As peças do jogo
Não se iluda com a bateção de cabeça na equipe de transição de Bolsonaro. Como um caminhão carregado de abóboras, a cada tranco as abóboras vão se ajeitando e redefinindo a nova conformação.
Das mensagens de Twitter, entrevistas, declarações algo caóticas do governo de transição, extraem-se os seguintes elementos sobre os grupos de poder.
Núcleo 1 – o grupo religioso
A afirmação de Jair Bolsonaro de que o maior problema do Brasil não é a corrupção, mas os vermelhos; as indicações de Ernesto Araújo para Ministro das Relações Exteriores, e de Ricardo Velez Rodrigues para Ministro da Educação, confirmam a influência do núcleo religioso do governo, centrada nos três primeiros-filhos e em Olavo de Carvalho e seus seguidores. Haverá um fundamentalismo religioso que terá em Bolsonaro o grande animador.
Núcleo 2 – A entrevista do general Hamilton Mourão à Folha de S. Paulo, reforçando a imagem de âncora do núcleo racional do governo.
Núcleo 3 – o controle de Paulo Guedes sobre a área econômica, com algumas posições que entram em conflito com as noções de segurança nacional do general Mourão.
Núcleo 4 – Sérgio Moro montando as bases do estado policial, com uma variante mais sútil da guerra ideológica, o chamado direito penal do inimigo.
A partir dessas peças, é possível compor melhor o que poderá ser o jogo no governo Bolsonaro.
Peça 1 – a República fundamentalista
Havia duas expectativas de abreviar o governo Bolsonaro:
- Loucuras na economia, decorrentes da falta de senso de Bolsonaro, passando a sensação de destruição econômica do país.
- A reversão de expectativas dos eleitores, fato que poderia ser acelerado pelas declarações continuadas de Bolsonaro, revelando seu baixíssimo preparo intelectual e sua incapacidade de articulação política ou midiática.
As asneiras ideológicas de Bolsonaro, com repercussões econômicas, foram contidas. Ele voltou atrás nas declarações sobre a China, sobre a mudança da embaixada de Israel para Jerusalém, nos ataques ao Mercosul, no alinhamento automático com Donald Trump etc.
Parece ter caído a ficha de sua total incapacidade de se manifestar sobre qualquer tema relevante. E terceirizou esse trabalho para o vice-presidente general Hamilton Mourão.
Declarações como a de que “precisamos dar certo, se não eles voltam”, indicam qual foi a argumentação de Mourão. Deixe o trabalho pesado por nossa conta e faça o que você sabe fazer: a guerra moral-ideológica. Com isso libera Bolsonaro para se concentrar no discurso tatibitate que ele domina como poucos.
Por isso mesmo, a reversão de expectativas da opinião pública será enfrentada no melhor modelo da guerra fria: o combate sem tréguas ao inimigo vermelho, aquele que não permite que esta terra cumpra seu ideal.
Fica cada vez mais nítida a tentativa de implantação de uma república fundamentalista. E há condições objetivas de se montar uma estrutura nacional superior a de qualquer outro partido, explorando os baixos instintos que explodiram em todo o país durante a campanha eleitoral e a expansão fulminante das igrejas evangélicas conservadoras. A eclosão da direita radical tornou-se fenômeno nacional e o agente aglutinador simbólico é o próprio Bolsonaro.
O gabinete inicial para a guerra ideológica está fincado no Planalto, nas Relações Exteriores, com o alinhamento com a ultradireita mundial; e na Educação, em torno do tema escola sem partido. A eles se agregarão as secretarias e ministérios comandadas por ruralistas e evangélicos com implicações em questões de terra, meio ambiente e movimentos sociais.
É um novo modelo, no qual o papel do Estado será se abster de qualquer ação moderadora, e de liberar as tropas na base.
No movimento estudantil, a estratégia delineada consiste em se valer das adesões ao MBL e à Escola Sem Partido para atacar o modelo UNE de organização.
No plano educacional, a ideia será fragmentar a supervisão educacional, jogando o controle das escolas para os municípios. E, aí, insuflar os grupos conservadores e as igrejas fundamentalistas a fazer pressão na ponta. Na campanha, foi o maior fator de mobilização da tropa bolsonariana.
Junto aos movimentos sociais, e setores recalcitrantes, haverá uma guerra surda envolvendo os setores partidarizados do Judiciário e do Ministério Público, sufocando os inimigos com montanhas de denúncias . No caso dos movimentos sociais, a polícia se valendo também da coerção física.
Peça 2 – as vacinas contra as loucuras
Um fator de vulnerabilidade do governo Bolsonaro, como já se disse, é o conjunto de declarações estapafúrdias.
Essa vulnerabilidade está sendo trabalhada pelo vice-presidente, general Mourão. Pela entrevista dada à Folha, Mourão se consolida como a voz da razão no grupo Bolsonaro ou, como alguém mencionou, no único adulto no playground. Aparentemente, ele convenceu Bolsonaro a se abster de temas de peso, com o argumento de que a não abertura de frentes de desgaste é essencial para a grande missão de salvar o país da sanha dos vermelhos.
Não se trata de uma estratégia de unificação do país. Fosse assim, Mourão entenderia a importância do MST (Movimento dos Sem Terra) e do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) para a paz interna, suprindo o papel do Estado e abrindo oportunidades de trabalho e renda para seus integrantes.
O combate incessante aos movimentos sociais e ao pensamento crítico é peça central da estratégia política da nova república fundamentalista. Essa estratégia não prescindirá da manutenção da figura do inimigo interno. O maior fator de fortalecimento de Bolsonaro, quando começar a decepção, será a reação dos grupos depois de expropriados de seus direitos políticos e de organização, fornecendo o álibi para uma radicalização da barbárie.
Peça 3 – a preservação da economia
Em um dos primeiros Xadrez sobre o governo Bolsonaro, antecipei uma mudança nos discursos neoliberais dos militares – especialmente do militar que se pronunciava mais, o general Hamilton Mourão.
Antes de ser poder, limitava-se a repetir bordões da Globonews. Com a expectativa de poder, muda a lógica da analise. Sai dos bordões dos “bem-pensantes” – a mixórdia de slogans econômicos superficiais – para análise efetiva de cada caso. E, aí, impõe-se o ponto central do pensamento militar, que muda toda a lógica da analise de caso: a segurança e o interesse nacional.
O pensamento militar fica muito mais à vontade tendo os diversos fatores políticos e econômicos sob controle, ao contrário do pensamento do mercado e, em particular, da escola de Chicago, que abomina qualquer forma de regulação.
Além disso, o pensamento de mercado não tem o menor prurido com processos de destruição de valores, ao contrário do pensamento militar que valoriza o chamado patrimônio público.
Na entrevista à Folha, Mourão demonstrou pragmatismo não apenas em relação às questões internacionais, mas ao próprio Programa Nuclear Brasileiro. E deixou claro que cada passo será precedido de estudos e analises sob sua responsabilidade, colocando-se como um filtro contra eventuais arroubos de privatização selvagem de Paulo Guedes.
Peça 4 – o objetivo maior
Não se iludam com eventuais descompassos entre Mourão e Bolsonaro. Ambos estão tomados pelo mesmo destino manifesto, de guerra total aos inimigos, de resistência ampla ao contraditório, especialmente em temas morais e políticos.
Pela primeira vez na história, o país experimentará o que significa a verdadeira teocracia, a visão moral-religiosa se impondo sobre o pluralismo e as liberdades individuais.
Ao mesmo tempo, há o risco de uma explosão incontrolável da violência, com o conceito de guerra ao inimigo contaminando definitivamente a segurança pública, as Polícias Militares, especialmente depois do incentivo que recebeu dos futuros governador João Dória Jr, de São Paulo, Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, e Romeu Zema, de Minas Gerais.
O busílis da questão é que estratégias de guerra, como a que desponta, só comportam dois desfechos: ou a radicalização final; ou o esgarçamento, pelo cansaço da nação.
Ainda é cedo para saber qual prevalecerá. De qualquer modo, a extensão e profundidade do pensamento conservador no país impede visões mais otimistas.