal, presas ou não, enquanto não houver condenação transitada em julgado. Esse entendimento, por sinal, coincide plenamente com o sistema de presunção de inocência adotado em nossa Constituição, que além de estender essa presunção (“princípio de não-culpabilidade”) a todo trâmite do processo antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5°, LVII), aplica-a para o gozo dos direitos políticos, que só podem ser suspensos após a condenação definitiva.

Não vale apelar, aqui, para a tal lei da ficha limpa e nem ao entendimento distópico do STF de se poder executar pena provisoriamente após completado o duplo grau de jurisdição. É que o Brasil não pode opor nenhuma norma doméstica – leis complementares ou ordinárias – àvigência do pacto, a pretexto de deixar de cumprir suas cláusulas. Esse é um princípio geral de direito internacional inscrito no art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (ratificada pelo Brasil em 2009)– “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.

Não faz qualquer sentido, por tudo que aqui foi dito, a discussão pública que se iniciou tão logo a advertência foi disseminada na mídia, sobre se seria, ou não, de se cumprir a determinação. No Brasil dos dias atuais cumprir a lei se tornou algo sobre o que as instituições se deram o direito de transigir. Cumpre-se apenas se convém à “opinião pública” devidamente “refletida” – melhor, pautada – pelosmeios oligopolizados de comunicação. O “gesundes Volksempfinden” (sentimento popular são) tomou o lugar das normas postas, como na prática do famigerado tribunal popular (Volksgerichtshof) do Terceiro Reich.

É nesse contexto que cumpre interpretar declaração do Ministro da Justiça daquilo que se convencionou chamar de “governo Temer”, segundo a qual a advertência do Comitê de Direitos Humanos teria “nenhuma relevância jurídica”, qualificando-a como “intromissão política e ideológica indevida em tema técnico-legal” (apud “Painel da Folha”). Como o Doutor Torquato Jardim é um profissional com experiência e com cultura jurídica bem acima da média, não se deve debitar esse juízo equivocado à ignorância, tout court. Saísse de outro, talvez assim se pudesse avaliar tamanha derrapada, mas seguramente não no seu caso. Muito mais, parece que a declaração é típica para o processo de perseguição sistemática que se move contra Lula, com objetivo de lhe bloquear a participação nas eleições que muito provavelmente o reconduzirão à Presidência da República, como candidato de maior preferência dos eleitores. O Ministro da Justiça se coloca, assim, a serviço da manipulação e do amesquinhamento da soberania popular. Presta um desserviço à democracia, mas, sobretudo, como agente do estado brasileiro, é acessório à grave violação do direito internacional, contribuindo para macular ainda mais a má reputação atual do Brasil no concerto das nações.

Nunca é demais lembrar o veredito do Tribunal de Nuremberg, de 1946, que estabeleceu para todos os tempos o princípio da responsabilidade individual pela violação das normas de direito internacional peremptório. Disse o tribunal lapidarmente que tais violações não são praticadas por entidades abstratas, mas por indivíduos que comandam sua prática e somente em responsabilizando esses indivíduos é que se pode emprestar validade à norma internacional. É profundamente lastimável ter que se apontar para essa trágica lição, para recordar a juízes, promotores e autoridades executivas deste país que descumprir determinações decorrentes de obrigações assumidas pelo estado na ordem internacional não é apenas uma questão menor “interpretativa”, mas uma grave infração do direito das nações que pode ter reflexos na responsabilidade de cada um.

Tristes tempos.

 

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