Estamos às voltas com mais uma arbitrariedade das muitas que o processo de criminalização ampla, geral e irrestrita tem produzido no Brasil ao longo dos últimos anos.
Agora, um Procurador da República lotado no Distrito Federal, abre inquérito contra o Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pela suposta prática do crime de tráfico de influência em transação comercial internacional. Trata-se de mais uma aberração jurídica – e política – para desgastar o ex-presidente e tirá-lo da disputa de 2018.
A Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002, fez inserir no Código Penal o artigo 337-C para punir a conduta de tráfico de influência em transação comercial internacional. A alteração legislativa é decorrente de uma interpretação equivocada da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997.
O texto da Convenção assinado pelos países e incorporado ao nosso sistema através do Decreto Nº 3.678, de 30 de novembro de 2000, era focado exclusivamente na questão da corrupção de funcionário público estrangeiro. Assim, o texto da Convenção:
1. Cada Parte deverá tomar todas as medidas necessárias ao estabelecimento de que, segundo suas leis, é delito criminal qualquer pessoa intencionalmente oferecer, prometer ou dar qualquer vantagem pecuniária indevida ou de outra natureza, seja diretamente ou por intermediários, a um funcionário público estrangeiro, para esse funcionário ou para terceiros, causando a ação ou a omissão do funcionário no desempenho de suas funções oficiais, com a finalidade de realizar ou dificultar transações ou obter outra vantagem ilícita na condução de negócios internacionais.
2. Cada Parte deverá tomar todas as medidas necessárias ao estabelecimento de que a cumplicidade, inclusive por incitamento, auxílio ou encorajamento, ou a autorização de ato de corrupção de um funcionário público estrangeiro é um delito criminal. A tentativa e conspiração para subornar um funcionário público estrangeiro serão delitos criminais na mesma medida em que o são a tentativa e conspiração para corrupção de funcionário público daquela Parte.
A interpretação dos crimes previstos no Código Penal pela Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002 deve ser feita à luz do texto da Convenção que motivou a alteração legislativa. Assim, ressalta-se, portanto, que o objeto e o sentido da Lei deve guardar íntima relação com a conduta de procurar obter vantagem pecuniária indevida ou outra vantagem ilícita na condução de negócios internacionais.
Vê-se, portanto, que o crime previsto no art. 337-C foi um acréscimo desnecessário na legislação brasileira, dado que a Convenção Internacional que motivou a elaboração da Lei tinha o foco voltado somente para uma preocupação quanto a conduta de corrupção de funcionários públicos nas relações comerciais entre países. É o que se extrai do documento assinado em 1997.
Portanto, a própria inovação legislativa trazida pela lei de 2002 é criticada tanto por não guardar relação direta com o acordo internacional de vontades que resultou na propositura da Lei, quanto porque é um exemplo concreto de fenômeno jurídico, estudado por juristas do porte de Nilo Batista e Juarez Tavarez, que consiste em aberrações jurídicas que surgem de interpretações equivocadas de tratados e acordos internacionais.
Em breve pesquisa realizada nos cinco Tribunais Regionais Federais do Brasil encontramos apenas uma ocorrência dos crimes previstos na Lei nº 10.467, de 11 de junho de 2002, o que demonstra a antijuridicidade da motivação no ato de abertura de inquérito contra o ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
Pois bem, superada a parte histórica de conceituação e criação do crime previsto no artigo 337-C do Código Penal, já de questionável necessidade, importante analisar a conduta propriamente dita e seu enquadramento legal.
Para configurar o crime se exige a ação dos verbos solicitar, exigir, cobrar ou obter para si ou para outra pessoa, direta ou indiretamente, vantagem ou promessa de vantagem a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional.
Portanto, o agente solicita, exige, cobra ou obtém alguma vantagem, para si próprio ou para terceira pessoa, sob a alegação de que irá influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro, relacionado a transação comercial internacional.
Neste sentido, acerca da modalidade que versa sobre transações comerciais internacionais, leciona o professor Rogério Greco: "O sujeito atua, praticando qualquer dos comportamentos típicos, com a finalidade de obter vantagem ou promessa de vantagem de qualquer natureza, a pretexto de influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro, no exercício de suas funções, relacionado a transação comercial internacional. A expressão a pretexto de influir demonstra que, na verdade, o agente age como verdadeiro estelionatário, procurando, por meio do seu ardil, enganar a vítima" (grifo nosso).
Na mesma direção, Cezar Roberto Bitencourt esclarece que: "a lei criminaliza a bazófia, a gabolice ou jactância de influir em servidor público estrangeiro, quando tal prestígio não existe. Esse é o sentido que se pode extrair da locução "a pretexto de influir". Não é necessário que se trate de pessoa determinada ou que dito funcionário seja devidamente identificado e individualizado para o beneficiário-iludido, podendo, inclusive, tratar-se de funcionário incompetente para a prática do ato visado; no entanto, se for identificado o funcionário público, é indispensável que seja estrangeiro, caso contrário não se configurará essa infração penal (poderá ser outra)"
Ainda: "Se, no entanto, a pessoa realmente goza de influência, e, sem alardeá-la ou proclamá-la, desenvolver atividade junto àquele, não comete o crime em apreço, podendo, entretanto, dependendo das circunstâncias, praticar outro" (g.n.).
Importante frisar essa condição sem a qual o crime não se configura. É preciso que o agente alegue ou faça crer, concretamente, que irá influir em ato praticado por funcionário público estrangeiro, relacionado a transação comercial internacional.
É o ato de vender vantagem, ludibriar e fazer crer que determinará a ação de funcionário público estrangeiro um elemento fundamental para configuração do crime. É convencer de que tem influência, quando, na verdade, não a tem.
Um outro elemento caracterizador da conduta é a relação entre o oferecimento da influência com uma transação comercial internacional. Ou seja, além de demonstrar, concretamente, a existência de oferecimento de influência em troca de vantagem isto deve se dar no âmbito de uma transação comercial internacional.
Uma última questão fundamental se relaciona a questão do agente que tem, de fato, alguma influência junto ao funcionário e, sem alardeá-la, desenvolve atividade junto àquele. Neste caso, segundo a lição de Magalhães Noronha, não existe crime.
É o caso típico de ex-presidentes da República que possuem reconhecida notoriedade mundial e que atuam na defesa dos interesses do país que representam. O inciso I do art. 6º do Decreto nº 5.978 de 4 de dezembro de 2006, prevê a concessão de passaporte diplomático para o Presidente, ex-Presidente e ex-Vice Presidente da República.
A medida serve para não somente garantir a dignidade do exercício de função pública de relevo como a de Chefe do Poder Executivo Federal, como para possibilitar e estimular que se valha da reputação construída ao longo do exercício do mandato para contribuir nas relações internacionais entre países
Neste ponto, inexiste crime na conduta de um ex-Presidente da República que atua para fortalecer os interesses nacionais junto a outros países. Essa ação política e de representação não guarda nenhuma relação com o crime previsto no art. 377-C do Código Penal.
São situações absolutamente diferentes. Criminalizar a iniciativa de ex-mandatários em defesa dos interesses do próprio país é um total contra senso, ademais de representar evidente abuso de poder.
O art. 4º da Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965 define como abuso de autoridade a conduta de autoridade pública que mediante a abuso ou desvio de poder comete ato lesivo à honra ou patrimônio da pessoa natural ou jurídica. Portanto, a ação de autoridade pública que determina abertura e divulgação midiática de inquérito de fato do qual sabe não se tratar de crime pode ser configurada como abuso de autoridade, passível de responsabilização administrativa e criminal.
Dessa forma, o ex-presidente Lula não praticou crime qualquer. Antes pelo contrário, a sua ação meritória em prol dos interesses de seu país merece aplausos.
Já o tal procurador da república, tornou-se passível de responsabilização administrativa e criminal por sua conduta arbitrária e abusiva.
Wadih Damous