Cátia e Joana são algumas das muitas colegas que conheci em um recente giro acadêmico no exterior. Em tom de desespero, desesperança e até pânico, diferentes pessoas me contaram que não queriam voltar sob hipótese alguma. Homossexuais sentiam medo de morrer, pesquisadores consideravam não haver mais condições de se fazer ciência no Brasil.

Triste país em que um slogan da ditadura militar volta a fazer sentido: ‘Brasil, ame ou deixe-o’

Multidões têm optado por deixá-lo. Dando pulos sobre a terra plana e apontando arminha para o próprio pé, há quem comemore. ‘Não estão contentes? Vão embora!’, gritam os bolsonaristas nas redes sociais, ignorando o fato de que emigração em massa é um dos mais alarmantes sinais do fracasso do desenvolvimento de uma nação. O efeito de um país que expulsa sua própria gente é uma bomba-relógio pronta para explodir no colo de Bolsonaro. Mas, infelizmente, é característica do bolsonarismo preferir morrer enforcado com a própria corda do que refletir sobre as consequências de seu governo.

O Brasil hoje exporta gente. Segundo o Ministério das Relações Exteriores, há 3 milhões de imigrantes brasileiros no exterior. Dados da Receita Federal concedidos ao Intercept indicam que a crise econômica tem causado uma debandada do país. Em 2011, em plena fase de crescimento econômico, o número de pessoas que declararam saída definitiva era de 8.170. Em 2014, ano em que começa a crise econômica, 12.451 deixam o país. Já em 2017 e 2018, esse número chega à casa dos 22 mil. Ou seja, em sete anos, o número de emigrantes brasileiros quase triplicou.

Para a pesquisadora Patricia Villen, a emigração deverá se acentuar nos próximos anos em função da crise econômica, mas também da ascensão da extrema direita. Trata-se de um desenraizamento forçado de caráter econômico, mas sobretudo psicológico, que causa um profundo sofrimento. Atualmente, pessoas de todas as classes sociais estão deixando o Brasil em busca de oportunidades lá fora, na mesma medida em que começa a crescer o caso de cidadãos que, como nos tempos da ditadura militar, buscam abrigo no exterior por temerem as consequências de perseguição política e por orientação sexual.

Entre 1964 a 1985, 5 mil brasileiros se exilaram no exterior. Como aponta a pesquisadora Sara Duarte Feijó, o imaginário brasileiro sobre o exílio é construído sobre a ideia de “volta por cima”, fixada na representação do desembarque de exilados no Galeão ao som da canção ‘O bêbado e o equilibrista’. No entanto, pouco sabemos do sofrimento dos expatriados: do seu cotidiano de dificuldades, do sentimento de ser arrancado de suas vidas, das saudades da família. É esse cenário que milhares de brasileiros estão enfrentando ou irão enfrentar no exterior.

 

Fuga de cérebros aponta o fracasso de um país

Um estudo realizado pela empresa JBJ Partners mostrou que em quatro anos, de 2014 a 2018, o total de pessoas com curso superior ou pós-graduação que migraram do Brasil para os Estados Unidos pulou de 83% a 93%. Esse fenômeno, chamado fuga de cérebros (brain drain, em inglês), significa a emigração significativa de pessoas que levam sua qualificação especializada para outro país mais desenvolvido.

Diversos especialistas em ciência e tecnologia têm alertado publicamenteque esse quadro de perda de talentos tende a se tornar mais crítico em virtude tanto do corte de 30% das universidades federais – o qual foi anunciado em tom de deboche pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub – quanto do de 42% no MCTIC. São cerca de 80 mil bolsistas do CNPqque correm o risco de não serem pagos a partir de agora.

Ainda que não tenhamos números consolidados de 2019, meu circuito no exterior me deu pistas de que podemos estar diante de um fenômeno sem precedentes. Em cada uma das 30 universidades que passei, conheci de três a cinco doutorandos ou pós-doutorandos que não queriam retornar. Isso significa uma amostra de 90 a 150 pessoas.

O que mais me chamou atenção neste meu giro recente foi não ter encontrado uma pessoa sequer dizendo que queria voltar ao Brasil.

Tenho mantido contato sistemático com acadêmicos brasileiros que atuam fora. Sempre teve pessoas que queriam ficar no exterior por causa das melhores condições de trabalho e infraestrutura, mas esse grupo era contrabalanceado com os outros tantos patriotas que sonhavam retornar ao Brasil para retribuir o que aprenderam lá fora. O que mais me chamou atenção nesse meu giro recente foi não ter encontrado uma pessoa sequer dizendo que queria voltar para o Brasil nas atuais circunstâncias. Os pesquisadores ainda cultivam esse sonho, mas consideram o clima inóspito para cientistas. Eles estão certos.

O Ciência sem Fronteiras do governo Dilma Rousseff é um caso importante a ser discutido. O programa tinha objetivos ambiciosos de alavancar o desenvolvimento científico e tecnológico, e contribuiu significantemente para o crescimento intelectual de 100 mil jovens –muitos deles tiveram sua primeira experiência fora do país. Mas muitos estudantes reclamam de terem sido incentivados a buscar formação fora e de o país não ter condições de recebê-los de volta.

Entre 2016 e 2017, dialoguei bastante com estudantes do CsFem função de minha militância no tema do sofrimento acadêmico. Àquela altura, a situação desses pesquisadores altamente qualificados já era crítica. Hoje é calamitosa e desesperadora, com casos de depressão e tentativas de suicídio.

Para quem não tem estabilidade no Brasil, só resta a rota de fuga forçada.

Há poucos anos, questionava-se se voltar ao país era única forma de retornar para o Brasil o conhecimento adquirido lá fora. Muitos estudantes pediam mais flexibilidade nas políticas de retorno, e a postura do governo era de reforçar a importância da volta como pagamento ao que fora investido neles. Hoje, o quadro é radicalmente diferente. Uma recém-doutora em Sociologia comentou comigo, com sarcasmo e tristeza, que o governo agradece se ela não voltar: “meu conhecimento não tem valor algum no país que me financiou.”

Pesquisadores veem que seus dados não importam. Intelectuais são perseguidos como doutrinadores. Seguindo a lógica fascista, estamos diante de uma inédita estigmatização do conhecimento acadêmico no Brasil que transforma o cientista no inimigo interno a ser destruído. Para quem não tem estabilidade no Brasil – e mesmo para quem tem –, só resta a rota de fuga forçada.