A proposta de Ciro Gomes, de instituir o sistema de capitalização na Previdência Social não é nova e não resolve os problemas fiscais de curto prazo, porque não pode atropelar direitos adquiridos.
Na verdade, esse modelo começou a ser implementado no serviço público para todos os servidores que ingressaram após 4 de fevereiro de 2013.
Explicando:
O sistema atual é de repartição simples, pelo qual a arrecadação corrente serve para pagar as aposentadorias em curso.
Pelo sistema de capitalização, a contribuição é aplicada em um fundo e sua rentabilidade irá garantir a aposentadoria de cada contribuinte.
Nesse modelo, há os planos de benefício definido e de contribuição definida. Ciro propõe o segundo modelo (contribuição definida). Significa que a aposentadoria dependerá do rendimento obtido pelo fundo. Se o rendimento for menor do que a capitalização prometida, o benefício também será menor.
No novo sistema da previdência pública, há um de R$ 5.531,31. Quem quiser ganhar mais entra em um plano de previdência complementar, capitalizado, recolhendo 11% sobre o que exceder o teto. Essas mudanças ocorreram através das Emendas Constitucionais 20/98. 41/03 e 47/05.
Para garantir a capitalização, foram criadas três entidades fechadas de previdência complementar: Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Legislativo (Funpresp-Leg), Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud). Foram aprovadas leis obrigando os Estados a seguirem esse modelo.
Minas Gerais já vinha trabalhando esse modelo no governo Itamar Franco. Mas o fundo foi destruído na gestão Antônio Anastasia, que sacou os recursos para complementar o orçamento Estadual – curiosamente, um crime fiscal bem mais grave que as “pedaladas” que custaram o mandato de Dilma Rousseff – em um processo em que Anastasia desempenhou papel central.
Aparentemente, Ciro pretende estender esse modelo para o Sistema Geral da Previdência Social, em cima de um teto menor, de R$ 2.000,00.
Para respeitar os direitos adquiridos, terá que valer apenas para os que entrarem no mercado de trabalho após as mudanças.
Mas há uma conta a ser paga. No sistema atual, de repartição simples, as contribuições de hoje pagam os benefícios dos aposentados. Implementando seu plano, haverá uma redução sensível das contribuições, já que incidirão sobre um teto bem menor. Além disso, a nova legislação trabalhista continuará promovendo uma razia no mercado formal de trabalho.
Finalmente, mantida a instabilidade financeira do INSS, porque razão os contribuintes irão aportar mais recursos nos planos complementares do INSS, se o mercado financeiro já oferece esse produto sem a insegurança jurídica que ronda permanentemente a previdência pública?
O Plano K
É curiosa a suposta aprovação de Pérsio Arida a esta proposta.
Ainda no governo Fernando Collor, o economista Paulo Rabello de Castro e o empresário Paulo Britto me apresentaram um conjunto de ideias sobre previdência capitalizado, com o funding sendo garantido pelas privatizações, em um modelo de encontro de contas.
O caos fiscal brasileiro havia criado diversos casos de endividamento cruzado. O mero encontro de contas permitiria um enorme desafogo nas dívidas registradas. Foi o que havia feito Elizeu Rezende no setor elétrico, no governo Itamar, ajudando a destravar um nó que atrapalhava fundamentalmente os investimentos e comprometeria qualquer plano de estabilização.
Em relação ao Plano K, o Tesouro emitiria um bônus social. Haveria um encontro de contas no setor público. Os maiores credores eram justamente os fundos sociais – Previdência, FAT (Fundo de Amparo do Trabalhador), PIS-PASEP etc. Esses papéis seriam empregados pelos entes públicos (União, estados, municípios) para quitar suas dívidas com os fundos sociais. A contrapartida seriam suas estatais que seriam privatizadas.
Cada trabalhador teria a opção de trocar sua reserva matemática em cada conta pelas Obrigações Sociais do Tesouro. Depois, se filiar a fundos que administrariam as cotas, com gestão compartilhada, participando dos leilões de privatização.
Com a esperada valorização das estatais privatizadas, era uma operação de baixo risco para os cotistas, que poderiam optar livremente por aceitar ou não as propostas.
Divulguei as ideias na minha coluna na Folha, ainda no governo Collor. A coluna teve boa repercussão, e o encontro de contas recebeu o apoio até da grande Maria da Conceição Tavares,
Collor confundiu as bolas, julgou que se tratava de um tal de Plano K, que circulava nos gabinetes de Brasilia, e deu uma entrevista taxando a ideia de Kilos de bobagens. O destempero ajudou a dar mais visibilidade à ideia.
Com a queda de Collor e entrada de Itamar, tentei convencer Andre Franco Montoro Filho, que tocava o programa de privatizações. Falei com diversos economistas e parlamentares do PSDB, de José Serra a Tasso Jereissatti, de Pérsio Arida a Antonio Kandir. Maria Inês Nassif, minha irmã, cobria o recém nascido PFL em Brasilia e ajudou a orientar sobre as cabeças que deveriam ser convencidas.
Nenhum tinha coragem de rebater a lógica do projeto. Mas nenhum se empenhava em levar a ideia adiante.. De Tasso Jereissatti, recebi a explicação ilógica. Disse que havia conversado com André Lara Rezende, que simplesmente afirmou que “a conta não fechava”. Era uma explicação falsa. O Plano não era transformar o Regime Geral da Previdência Social em um enorme fundo de capitalização, mas apenas a parte dos cotistas que aderissem ao plano, ajudando a democratizar os ganhos advindo da privatização. Então não tinha conta a ser fechada.
Ao mesmo tempo, Paulo Rabello – que é um economista extremamente criativo, mas politicamente ambicioso e sem noção – aliou-se ao PFL para partidarizar a ideia. Alertei-o que comprometeria o projeto. Como insistisse, pulei fora da sua promoção.
Com o tempo, ficou clara a relutância dos tucanos em apoiar a proposta. A privatização era um jogo de cartas marcadas, para grupos próximos ao PSDB.
O segundo movimento
A segunda oportunidade de implementação da ideia surgiu no inicio do segundo governo FHC. Veio a maxidesvalorização cambial – negada durante toda a campanha -, o governo caía pelas tabelas e os governadores, com as finanças estaduais em pane, ameaçavam ir a Brasilia decretar uma rebelião federativa.
Escrevi na coluna que talvez fosse a hora de ressuscitar o encontro de contas e as privatizações sociais. Recebi um telefonema de David Zilbertjein, na época diretor da ANP (Agência Nacional de Petróleo) e genro de FHC. Estava com o presidente na inauguração de uma usina hidrelétrica, comentou com ele a coluna e julgaram que poderia ser a saída, a proposta que acalmasse os governadores. Perguntou se eu poderia ir a Brasilia no dia seguinte e conversar com Pimenta da Veiga, sucessor de Sérgio Motta no Ministério das Comunicações e explicar-lhe a lógica do plano.
Imediatamente teve início uma articulação subterrânea importante. Alertei os Paulos, que entraram em contato com seus aliados no PFL. No Paraná, o governador Jaime Lerner tinha propostas semelhantes e se uniu ao exército de Brancaleone.
Fui a Brasilia, me encontrei com Pimenta, e tentei explicar a ideia. No lugar do furacão Sérgio Motta, encontrei um genérico de Fernando Henrique, um dos homens públicos mais desinteressados e sem iniciativa que conheci em toda minha vida jornalística.
De qualquer forma, a ideia avançou. Os jornais começaram a dar matérias sobre o tema. Na reunião com os governadores, em um sábado, fechou-se um acordo em torno do tal encontro de contas com privatizações de estaduais.
Na sequencia, o Financial Times deu uma matéria saudando o encontro como o primeiro sinal de reação, ainda que tímida, do governo FHC.
Passado o sufoco da reunião FHC voltou ao seu habitat, a inércia. A proposta foi deixada de lado.
Tempos depois, com as finanças públicas em frangalhos, FHC convocou André Lara Rezende para montar um projeto de salvação da Previdência. Uma colega do Estadão saudou o feito: não se sabe qual proposta André apresentará, mas certamente será brilhante, talvez a síntese mais acabada do endeusamento dos ex-cruzados e ex-reais.
A ideia nem chegou a sair do papel. Depois, se soube que copiara a propostas dos dois Paulos, com uma diferença: a maior parte das estatais relevantes já tinha sido vendida.
A terceira tentativa veio no início do governo Lula, com Luiz Gushiken. Poderia ter mais sensibilidade, já que os fundos de pensão das estatais eram uma realidade vitoriosa.
Mas também não avançou.
A consolidação do sistema de capitalização no setor público está em andamento. Com os estados quebrados, com a falta de controle sobre muitos fundos municipais, exige soluções sistêmicas, de enquadramento desses fundos e maneiras criativas de garantir a capitalização inicial.
Mas a proposta para o setor privado carece de maiores detalhamentos, já que existe um sistema nacional de previdência social que engloba também benefícios sociais.
De qualquer modo, há uma proposta na mesa estimulando as discussões sobre um dos temas centrais.