Um documento inédito encontrado pelo Intercept no arquivo histórico do Ministério do Exterior da Itália mostra que o número de presos nos primeiros dias do golpe militar brasileiro de 1964 pode ser quatro vezes maior do que se estimava até hoje.
Um ofício enviado do Rio de Janeiro em 8 de julho de 1964 por Eugenio Prato, então embaixador italiano no Brasil, ao Ministério do Exterior da Itália – a Farnesina – cita que “foram efetuadas cerca de 20 mil prisões nos primeiros dias da revolução”. Até hoje, o número estimado de detenções nos dias seguintes ao golpe militar vinha de um único documento, produzido pela embaixada norte-americana no Brasil, que falava em “em torno de 5 mil pessoas”. Ele é mencionado no capítulo 3, parágrafo 67, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
Como o regime militar sempre escondeu o número oficial de presos, o documento produzido pelos italianos se soma ao da embaixada dos Estados Unidos como únicos registros históricos conhecidos sobre as detenções nos dias que se seguiram ao golpe de estado de 1964, quando os militares derrubaram o presidente eleito João Goulart para empossar uma sequência de ditadores que se perpetuariam no poder até março de 1985, sequestrando crianças, queimando dissidentes em fornos, enterrando clandestinamente opositores em covas coletivas, forjando suicídios e praticando diversos outros crimes pelos quais ninguém foi punido até hoje.
“Esse documento que vocês encontraram é muito importante”, nos disse Pedro Dallari, advogado e um dos coordenadores da Comissão Nacional da Verdade. “No próprio relatório que produzimos, a gente diz que ainda existem muitos documentos a serem descobertos”, lembrou Dallari. “Vale lembrar que tanto a informação norte-americana quanto a italiana são estimativas porque não havia registro das prisões, elas eram feitas de maneira aleatória.”
Paulo Vannuchi, que trabalhou em um dos principais livros sobre o período, “Brasil Nunca Mais”, coordenado por dom Paulo Evaristo Arns, também comentou a descoberta. “Ao longos dos 40 anos que trabalho focado nesse tema, pude ver em vários textos uma estimativa genérica de 50 mil prisões ao longo de toda a ditadura militar no Brasil. Portanto, os números citados nesse documento do Ministério das Relações Exteriores da Itália me parecem bastante razoáveis.” Vannuchi, que em 1975 mencionou 233 nomes de torturadores e assassinos em um extenso dossiê entregue à Ordem dos Advogados do Brasil, acredita que um número ainda maior de pessoas tenham sido presas pelo regime. “É provável que os números estejam subestimados.”
A Itália era governada, à época, por uma coalizão entre os conservadores da Democracia Cristã e partidos de esquerda. No documento obtido pelo Intercept, intitulado “Prisões de elementos comprometidos com o governo Goulart”, o então embaixador Prato não revela suas fontes de informação sobre as prisões. Chamando o golpe de estado de “revolução”, o diplomata comunica que “não se conhece o número exato das pessoas que continuam presas”, mas sugere que “1.500 continuam detentas à espera de julgamento”.
Os documentos deixaram o grau “confidencial” em dezembro de 2015.
Até hoje, o número de presos é um dos grandes mistérios do período ditatorial. “As pessoas eram levadas em massa para estádios e navios transformados em prisões coletivas”, diz Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Estádios como dos clubes Ypiranga, em Macaé (RJ); Esporte Clube Comerciários, em Criciúma (SC); os navios Raul Soares, em Santos (SP); Princesa Leopoldina, na Guanabara; Corumbá, em Campo Grande (MS), lembra, são citados no relatório final da Comissão.
Exército armou e fardou civis
Outro informe ao qual tivemos acesso mostra como o Exército armou cidadãos civis, sobretudo os declaradamente de direita, para derrubar o governo e fazer “ações de limpeza” nas ruas – ou seja, prender pessoas. Intitulado “A situação em São Paulo”, o comunicado foi enviado em 8 de abril pelo consulado italiano de São Paulo à embaixada no Rio, e transmitido à Farnesina três dias depois.
O texto chama as organizações civis que participaram do golpe de “heróis”. Sobre São Paulo, está registrado: “Nesta enorme cidade, além dos 5 mil, dos quais só uma parte agiu desde o início, e recebeu uniforme e armas do exército. Os elementos que se reuniram depois ficaram à paisana, e reforçaram, e em parte ainda reforçam, as forças policiais nas ações de limpeza”. O informe ainda aponta para as numerosas prisões que “continuam”. E cita os primeiros desaparecidos políticos. “Poucos são liberados e há alguns casos de desaparecimento sem rastro após a prisão.”
Para Adrianna Setemy, professora de História da Universidade Federal do Paraná, é fundamental que, diante do atual ambiente político e social instaurado no Brasil, exista a possibilidade de acesso a esse tipo de documento. “Mesmo que diante do ponto de vista metodológico, do historiador, um documento inédito não signifique, a princípio, uma reviravolta na historiografia, ele traz a possibilidade de elaborarmos novas perguntas, novas questões e também a necessidade de questionarmos o que foi escrito até então”, explicou.
Para a professora, que foi pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade, os novos documentos indicam que o tema ainda precisa ser pesquisado, não só por ter voltado a ocupar a “ordem do dia”, mas para combater as falas que tentam negar a história. “Os vestígios servem justamente para que a gente possa enfrentar qualquer tipo de covardia.”
Militares se organizaram antes da Operação Condor
Outros dois documentos encontrados no arquivo mostram como os militares brasileiros se articularam para controlar os exilados políticos ainda no primeiro ano do governo, plantando as sementes do que viria a ser, nos anos 70, a Operação Condor: uma rede do terror de repressão política e troca de prisioneiros formada pelos serviços de inteligência das ditaduras da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, com apoio da CIA.
Os principais alvos daquele primeiro ano de governo, sob comando do general Humberto de Alencar Castello Branco, eram o ex-presidente deposto João Goulart e seu cunhado, o ex-governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola – que havia montado uma campanha para evitar que os militares dessem um golpe de estado ainda em 1961.
Ambos viviam no Uruguai. Cerca de 300 exilados políticos brasileiros viviam naquele país, segundo um dos informes da Farnesina, de 11 de junho de 1964, produzido pela embaixada italiana de Montevidéueo, intitulado “Política brasileira”. Ele foi enviado com cópia às embaixadas italianas do Rio de Janeiro e de Washington. O documento avisa que o “presidente do conselho nacional está preocupado com as atividades políticas dos refugiados brasileiros que vivem no país” – citando Jango e Brizola – e avisa que “o governo uruguaio poderá rever sua posição e adotar medidas restritivas de liberdade de movimento”.
Um segundo documento enviado em 2 de dezembro pela embaixada do Rio ao governo italiano, e que traz no título “Desconforto nos círculos políticos parlamentares”, relata que o então ministro do exterior brasileiro Vasco Leitão da Cunha pediu ao governo do Uruguai uma estrita vigilância nas atividades dos exilados brasileiros – citando novamente Brizola.
“É interessante notar como o governo ditatorial do Brasil procurava fazer pressão ao governo do Uruguai, que naquela época ainda era uma democracia, para vigiar os exilados brasileiros”, nos disse Francesca Lessa, pesquisadora italiana da Universidade de Oxford que investiga as responsabilidade pelos crimes transnacionais da Operação Condor.
“Sem dúvida, essa atividade de vigilância e controle do exilado são embriões do que veio a ser a Operação”, analisa Lessa. Para ela, os documentos são importantes porque “mostram como os militares já estavam se organizando antes mesmo da Condor, que não ao acaso se concretizou nos anos 70 e se nutriu de todas as experiências de políticas repressivas da região colocadas em prática nos 60”.